— Onde é que vai com uma pressa dessas, compadre Silvino? — o Severino resmungou qualquer coisa ininteligível e seguiu caminho sem sequer abrandar o passo nem olhar para o compadre Alfredo.
Todos tratavam Severino Bailote por Silvino; uns, a maior parte, por não saberem o nome verdadeiro, outros por hábito.
Severino Bailote tinha razões para se apressar; um bom negócio podia depender da corda que desse às botas, outros poderiam antecipar-se. E ele tinha orgulho no seu faro, salvo seja, para descobrir bons negócios e mais ainda na sua capacidade para não perder tempo.
Quando acabaram as obras da barragem, ele tinha algumas poupanças de umas empreitadas que tinha feito com a carroça e a mula do sogro a acarretar pedras para as obras. Tinha trabalhado dia e noite quase sem descanso, mas conseguiu amealhar uma boa conta nos sete anos que durou a obra.
Foi quando ouviu dizer que a JAE ia arrendar as alfarrobas das bermas da estrada. Note-se que este arrendar era termo local e significava comprar a fruta na árvore, correndo os encargos com a fruta por conta do arrendatário e os encargos com a árvore e a terra por conta do dono. Não perdeu tempo, foi falar com o Adelino Carrasco, o encarregado, preparado com uma proposta que na sua opinião seria irrecusável.
— Isso não pode ser assim. Tem que ser por carta fechada. É a lei.
— Sim, já tinha ouvido dizer. Mas por quanto é que costumam arrendar?
Os arrendatários tinham combinado entre si e nunca apresentavam cartas com valores acima dos trinta contos. Eram três; um ano ganhava fulano, no outro sicrano e no outro beltrano. Era assim havia muitos anos.
Severino Bailote não era da terra, veio do Alentejo trabalhar para as obras da barragem. Casou com a filha do tio Pedro Ramos. Quando apareceu a possibilidade de trabalhar de empreitada no acarretamento das pedras, o mais difícil foi convencer o sogro a emprestar-lhe a carroça e a mula. Este não queria de maneira nenhuma largar o trabalho de almocreve, tinha sido a sua vida. Mas as forças já lhe iam faltando.
— Ó pai, você já quase não arranja trabalho para a carroça; deixe lá o Silvino tratar da vida. Eu sou filha única, não há mais irmãos a reclamar. — e a Evangelina lá convenceu o pai.
— Eu não posso dizer quantias. Se eles soubessem faziam queixa de mim.
— Queixa de si, senhor Adelino? Mas o que ouvi dizer é que eles estão combinados e assim quem perde é a JAE. Se alguém podia fazer queixa não eram eles. — e piscava o olho.
O Adelino Carrasco ficou sem resposta.
— Senhor Adelino, imaginemos que alguém se lembra de ir fazer queixa e o negócio se descobre. O senhor Adelino não quer que isso aconteça, pois não? — a ameaça era implícita, mas de fácil entendimento.
— Eu não posso...
— Digamos que o senhor Adelino só me diz que nunca foi mais de tanto.
O Adelino estava cada vez mais apertado.
— Senhor Adelino, só estamos aqui os dois; nunca ninguém vai saber desta conversa e esta nota já é sua... — e estendeu uma nota de mil.
— Mas... mas... — o Adelino Carrasco ganhava pouco. — baixou a cabeça e balbuciou:
— Trinta.
E o Severino foi arrendando fruta por alguns anos. Ao princípio algumas sementeiras de regadio da barragem e depois as laranjas. Foi sempre um bom pagador, excepto naquele ano em que a geada queimou as laranjas serôdias do pomar do Dr. Borges e ele argumentou que não tinha ganho nada e não tinha dinheiro para pagar. Alguns diziam:
— Então, Silvino, o negócio não é um risco, como tu dizes?
E ele zangava-se.
— Onde vais com essa pressa, Silvino? — e ele, nada. Isso queriam eles saber. Não, não podia perder a oportunidade, e tinha que andar depressa antes que chegasse outro à frente.
A Evangelina tinha ido à vila e ouvido dizer que os selos das cartas iam aumentar de cinquenta centavos para um escudo. Quando chegou a casa contou ao Severino e este viu logo a oportunidade; uma pechincha de meio por meio não aparece todos os dias.
Chegou à venda da Marília, que servia de posto dos correios na aldeia:
— Ó Marília, quero comprar os selos todos que tens aí.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
pechincha
o rapaz dos registos
— Grande país este, nem os funcionários públicos sabem a data.
— Isso não é bem assim, Matilde.
— Não é? Então como é que a certidão foi tirada hoje, dia 3 de Agosto, e tem a data de 22 de Junho?
— Sei lá eu...
— Sempre tenho razão! Os funcionários públicos aqui não sabem a quantas andam.
A Matilde e o Valdemar foram emigrantes em França durante vinte e sete anos. O Valdemar é dos que não gostam de ouvir falar mal do seu Portugal. A Matilde, pelo contrário, fala com desdém de tudo o que é português. Os filhos ficaram na França. Por vontade da Matilde também eles tinham lá ficado, mesmo depois da reforma. Mas ele vai sempre arranjando maneira de justificar a permanência por cá. Umas vezes é por causa de acabar a casa. Outras por isto, outras por aquilo. É cá que tem os amigos. Até arranjou um trabalho de distribuir pão pelas manhãs.
O lavrador Silvério Carriço morreu de um enfarte fulminante sem deixar descendentes directos. Os três sobrinhos apareceram a reivindicar a herança. Nunca eles se preocuparam com o tio em tempo de vida. Visitavam-no de vez em quando, mas nem um prato lavavam. Apareciam separadamente cada um com a conversa mais melosa que os outros. Mas mais nada.
— Manuel, tu tens que avisar os moços da conversa do testamento.
Os moços eram os filhos da Aurora Medeira, o Isidro e o Valdemar. O Manuel do Montinho lembrava-se de ouvir o lavrador Carriço dizer que estava pensando em fazer um testamento a favor dos dois. Desde a morte da mulher até à morte da Aurora Medeira, quando caiu da ameixeira, foi sempre com esta que o lavrador pôde contar.
— Manuel, se tu não os avisares vais ficar com esse peso na consciência para o resto da vida. — e a mulher insistia todos os dias com o marido, que não se queria meter no assunto porque sabia que daí viria guerra com os sobrinhos do lavrador. Um deles cabo da guarda.
Um dia o Manuel do Montinho encheu-se de coragem e foi procurar o Valdemar.
— Tu vai-te informar. Se calhar já vai ser tarde, porque ouvi dizer que os sobrinhos já andam a tratar da herança. Mas olha que o tio Silvério disse-me que andava a pensar em fazer o testamento para vocês, para ti e para o teu irmão, olhando ao que a tua mãe fez por ele.
— Ó tio Manuel, eu não estou a contar com isso. O meu irmão está lá para o Canadá, também não deve estar a contar com heranças. A minha mãe só fez aquilo que qualquer boa vizinha faria. Limpar-lhe a casa, lavar a roupa e coisas assim.
— E achas pouco? Estás avisado, ele falou-me nisso já deve haver mais de dois anos. Não sei se o chegou a fazer ou não. Mas no teu lugar ia saber disso.
— Senhor Valdemar, você é de Santana da Charneca?
— Sou, sim senhor, você conhece?
— Quando era miúdo passava todos os anos férias na Alcaria, na casa duns primos do meu pai. Conhecia lá quase toda a gente, aquilo também não é grande.
— Morreu hoje uma senhora de lá que era prima do meu pai, Adelaide Carola. Eu estava parado na Mimosa quando a filha me telefonou a dizer que morreu a mãe.
O funcionário do Instituto de Registos e Notariado ficou nitidamente chocado:
— A Catarina? Brinquei muito com ela em pequeno.
E foi lá para dentro conversar com uma senhora que devia ser a chefe. Demoraram bem mais de meia hora.
— Aqui tem a certidão, senhor Valdemar. Agora vocês vão ter que ir o mais depressa possível às finanças para fazer a relação de bens e depois vão ter que meter um advogado porque os outros herdeiros já fizeram escritura de habilitação.
— Está dentro do prazo... — o funcionário das finanças aconchegou os óculos no nariz e releu a data para confirmar. — Mais um dia e teriam que pagar uma multa um bocado pesada. Mas está aqui, 22 de Junho, não li mal.
o natal, dia da família
— Vá lá, Carlos, faz-me lá a redacção.
— Sabes bem que isso não adianta nada. O que é que adianta a papinha feita?
— Sim! Já ouvi esse discurso. — o arquear das sobrancelhas da Natália a olhá-lo de esguelha é que teve o condão de convencer o Carlos.
— Tens que me entregá-la até quarta-feira, que é o último dia. — e Natália contempla o ar subitamente sério, talvez demasiado sério, mas que ela conhece e gosta.
Tinham-se conhecido naquelas vezes em que ambos foram ao hospital visitar as respectivas avós, por coincidência vizinhas de cama. Melhor contado, já se conheciam de vista, mas nunca se tinham despertado interesse. Ambos de aspecto banal, sem nada que os fizesse ressaltar. Foi mesmo a tal seriedade do rosto dele quando falava com a avó, e o tal arquear de sobrancelhas dela que despertou o mútuo interesse. Nada que escapasse aos olhos das velhas, que lhes facilitaram o vencer da timidez.
— Os meus pais estão na França, eu estou com a minha avó até acabar a escola. Agora fico com a minha tia Augusta. — conta ela.
— Eu estou a acabar a escola, depois não sei. Se não fosse a tropa arranjava trabalho já para o ano. Mas ando cá com umas ideias. Não quero que me julgues cobarde, não é por isso, mas acho que me vou pirar...
Na quarta-feira, no intervalo entre a aula de matemática e a de português, Natália recebeu a redacção. Era assim:
“O Natal, Dia da Família
O Natal é muito mais do que uma simples festa religiosa, é o dia da família. Neste dia as famílias costumam reunir-se. Muitas vezes resolvem-se problemas familiares neste dia que se não conseguem resolver noutras ocasiões.
É pena que em Portugal muitas famílias não se possam reunir, nem sequer nesta altura. A guerra e a emigração não o permitem. Muitos portugueses têm que ir para a guerra ou têm que ir procurar sustento noutros países porque não o encontram cá. E isto faz que muitas famílias passem o Natal separadas. Pais separados dos filhos, filhos separados dos pais; maridos separados das mulheres, noivas separadas dos noivos. Esta é a parte triste desta quadra festiva que não podemos esquecer.”
— Natália, foste tu que escreveste isto? — a dona Eulália, professora de português, mira-a por cima dos óculos.
— Fui sim, stora. — Natália fica da cor dum pimento.
A professora fita-a ainda por um momento, depois pega noutra redacção.
A turma do curso de formação feminina andava atarefada na preparação dum jornal de parede sobre o Natal. As alunas que tinham mais jeito para o desenho estavam a preparar um grande quadro em papel de cenário, dividido em duas partes: uma pintada a guache, a outra com papel recortado, às cores. Os temas eram o menino Jesus nas palhinhas e os Três Reis Magos.
Algumas foram encarregadas de compor textos e poemas, relacionados com o Natal, para o quadro, chamado “Jornal de Turma”. Coube à Natália elaborar um texto sobre o tema “O Natal e a Família”.
Quando o Carlos foi ver as notas, procurou o quadro da turma da Natália entre os expostos na sala de entrada da escola. Lá estava, muito bem feito, desenhos, pinturas, caligrafias, mas faltava a redacção que ele tinha feito...
o serviço não se pode ressentir
— E agora, chefe? — a pergunta é feita por todos os operacionais.
A ordem do ministro é clara. Temos que obedecer. O Departamento de Controlo do Carbono (DCC) tem por missão inspeccionar todas as unidades agrícolas, industriais ou habitacionais, para verificar o balanço do carbono nas suas várias formas, centrando-se especialmente nas emissões de dióxido de carbono, de monóxido de carbono e de metano. Isto só para nos situarmos.
De nada serviu os operacionais explicarem que o uso das cores nos esquemas que acompanham os relatórios das inspecções é uma constante e uma necessidade no departamento. A primeira medida do novo ministro da tutela é peremptória: fica proibido o uso de cores nas impressões em todos os organismos sob a sua tutela. A austeridade assim o obriga.
Quando o anterior chefe da delegação regional do DCC se reformou, por limite de idade, apresentaram-se quatro candidatos. Dois licenciados em engenharia do ambiente, uma em engenharia química e outro em história. Ganhou o doutor Ferraz, licenciado em história, mas com um mestrado em literatura egípcia antiga e um doutoramento em métrica da poesia medieval polaca.
Muitos pensaram que o doutor Ferraz não seria capaz de desempenhar as funções, mas este cedo se impôs. Existiam milhares de requerimentos para inspecção pendentes do pagamento da respectiva taxa, porque a lei não é clara acerca da necessidade de avisar os requerentes da necessidade do seu pagamento para que a inspecção seja efectuada. O doutor Ferraz envolveu meia delegação no envio de avisos. Começaram a chover pagamentos e os operacionais nunca mais ficaram quietos, como acontecia antes.
A direcção central bem tentou impedir o doutor Ferraz de proceder ao envio dos avisos porque isso não estava previsto nos procedimentos, mas, perante o afluxo de dinheiro fresco e abundante proveniente dos pagamentos das inspecções pendentes durante anos, o secretário de estado interveio a favor do método do doutor Ferraz. E a própria direcção acabou por se convencer dos seus méritos, tendo proposto ao secretário de estado a atribuição de medalha de mérito ao doutor Ferraz. Para isso contribuiu em muito também o facto de o doutor Ferraz nunca vir com complicações. Ele era, sem margem para dúvidas, o representante da direcção central perante os funcionários da sua delegação e não o contrário, como tentavam ser outros chefes de outras regiões.
Paradoxalmente a polémica medida do ministro sobre a impressão a cores acabou por se tornar em mais uma fonte de rendimentos. Porque com os esquemas a preto e branco as confusões eram mais que muitas obrigando a repetição das inspecções, o que obrigava os utentes a pagar nova taxa para a deslocação dos técnicos.
O trabalho ia de vento em popa; a consequente arrecadação de fundos também. Chegou-se a uma altura que o utente recebia o relatório da aprovação escassas duas semanas depois do pagamento da taxa.
Entretanto a região adjacente ficou quase sem operacionais, que se reformaram, e o doutor Ferraz ofereceu os préstimos da sua delegação para tomar conta de metade do trabalho da região adjacente.
Também se reformou um dos operacionais da própria delegação e outro pediu transferência para outro organismo ao abrigo da lei da mobilidade.
Os utentes já se tinham habituado ao andamento célere das inspecções e reclamavam cada vez mais das demoras que o aumento do volume de trabalho e a diminuição de pessoal acarretavam.
Mas não acaba aqui o problema. Algumas alterações nas normas vieram tornar mais morosa cada inspecção. E o pior de tudo, as viaturas estavam todas com mais de vinte anos e começaram a ceder. Hoje uma, amanhã outra, com consertos cada vez mais dispendiosos. A austeridade do governo não abria mão de fundos para novas viaturas, nem por vezes para o pagamento de consertos mais caros, o que obrigava a que uma reparação de duas semanas levasse à imobilização do carro na oficina por largos meses à espera do respectivo pagamento.
O carro mais antigo, o DD, como é conhecido entre o pessoal por serem estas as letras da matrícula, acabou de sofrer uma reparação de quase três mil euros. No mesmo mês avariaram todos os outros. Ficou só o DD a funcionar. Rodava entre as equipas enquanto não vinha autorização para mandar consertar algum dos outros.
— Senhor director, já não é sem tempo. — o doutor Ferraz está ao telefone.
— ...
— Pensei que abatiam uma viatura e isso significava que era substituída, senhor director.
— ...
— Como? A viatura que vão abater é o DD?!!!
— ...
— Senhor director, eu sei que ele tem quatrocentos mil quilómetros, mas é o único que ainda anda.
— ...
— Sim, entendo, senhor director, as normas de segurança rodoviária e ambientais... mas é que assim ficamos sem viatura nenhuma... nenhuma...
— ...
— Desculpe, senhor director. Ordens são ordens. Com todo o respeito.
— ...
— Simsim, sesesenhor dididirector. O sessesserviviço não sessesse ppppopopode rereressentititir...
desencontro
Apesar de se ter ido deitar já passava das três, a Amélia pôs o pé na areia da praia ainda não eram dez horas. Levantou-se antes das sete. Fritar os pastéis de bacalhau, aquecer a água para o banho, tomar banho, ir esperar a camioneta da carreira a mais de dez minutos de casa. Meia hora de camioneta, que parava em todas, sempre a apanhar gente.
O Lourenço ainda se levantou mais cedo. Não tinha pastéis de bacalhau para fritar, mas tinha uma bicicleta na oficina, que tinha prometido consertar para o dono ainda usar nesse domingo. Chegou à praia pouco passava das nove e meia.
Tinha começado como aprendiz com o mestre Manuel Estêvão, na casa das bicicletas, tinha ele doze anos. Quando voltou de Angola, da tropa, o mestre chamou-o lá e disse:
— Lourenço, como sabes, eu não tenho descendentes e esta casa é a minha vida. Ficaria muito triste se isto acabasse. E as minhas forças já não são muitas. Pensei que tu talvez estivesses interessado em ficar com ela. Já sabes que para ti faço um preço especial. — e piscava o olho.
Os namoros da Amélia só duravam o tempo suficiente para os namorados se darem conta de que ela não estava disposta a facilitar-lhes a vida.
Mais de uma zaragata começou por sua causa:
— Deixa-te de merdas. Eu namorei com ela e nunca consegui nada, conseguias tu.
— Isso és tu que não sabes levar uma mulher.
E assim começavam. Todos sabiam que não tinham conseguido nada, mas poucos eram capazes de o dizer. E morriam de ciúmes uns dos outros.
— Qualquer dia não tens pretendentes. Olha que daqui a pouco passas dos vinte. — avisava a tia Carolina — Olha para mim.
— Oh tia, mas contigo não foi ao contrário?
— Sim, tens razão. Mas olha que os tempos são outros. — e suspirava.
— São agora outros. Os homens não querem sempre o mesmo, tia?
O noivo da Carolina, depois de a usar bem usada, deixou-a à sua espera, foi para a Argentina e nunca mais deu sinal de vida. E ela, parva, à espera, à espera. Até que desistiu. Não só desistiu ela, como desistiram os pretendentes.
— A chocha é minha, sou eu que mando nela. — a Amélia ria, com o seu rir telintado e sincero que, juntamente com os grados e pestanudos olhos negros, não parava de partir corações. — É assim, tia. Só dou os três quando algum me conseguir convencer. — e aqui ficava séria.
Carolina passava-lhe a mão pelos cabelos negros.
Tinham dançado no baile da Alcaria até bem tarde. Também foi lá que a tinha conhecido alguns meses antes. O Lourenço foi lá ao baile por acaso, ainda eram bem uns quinze quilómetros. Os olhos grados tinham-no cativado à primeira vista.
— Menina dos olhos doces como o mosto.
— Com todo o gosto.
— Cabelo negro e riso contagiante.
— Cavalheiro gentil e elegante.
— Concedes-me o prazer desta dança?
— Por ti até faria do meu cabelo uma trança.
Assim poderia ter sido se fossem poetas. Não eram, mas não faz mal. O certo é que para o Lourenço o caminho nunca mais criou erva.
Se os da terra o aceitaram bem ou mal não se sabe, sabe-se é que ninguém se manifestou de frente.
Sopraram-lhe ao ouvido algum tempo mais tarde que ela tinha má fama. O Lourenço não era moço de emprenhar pelos ouvidos, mas contou à mãe.
— Nem acredito no que estou a ouvir, filho. Tu a falares-me dos teus namoricos? Nunca fizeste tal coisa!
O Lourenço ficou vermelho que nem um tomate:
— Não é um namorico, mãe. Esta moça... tenho a impressão que... que...
— Que? — e a mãe sorria enlevada.
— Que fomos feitos um para o outro.
E a mãe falou-lhe de tantas coisas, tantas coisas. Contou-lhe coisas com que ele nunca tinha sequer sonhado.
— Nunca dês ouvidos a línguas mal intencionadas. — terminava ela.
No fim do baile confirmaram:
— Então fica combinado, amanhã de manhã vamos à praia.
— Fica combinado!
Já passava das onze e o Lourenço sem aparecer. A Amélia não sabia o que fazer nem sequer o que pensar. Ia ao banho para que as outras pessoas não lhe notassem as lágrimas, e deu-se conta de que nunca tinha chorado por namorados.
Já passava das onze e a Amélia sem aparecer. O Lourenço não sabia o que fazer nem o que pensar. Sabia que uma grande tristeza o invadia.
Nunca a Amélia tinha desejado tanto ter uns óculos de sol como quando deixou a praia de Almadrava ainda antes de dar o meio-dia e apanhou a camioneta da carreira para casa. Também o Lourenço deixou a praia de Odemano mais ou menos à mesma hora, de coração despedaçado.
há coincidências
O chamarem-lhe Rosa era um estigma que o acompanhava desde a escola primária, lá no Alentejo. Nessa altura ainda andou à pancada com alguns que lhe parecia fazerem-no por caçoada. Depois acabou por se conformar que ninguém lhe iria nunca chamar Epaminondas. Conformou-se, mas, lá por dentro, nunca aceitou.
O Joaquim Rosa era feitor da casa Ramiro Guedes. Quando nasceu o filho, claro que convidou o doutor Ramiro para padrinho. Foi assim que este ganhou o nome de Epaminondas dos Mártires Rosa.
Mas não foi só o estigma do nome que marcou a sua infância e juventude. A verdade é que toda a gente o evitava e ele nunca entendeu porquê, ser filho do feitor não é fácil. Se entrava no café, para jogar bilhar, nenhum dos que desafiava lhe apetecia jogar naquele momento. Com o filho do senhor João da mercearia ainda teve uma vez uma altercação, porque este tinha acabado de dizer que não lhe apetecia jogar e passados menos de cinco minutos estava a jogar com o filho do farmacêutico.
— Epaminondazinho — só a mãe o tratava assim —, deixa mas é de fazer figura de pedinte. Não vês que eles pensam que são grandes. Deixa-os lá. Dá-lhes o desprezo. Vai pelas tabernas, aprende com eles a cantar.
Foi assim que, com muita relutância, começou a entrar nas tabernas. Pior a emenda que o soneto. Calavam-se as conversas quando ele se aproximava. As desculpas para não aceitar beber com ele eram das mais esfarrapadas que se possa imaginar.
Tornou-se solitário e amargo. Andava pelos campos, pescava, caçava. Ia aos bailes, e era rara a vez que não havia zaragata em que estivesse envolvido.
Assim que a idade o permitiu ofereceu-se como voluntário para a tropa. Foi comando em Angola. Quando regressou, andou algum tempo pela vila sem saber o que fazer. Foi para a GNR, lá no íntimo com o desejo de sair para onde ninguém o conhecesse.
Quando foi colocado no posto de Odemano depressa adquiriu a alcunha de “Endireita Cidades”, porque dizia por todo o lado que agora ia endireitar a cidade. Se nunca tinha tido amigos, não foi aqui que os arranjou. Tirando dois ou três colegas, não se dava com mais ninguém.
A Clarisse veio do Alentejo litoral com dezassete anos trabalhar para um café em Odemano porque por lá o trabalho não abundava, e para escola não havia posses.
Depressa o Joventino, o patrão, casado e com três filhos, mas mulherengo por natureza e vocação, se aproveitou do desamparo, e também de alguma liberalidade de princípios da Clarisse.
— Quero lá saber que tu não deixes a tua mulher. Até é melhor assim. Ela até é muito boa pessoa e gosta muito de mim, e eu não sou ciumenta. — e ria — Só há uma coisa de que tenho pena. Gostava de ter filhos. Mas descansa que sei muito bem que tu já tens três e não te vou complicar a vida.
E foi assim que, através de um dos colegas do Epaminondas, e amigo do Joventino, se fez a aproximação do cabo Rosa à Clarisse.
Casaram. Depressa tiveram um casalinho de rebentos lindos. A vida corria bem. Embora ele fosse muito possessivo, ela sabia dar-lhe a volta.
— Clarisse, não tenho nada que me faça desconfiar, mas se alguma vez me traísses eu era capaz de matar.
— Não sejas tontinho. Tu e os nossos filhos são tudo para mim, Epas. — era assim que Clarisse o tratava: Epas, e ele não desgostava.
O que é certo é que o cabo Rosa já não era o homem amargo, o guarda implacável, que tinha sido. Só alguns mais renitentes ainda o apelidavam pelas costas de “Endireita cidades”.
Uma noite de inverno vinham, o Joventino com a Clarisse, da serra, no carro, e, mesmo à saída da curva, sem hipóteses de desvio, viram o cruzamento onde se volta para a Almadrava, antes de chegar a Odemano, pejado de guardas republicanos.
— O meu marido deve estar ali. E ele não disse nada. — e a Clarisse começou a tremer.
— Vou acelerar e não paro…
— Não faças isso! Eles estão armados. Seja o que Deus quiser. — e a Clarisse abaixou-se no banco e começou a rezar.
O Joventino encostou como lhe mandaram.
— Boa noite! — o agente apontou a lanterna para dentro do carro e rapidamente a desviou da cara da Clarisse.
— Calma! Tiveste muita sorte, ele mesmo agora aqui estava, não há dois minutos. Foi fazer o serviço ali atrás daquela alfarrobeira. Vão-se embora e tenham mais cuidado. Porra.
natrium sa
O papel passa de mão em mão. Cada um lê com atenção e passa a outro. Todos riem com estardalhaço ao acabar a leitura. Os restantes conversam entre si em voz alta, assuntos diversos, banais. Alguns escrevem em papéis semelhantes ao primeiro, que põem a circular. Algumas pessoas presentes na esplanada olham com curiosidade o ruidoso grupo que lhes retribui os olhares com sorrisos coniventes. A ninguém lhe passaria pela cabeça que aqueles papéis que circulam de mão em mão não são textos humorísticos. Como também não lhe passaria pela cabeça que cada papel depois de lido por todos vai pela sanita abaixo, é papel solúvel.
Tarde de domingo. Quando se separam, distribuindo sorrisos por todos os que desfrutam da esplanada, espalham-se rapidamente pela cidade. Cada um ao encontro dos respectivos companheiros, que entretanto andaram pela cidade levando consigo os telemóveis, mesmo desligados.
Todas as medidas são poucas para despistar os agentes do DSS - Departamento de Saúde e Segurança. É preciso despistar as escutas e localizações telefónicas, é preciso despistar os microfones direccionais de longo alcance. É preciso ter todos os cuidados.
— Marquinho, lá em baixo é o mar. Para lá das barreiras. Quando a mãe era da tua idade passava dias inteiros na praia... — Mariana baixa a voz para explicar ao filho, enquanto passa o tempo à espera do marido.
Há quinze anos foram erigidas barreiras entre o mar e a cidade. Arame farpado, e um bardo de figueiras-da-índia com mais de vinte metros de espessura.
O contacto com a água do mar só está permitido por motivos profissionais, e a trabalhadores da NATRIUM. E mesmo esses terão que passar pelos postos de controlo.
— O senhor Marques hoje ingeriu água do mar!
— Eu não, senhor agente. Só lavei a cara por causa do calor.
O agente levanta os olhos do monitor e fixa-o com dureza:
— Senhor Marques! Não pense que engana os sensores. Tenha cuidado, estime o seu emprego.
Regularmente, uma vez por mês, reúne-se o conselho regional para coordenar a resistência. Desta vez, na esplanada, tratou-se de uma reunião alargada aos responsáveis de zona. Estava em causa a mudança de táctica. A situação da população está a ficar insuportável, é preciso acções que deixem o DSS à nora e animem a massa. Em resumo: passar à ofensiva.
Duas semanas para preparar os pormenores: a juventude e os reformados serão os principais envolvidos na acção.
Já lá vão trinta e sete anos, um escritor franzino e apagado escreveu que quando começam a diabolizar um alimento, mesmo que se trate de um alimento essencial, o caminho está aberto para todas as arbitrariedades que se possam imaginar. Na altura, os poucos que o leram acharam que era mais um louco.
— Então o senhor Almeida acha que a NATRIUM SA não tem legitimidade para governar a ilha? — o juiz da NATRIUM é implacável — Permita-me que lhe recorde que a nossa Constituição foi referendada.
— Foi, sim, Sua Excelência, mas isso foi há vinte e dois anos. Apostaria tudo o que me pedissem que hoje o resultado não seria o mesmo.
— Isso não está aqui em discussão. Quero lembrar-lhe que conspirar contra a NATRIUM SA é crime.
— Conspirar?!
— O senhor Almeida nega que o disse perante três amigos à mesa do café?
Ernesto Almeida gelou.
— Por esta vez o senhor Almeida leva apenas uma repreensão registada, por não ser reincidente. Mas não pense que a NATRIUM anda a dormir. Se reincidir teremos mão pesada.
A Constituição de 2033 foi referendada. O sim teve 65,17 % dos votos expressos, de um universo de 71,34 % dos eleitores inscritos. Havia muitas décadas que a abstenção não era tão baixa. As duas imposições mais marcantes desta constituição são o adiar de eleições “sine die”, como forma de garantir a estabilidade, e a entrega de todas as funções da governação da ilha, incluindo a judicial e a legislativa, à empresa NATRIUM SA.
— Para que são esses deputados todos? — era voz corrente desde havia muitos anos. Tendência crescente agravada pela inépcia na solução dos problemas prementes e por escândalos a rebentarem por todos os lados.
Cada vez com menos meios, os serviços do estado foram definhando e não conseguiam dar resposta às necessidades da população.
Em 2019, foi fortemente penalizado fiscalmente o comércio do sal. Medida que contou com apoio activo da televisão local, de mais de dois terços das associações a favor da vida saudável, assim como das três igrejas com peso na ilha.
— Esta medida já vem tarde — apregoava o ministro da saúde Alves Moreira — o sal é o veneno da civilização.
Em 2024 formou-se a NATRIUM SA, tendo à cabeça o Dr. Alves Moreira, como presidente da administração.
Beneficiando das medidas anteriores de restrição do comércio através da carga fiscal gigantesca, da poderosa máquina de repressão do mercado negro e do posicionamento em postos chave do aparelho de estado, a NATRIUM alcandorou-se ao monopólio da produção e comércio de sal na ilha. Produzia para o mercado interno e para exportação, adquirindo rapidamente a imagem do melhor empregador da ilha, assim como de máquina afinada e oleada onde nada falhava. A compra das acções da NATRIUM depressa ultrapassou a compra dos títulos da dívida pública, até então preponderantes entre quem tinha dinheiro.
Em 33, por impulso de um grupo de cidadãos cujo centro foi o Dr. Alves Moreira, houve o já citado referendo. Com os resultados já referidos.
Vinte e dois anos depois, a NATRIUM estagnava devido à falta de poder de compra da população e à quebra das exportações, por outras ilhas terem resolvido os seus problemas de abastecimento. O número de excluídos não parava de subir. A NATRIUM sempre optou por uma política de se concentrar na produção e comércio do sal e na administração da ilha em todos os seus aspectos, deixando os outros ramos do comércio, a agricultura e alguma indústria subsidiária para outros investidores. Mas, no fundo, tudo girava à sua volta. Se a NATRIUM não conseguia subir o volume de negócios, tudo o resto se sentia.
O desespero da população para o acesso ao sal atingia o máximo e levava muitas vezes a actos tresloucados. A NATRIUM, pressionada pelos accionistas, respondeu com o aumento das medidas de segurança. As barreiras passaram a ser electrificadas. A instauração da pena de morte foi a medida mais drástica.
A resistência foi aparecendo a pouco e pouco. No início eram meia dúzia. Mas a electrificação das barreiras e a pena de morte indignaram muitos milhares.
— Que confusão é esta? — berrava o Dr. Alves Moreira ao telefone, no gabinete da presidência da NATRIUM. — Quero que isto fique resolvido ainda antes do almoço. Antes que rolem cabeças...
De repente a situação era caótica em toda a cidade. Amanheceu um dia normal e às oito e meia pode-se dizer que a cidade era um engarrafamento completo.
Estava o Dr. Alves Moreira longe de entender que as decisões do conselho regional da resistência de há pouco mais de quinze dias estavam a ter amplo sucesso e adesão em massa. E o DSS completamente à nora. Quando os agentes do DSS chegavam a uma passadeira que os transeuntes, os mais novos e os reformados, teimavam em passar em fila interminável. Já estes se tinham dispersado e o mesmo começava noutras partes da cidade. Em dezenas de passadeiras...
* Natrium é sódio. Vem do latim, e ainda é a palavra para sódio em várias línguas. Daí que o seu símbolo químico seja Na.
o escriba
— Filho, quero que vás dizer ao Vicente que tenho uma coisa para lhe dizer antes que me vá desta para melhor. Ele que venha cá ainda hoje. Não sei se passo desta noite.
O filho olha-o sério. Queria-lhe dizer que tivesse esperança, mas isso adiantava? Queria-lhe dizer tantas coisas, tantas coisas. Mas limita-se a dizer:
— E se ele não quiser vir? Há quantos anos vocês nem uma palavra trocam?
— Mesmo assim vai. E se ele não quiser vir, convence-o. Diz-lhe que é importante, muito importante. — os olhos do Casimiro transmitem tal determinação que o filho nem se atreve a perguntar o que é que ele tem de tão importante para dizer ao Vicente.
— Casimiro, mandei-te chamar para te fazer uma proposta.
— Sim, senhor doutor. Então diga lá.
O presidente da câmara olha-o bem nos olhos.
— É muito simples. Sei muito bem da tua situação difícil depois do acidente. Também sei que eras um aluno brilhante na escola. A tua habilidade para a escrita pode vir a ser o teu ganha pão. Pensa no teu filho.
— Continuo a não entender, senhor doutor.
— Sabes decerto que faleceu o senhor Aniceto?
— Sei, sim. Aquele senhor que tinha a secretária lá no corredor da câmara e escrevia requerimentos e servia de testemunha para as escrituras a troco de uma gorjeta.
Algo na mente do Casimiro se pôs imediatamente em alerta. É que o Aniceto tinha fama de ser bufo da PIDE.
O Casimiro trabalhou na fábrica da cortiça até ao dia em que a máquina lhe arrancou a mão acima do pulso. O tribunal sentenciou que o acidente se deveu a descuido do trabalhador. Foi despedido de mãos a abanar, salvo seja. Foi a mão direita que perdeu, o que no caso do Casimiro até é uma vantagem porque é canhoto.
— A minha proposta é que tu ocupes o lugar dele. Sempre que tiveres alguma dúvida podes contar comigo para te ensinar alguma coisa. Sei que tu te vais desenrascar bem. Olha que o Aniceto conseguia equilibrar bem a vida. — promete o presidente Morais.
Tanta simpatia e interesse põem o Casimiro cada vez mais de pé atrás.
A mulher morreu no parto do único filho que tem agora oito anos. Casimiro não é homem de desesperar, mas a situação não lhe deixa muita margem para esperanças. Conta durante algum tempo com a solidariedade dos camaradas de trabalho, e de outros camaradas inconfessáveis. Mas os tempos são difíceis para todos. E Casimiro tem o seu brio e dignidade aguçados, herança do pai. Atira-se à vida a fazer uns biscates de caiador. Aprende depressa a tirar partido do coto do braço incompleto. Mas o trabalho escasseia. Os mais pobres caiam eles próprios, uma boa parte dos mais ricos afastam-se dele pela fama de comunista.
— Senhor doutor. Vamos ser claros, e o que é que eu tenho que dar em troca?
— Ó, homem de Deus, não tens que dar nada. Isso até me ofende! Basta que sejas um bom cidadão. Patriota, respeitador das instituições. Zeloso contra todos os inimigos do nosso Estado Novo.
— Senhor doutor. É verdade que a vida me tem sido difícil. E agradeço muito o seu interesse e ter-se lembrado de mim. A sério que agradeço. Mas se bem entendo o que me está a pedir, não posso aceitar. Não é sequer por mim, é pelo meu filho. Eu sou um homem simples, não me meto em nada. Mas o senhor doutor disse-me para pensar no meu filho. Agradeço-lhe muito, e é mesmo nele que estou pensando agora mesmo. Quero que ele nunca se envergonhe de mim, da mesma maneira que eu nunca me envergonharei do meu pai.
Pareceu ao Casimiro que estas últimas palavras comoveram o presidente. Seria verdade que ele esteve na origem da prisão do seu pai, como muita gente dizia? Seria o peso da consciência a trabalhar? O Casimiro estava alerta.
A última vez que o Casimiro viu o pai tinha quinze anos. Primeiro para o Aljube, depois para o Tarrafal, onde o seu corpo não resistiu.
— Casimiro, vamos esquecer esta última parte da conversa. — os lábios do presidente tremiam. — Quero que aceites o trabalho que te proponho, peço-te que o aceites. Não te imponho condições, não quero nada em troca. Conta comigo para alguma ajuda que precisares. Pensa no teu filho. E tenho a certeza que ele nunca se envergonhará de ti. — e estendeu-lhe a mão.
— Sem condições?
— Sim, sem condições. É a minha palavra de honra.
Pareceu a Casimiro vislumbrar-lhe uma pequena lágrima no canto do olho. A grande dúvida aumentava. Seria a consciência?
— Não posso aceitar.
Para desconcerto do Casimiro o presidente foi à porta do gabinete, trancou-a e começou a chorar. Quando se conseguiu acalmar:
— Não é o que tu pensas, Casimiro. Eu sei que tu podes pensar que fui eu que meti o teu pai na prisão. Muita gente pensa isso. Mas não fui. Nem podia ser, porque... porque eu devo um grande favor ao teu pai. É por isso que me interessei por ti. Tu acabas de me revelar que és digno do carácter dele. Estamos em campos opostos mas eu tenho uma grande admiração pelo carácter dele.
Casimiro estava sem palavras.
— Eu vou-te contar. Quando éramos moços andávamos ambos atrás da mesma rapariga, aquela que veio a ser a tua mãe. Uma vez, depois dum baile, eu esperei-o à falsa fé mesmo à saída da ponte do Matias. Era uma noite de invernia, a ribeira ia cheia. Andámos à pancadaria a sério. A dada altura escorreguei e caí na ribeira. Sabes o que o teu pai fez? Atirou-se à água barrenta, lutou, lutou e conseguiu tirar-me com vida. Eu estava muito bêbado, e além disso nadava muito pouco.
— Camaradas, eu até entendo as dificuldades do Casimiro. Mas daqui para a frente temos que ter muito cuidado com ele. Há homens que cedem, nunca sabemos se cedemos até passarmos por elas. Muito cuidado!
Os camaradas da célula, uns com mais, outros com menos convicção, aceitaram a advertência do camarada Vicente, afinal era a segurança do partido que estava em causa.
— Ó, pai, o que é um bufo?
— Um bufo é um homem que denuncia os outros. Que diz à PIDE o que os outros fazem.
— Um moço na escola disse que tu és bufo.
— Não me digas quem é o moço, nem acredites nisso.
— Amanhã dou-lhe uns sopapos.
— Olha-me bem nos olhos e acredita que eu não sou bufo, nem nunca serei. Quando alguém disser isso não te zangues, não batas em ninguém. Basta que tenhas a certeza que o pai não é bufo. Quero que tenhas orgulho no teu pai, como eu tenho no meu.
E foi assim que o Casimiro se tornou no escriba conhecido por todo o concelho. Ao fim de duas décadas raro seria o habitante do concelho, mesmo os mais letrados, que não teria alguma vez recorrido aos serviços do Casimiro. Alguns mesmo para testemunhas de casamento ou padrinhos de registo civil. Note-se que os serviços do estado estavam todos concentrados no mesmo edifício. Até era comum as confusões das pessoas que iam ao registo civil ou às finanças e pensavam que tinham ido à câmara.
Quando a viúva do presidente faleceu, doze anos depois da morte deste, estava o Casimiro acamado com a pneumonia que o viria a derrubar para sempre. E foi nessa altura que pediu ao filho para chamar o Vicente.
— Diz ao teu pai que passo lá a casa logo depois do trabalho.
— Até logo, senhor Vicente, eu não sei o que ele lhe quer dizer, mas de certeza que é coisa importante.
— Veremos. De qualquer maneira vai descansado, não sou homem de faltar à cabeceira de um moribundo por muito mal que tenha feito.
Com a respiração entrecortada e fala difícil o Casimiro fala.
— Vicente, antes de bater a bota quero-te dizer que nunca fui bufo como vocês pensaram. — e contou o que se tinha passado.
— Casimiro, devias ter falado comigo e evitávamos todo este mal-entendido de uma vida, homem. O orgulho mata...
— Não, Vicente! Eu prometi ao doutor Morais, a pedido dele, que nunca falaria nisto a ninguém até à morte de ambos, ele e a esposa. Não me perguntes porquê. Ele pediu, eu cumpri, ele também cumpriu a parte dele.
o bloqueio
O cego ficou parado no largo. Tenteava uns passos inseguros, mas não saía do mesmo sítio. Notava-se que não sabia como sair dali.
— Boa tarde, amigo. Precisa de ajuda?
— Boa tarde, amigo. Antes de mais apresento-me. António de Campos. Muito prazer!
— Domingos Rocha. O prazer é todo meu! Se precisar de alguma coisa?
— Preciso, sim, amigo. E agradeço muito. O amigo tem telemóvel, que me possa fazer uma chamada para a minha irmã? Ela mora aqui na Almadrava.
— Mas não estamos em Almadrava, estamos em Odemano. Daqui a Almadrava são uns trinta quilómetros. Talvez não sejam trinta, mas vinte e muitos são.
O cego ficou boquiaberto.
— Não me diga uma coisa dessas. Pedi ao motorista do expresso que me avisasse quando chegássemos à Almadrava... mas faça-me esse favor, ligue na mesma para a minha irmã e diga-lhe onde estamos. Ela deve saber onde é. Mora por cá há muitos anos. O meu falecido cunhado era da Almadrava.
O cego tira um papel da carteira com o número de telefone. Domingos chama para o número escrito no papel.
Não atendem.
— Não me admiro que não atenda. Ela é muito surda, mas não vale a pena insistir. Quando ela vir a chamada ela liga de volta. É sempre assim. Ainda espero vir a conseguir usar um telemóvel. Faz muita falta, e nas minhas condições muito mais.
— Está bem, Domingos. Não deixes de ajudar quem precisa.
— ...
— Pois, assim estás dependente de quando a irmã do senhor voltar a ligar. Eu entendo.
— ...
— Até logo. Beijinhos.
Conheceram-se pela Internet. Domingos viúvo, Alzira divorciada. Hoje será o grande dia em que se irão conhecer ao vivo. Alzira tem cada vez mais a certeza de que não se irá desiludir. Domingos revela-se-lhe mais uma vez uma pessoa muito humana, muito sensível. Ele estava preocupado que ela não entendesse a demora. Como poderia não entender gesto tão nobre como ajudar um pobre cego perdido sem conhecer a cidade?
— Sabe, amigo, eu não sou cego de nascença. Fiquei cego de um dia para o outro, há três anos. Eles agora dizem invisual, mas eu sou mesmo cego. Quero lá saber da palavra que eles usam, não é isso que me dá vista.
— Lamento muito.
— Deixe lá, amigo. O pior já passou. Os primeiros dois anos foram os piores. Não me conformava. Olhe que ainda pensei pôr termo à vida. É verdade. E eu que gosto tanto de viver.
— Fico sem palavras.
— Não fique, amigo. O pior já passou. É um lugar comum que nós resistimos mais do que imaginamos. Mas é verdade, eu agora tenho a certeza. Imagine que eu sempre tive uma vida bem vivida. Ao princípio foi isso que mais me custou. E sozinho. Tenho dois filhos mas têm a vida deles. A minha esposa morreu há dez anos. Mas sabe, amigo, foi mesmo essa vida agitada que me dá as recordações que me permitem viver agora. E aqui onde estamos estou a sentir-me em casa. Este cheiro a mar. Trabalhei muitos anos na lota da minha terra.
— Aqui há certos dias que cheira muito mal. A primeira vez que vim a Odemano, tinha cinco anos. Vim com a minha mãe ao médico. Passados quase cinquenta ainda tenho algumas recordações desse dia. Uma grua, os barcos e o cheiro, sobretudo o cheiro.
— Cheira mal? Para mim este cheiro desperta-me das melhores recordações da minha vida. Porque não vamos passear um bocado à beira-mar. A minha irmã pode telefonar a qualquer momento. Mas também pode demorar. Às vezes anda lá nas coisas dela e não se lembra de ir ver se tem chamadas.
— ...
— Agora estamos aqui num restaurante. O senhor António está a jantar. Eu pago-lhe o jantar. Confesso que também já comia. Coitado, ainda não recebeu a reforma este mês. Vinha a contar jantar com a irmã, mas ela ainda não ligou...
— ...
— Eu sei. Assim que ela ligar eu ligo-te para ir ter contigo. Eu sei que o arroz de pato frio não tem graça nenhuma, mas que hei de fazer?
— ...
— Beijinhos.
— Sabes o que te digo, Alzira, esse Domingos deve ser é um banana.
— Oh mãe, ele é um amor de pessoa.
— Hm, queira Deus que me engane... o outro era vivaço demais, mas tudo tem um ponto certo.
Alzira calou-se. Se calhar a mãe teria razão. Mas não acredita. O Domingos é uma jóia de pessoa, tem a certeza.
Alzira casou nova. Ele era um bom trabalhador, e justiça lhe seja feita, um homem bom. O pior é que tinha mau vinho, com a agravante de que gostava de beber. Não se pode dizer que fosse alcoólico, nunca bebia sozinho. Mas eram mais que muitas as vezes que o teve que ir buscar à esquadra da PSP. Os polícias conheciam-no e sabiam que quando ela chegasse ele acalmava. Assim que os filhos atingiram a maioridade pediu, exigiu, o divórcio. Já não podia suportar mais.
Eram dez horas e trinta e dois minutos quando o telemóvel tocou. No outro lado uma voz feminina:
— A minha mãe tem aqui uma chamada não atendida. Pedimos desculpa, ela é surda e distraída. Suponho que seja da parte do meu tio António, um senhor cego?
— É sim, senhora. Temos estado à espera.
— Mil desculpas, meu senhor. E antes de mais obrigado pela paciência e boa vontade. Sabe-me dizer onde estão?
— ...
— Então vão ter ao bar “Chinchilas” que fica aí perto, qualquer pessoa sabe dizer onde é. Dentro de meia hora no máximo estamos aí.
Quando o casal saiu do carro a rir e se dirigiu ao Domingos, este estranhou o tom, mas nem por sombras desconfiou da realidade.
— Nós somos uma equipa de um psicólogo, uma antropóloga e um actor e estamos a fazer um estudo sobre como são tratados pelos cidadãos as pessoas com imparidade. Parabéns, senhor Domingos! Portou-se muito bem.
Domingos olhou para o cego e este já não tinha a bengala nem os óculos escuros e sorria para ele. Passa-lhe uma chispa pela cabeça, atira-se ao falso cego e dá-lhe dois valentes murros na cara.
— Este é por mim! Este é pela Alzira! — e espumava.
— Mas este número é da polícia!!!
— ...
— Como é que dizes? Mandaste o cego para o hospital com dois murros? Um em teu nome e outro no meu? Que raio de conversa é essa?
— ...
— Desculpa lá, Domingos, mas esse filme já eu conheço de cor e salteado. Tomara que não conhecesse. Foram muitos anos.
— ...
— E não vale a pena me tentares contactar pelo Facebook, que te vou bloquear já... ou eu não me chame Alzira... olha, boa sorte!
as mulas do doutor mimoso
— Tenho a certeza. São as mulas do doutor Mimoso, senhor guarda.
— Sargento, se faz favor! Sargento!
— Senhor sargento.
— O senhor agora tem que assinar aqui a participação.
— Mas eu não sei assinar. Não me diga que isto ainda me vai trazer desaires. Eu só quero ajudar, senhor sargento. É que o senhor António é da minha terra e sempre foi amigo do meu pai.
— Não sabe assinar, põe a dedada.
António Zeferino da Luz, conhecido por António da Várzea, veio da Várzea da Sobreira servir para a casa do lavrador Tomé, numa idade em que seria mais indicado entrar para a escola, que ficava mesmo ao lado da casa dos pais; mas eram oito filhos. O seu primeiro trabalho foi guardar porcos. Uma vez deixou-se dormir ao pé dos porcos, o que lhe valeu foi que estes voltaram para casa sozinhos. Quando acordou e não os viu só teve vontade de fugir para a mãe. Mas ante o medo do lavrador e o do cinto do pai, optou por ir a chorar contar ao lavrador Tomé que os porcos tinham fugido.
— Não diga nada ao meu pai! — implorou.
Nessa noite deixaram-no dormir em casa.
As mulas foram roubadas da quinta no sábado.
— Devias ter mais cuidado, António! — ralhara o doutor Mimoso. — Os ladrões a roubar as mulas e tu a dormir!
Os cães bem ladravam, mas com tantas zorras, doninhas, escalavardos por aí, qual é a noite que os cães não ladram?
Foi crescendo e mostrando jeito para os animais. Aos treze anos entregaram-lhe uma parelha de mulas para tratar, cuidar e trabalhar. Era o arado, era a carroça, era o carrego do cereal, era tudo o que às mulas dissesse respeito.
— Ó senhor António! Ó senhor António! — bradou o Justino à entrada da quinta.
— Olha quem ele é! O que te traz por cá a uma segunda-feira, rapaz? O teu pai está bom?
— Está bom, sim senhor. Obrigado. Senhor António, venho agora do mercado do Mioto. Montei-me na bicicleta e vim na brasa. É que vi lá as mulas! As suas mulas!
— Minhas! Quem me dera que fossem minhas.
As coisas pioraram muito depois do casamento do doutor Mimoso com a filha do lavrador. E pioraram ainda mais depois da morte deste.
O doutor Mimoso não era na realidade doutor. A bem da verdade possuía o curso liceal. Conheceu a futura esposa na praia de Odemano quando era oficial do exército a cumprir o serviço militar, rolava o ano de 37.
Ainda em tempo do sogro foi tomando conta da feitoria das terras e do lagar.
Não tinha o Justino ainda montado a bicicleta e já o senhor António partia ligeiro para a vila, a avisar o doutor Mimoso.
— Ó homem de Deus, tu não tens emenda! Então como é que vamos fazer a participação à guarda sem a testemunha?
Por sorte um dos criados de lavoura conhecia o Justino e sabia onde ele morava. E lá foi ele de bicicleta chamá-lo. A pé nunca mais o senhor António lá chegava.
— Bem! Agora o teu amigo vai com a GNR que eu vou lá ter à feira no automóvel. E tu já te podes ir embora para a quinta que deves ter lá muito que fazer. Está bem assim, senhor sargento?
— Com sua licença, senhor doutor. O senhor António tem que ir para que as mulas o reconheçam e assim provar que as mulas são as suas.
— Hã?! Era só o que me faltava ouvir. As mulas conhecerem melhor um simples almocreve que a mim que sou o dono!
afinal é tão simples
— Tu não tens vergonha, Arlindo? Andares por aí a dizer às pessoas que ganhas quarenta e tal contos quando nalguns meses nem vinte tiramos.
O Arlindo olhou-o com aquele ar com que se olha para uma criança que ainda não sabe nada da vida e abanou a cabeça.
— Um dia destes tens de ir à minha casa, Joaquim. E lá mostro-te uma coisa. — e ria.
Quando os homens do cadastro passaram na terra do Joaquim Colaço, há mais de vinte anos, tinha ele casado havia pouco tempo, logo depois de voltar da tropa. A vida era difícil. Os lavradores pagavam pouco e nunca tinham trabalho para muito tempo. Para arrendar terras precisavam de bons arados e mulas, e estas comiam o ano inteiro. Quando os homens chegaram tinham eles, ele e dois dos irmãos, acabado uma empreitada na estrada de Beja.
— Joaquim, os homens do cadastro andam à procura de moços para porta-miras. — contou-lhe o vizinho António Guerreiro.
Foi assim que o Joaquim Colaço começou a trabalhar no cadastro.
Começou como porta-miras, mas depressa o engenheiro Torres notou que ele tinha jeito para o desenho e facilidade de conversar com as pessoas do campo e, muito importante também, revelou um talento especial para escolher as estações. Não são todos que o têm. Nesse tempo não havia GPS, nem sequer ainda aparelhos electrónicos que medem distâncias com quase tanto rigor como medem ângulos e registam só de carregar num botão.
Foi assim que o chefe de brigada o elevou a reconhecedor e isso permitia trabalhar quase o ano inteiro. Mesmo quando as brigadas regressavam a Lisboa, no inverno, era útil o trabalho dos reconhecedores a avisar os proprietários para porem os marcos, a marcar as estações, a fazer um reconhecimento prévio muito útil ao posterior levantamento, a recolher os dados dos proprietários.
E foi assim que o Joaquim deixou a sua terra e continuou pelo país fora acompanhando as brigadas do cadastro. Primeiro por alguns concelhos do Alentejo, depois pelo Algarve, depois pela Beira Baixa.
O percurso do Arlindo Crespo foi diferente. Mais velho, trabalhou muitos anos numa serração, perto de Leiria, de onde era oriundo. Depois, quando esta faliu, foi para a zona de Lisboa dar serventia a pedreiros. Até que um sobrinho que era desenhador no cadastro, falou com um engenheiro e lhe arranjou aquele trabalho.
Conheceram-se em Aljezur em meados dos anos sessenta. Nunca se deram mal, mas não acompanhavam muito. O Joaquim era um homem pacato. Dedicado à família, a Ermelinda e os cinco filhos, que sempre o acompanhavam para onde ele ia em trabalho.
O Arlindo tinha a mulher a viver lá para Leiria, perto da filha única, já casada. Frequentava tabernas e jogos de batota e tudo o que cheirasse a ambientes menos ortodoxos.
— Batatas? Aqui não encontra quem venda batatas. Não vê? Aqui toda a gente tem o seu bocadinho, ninguém compra. — Foi quando chegaram ao concelho de Mação e se instalaram numa casita pequena na sede da freguesia onde iam fazer cadastro.
A Ermelinda, ao princípio teve alguma dificuldade com os costumes diferentes daquilo a que estava habituada. Mas depressa se integrou totalmente na vida da aldeia. A tal ponto que já lhe contavam também os mexericos.
Já tinha aprendido, com a passagem por tantos povoados pequenos, que só começas a conhecer a terra quando te deixam de ver como um forasteiro. Ao princípio quase todos os povoados são hospitaleiros. Ao princípio também não te podes deixar envolver demasiado com as primeiras pessoas que se insinuem. Quase nunca são as melhores. É preciso deixar assentar. A Ermelinda sabia isso tudo melhor que o marido, ele andava lá fora absorvido pelo trabalho, e quando estava em casa, nomeadamente nos dias de mau tempo, enfiava-se no trabalho. A fazer esboços, a fazer listas de proprietários. Havia sempre o que fazer.
— Hoje tens que vir lá a casa, Joaquim. — é a casa que tem alugada numa aldeia ali perto da sede da freguesia. O Joaquim sabe onde é, mas nunca lá entrou.
— Terei todo o gosto, Arlindo. O trabalho está encaminhado.
— Tu e o trabalho. — e ria.
— Queres presunto ou chouriço? Branco ou tinto? Aqui há de tudo, como na farmácia. — e soltava uma gargalhada sonora — E foi mesmo por isso, além de seres um bom amigo, claro, que te convidei para cá vir. Não convido todos, não penses nisso. Mas tu és bom rapaz. — outra gargalhada — Queres ver a minha arrecadação e a minha cozinha? Aqui há de tudo. Vêm-me cá trazer de tudo. E piscava o olho. Há presunto, há chouriços, há toucinho, há carne de porco salgada, há azeitonas, há pão, há azeite, há batatas, há feijão, há de tudo. Pensas que me vinham cá trazer alguma coisa se soubessem quanto eu ganho? Heim, pensas? Estás muito verde. — e ria que nem um desalmado.
o meu tabaco não é para gandulos
O taca-taca, taca-taca, taca-taca ainda torna mais pesada a modorra. As raras casas que se avistam vêm e vão, lânguidas, cúmplices com o estado de espírito do António.
Tinha tentado dormir, para que o tempo custasse menos a passar, mas não se conseguia ajeitar a gosto no banco austero. Nem os ossos nem a carne já são os mesmos do tempo da tropa, em que dormia até sentado numa pedra sem encosto para as costas. Acreditem que é verdade.
Entre estações e apeadeiros tinham parado oito vezes quando o inglês embarcou. Uma mochila, uma viola, cabelo pelos ombros.
O sargento Dias havia de dar conta dele, se lá o tivesse apanhado.
— Isto aqui não é lugar para meninas! Máquina zero! — havia ele de berrar.
Mas estes tempos são outros. Muita falta fazia a esta malta, para aprenderem como é a vida.
Dedilha as cordas da viola, displicente, enquanto olha, distraído, a planície.
Não há instrumento como o acordeão. Isso é que é alma. Não me venham cá com violas, nem com pianos, nem aqueles, que parece que estão a serrar, e servem para dar sono. Isso não é música. Na casa do meu pai assim que tocava música dessa mudava-se logo de posto.
— António, tu devias ir aprender a tocar acordeão com o Isidro.
Ainda tinha comprado um, em segunda mão, mas depressa desistiu. Os dedos calejados do ferro não obedeciam. Gostava de assobiar. Não eram todos que assobiavam como ele.
Os dedos do inglês eram delgados e compridos e moviam-se com muita facilidade. Devia dar um bom tocador de acordeão. É pena que se perca com violas. Mas eles lá nem devem conhecer o acordeão. Dá Deus nozes a quem não tem dentes. De certeza que o inglês não deve trabalhar no duro; se ele tivesse que trabalhar a dobrar e armar ferro; às vezes com geada, às vezes com o sol a queimar; não ia ter dedos para tocar.
Nem sempre trabalhou no ferro. Começou a dar serventia a pedreiros como quase todos. Às vezes era uma brincadeira, mas quando tocava a fazer e carregar massa para assentar tijolo ou encher chão, era duro. E ninguém quer ficar como servente. Calhou o mestre Olindo tê-lo convidado para trabalhar com ele, e nunca mais deixou o ferro. Até ao acidente.
Só não trabalhou no ferro enquanto esteve na tropa.
O inglês agora começou a cantar, primeiro baixinho.
— Olha-me este material, inglês. — e apontava para uma moça roliça que passava à procura de lugar, arrastando dois cestos.
O inglês olhou para ele e sorriu.
Não deve ter percebido, ou se calhar não gosta. Com aquele cabelo, hm...
— Não estou a ver como vamos resolver isto, a não ser que os pais da moça aceitem a indemnização e desistam da queixa. — o advogado, arranjado pelo tio, que era polícia, foi categórico.
Ela foi ganhando confiança lá em casa, ficava por lá muito tempo. Naquela noite estava uma invernia das antigas. Chuva e vento, escuro e lama. Foi ficando. A meio da noite foi ter com ele à cama. Muitos anos mais tarde veio a desconfiar que a gravidez não era dele. Mas na altura resolveu-se com um desmancho e uma indemnização de trinta contos. O pai soprava, mas pagou. O António tinha quinze anos; a Idalina, dezassete.
Para onde irá o inglês? Luxo de gente fina, deve ter paizinho rico, para andar por aí a passear de viola às costas.
Nem eu sei para onde vou; quer dizer, saber sei; mas qual vai ser o meu destino? O doutor Sabino disse que tenho poucas hipóteses de conseguir que o seguro me pague alguma coisa. Ele tinha dois no seguro, fomos três aleijados. O Mateus até nem foi má pessoa. A viúva do Manuel assim sempre recebe alguma coisa. E o Dimas está pior que eu, coitado. Azar sermos logo três. Mas coitado do Mateus, se fosse pagar seguro para todos não lhe sobrava nada, quinze homens.
O doutor Sabino diz que nem vale a pena meter o Mateus em tribunal, ele abriu falência da empresa e não tem nada em seu nome. Nem sequer o Mercedes 300 está em seu nome, quanto mais o resto. Nem eu seria capaz duma coisa dessas, sou amigo do Mateus desde moço.
O inglês parece que lhe leu os pensamentos. Será que pensou em voz alta? Mas mesmo que assim fosse, ele não ia perceber nada. O inglês continua a olhar para ele com ar de pena. Ele que vá mas é à merda. Que sabe ele da vida!
Dantes havia trabalho, muito trabalho. Pontes, muitas pontes o António fez. Quando teve o acidente havia muito trabalho. Agora já não há, mas mesmo que houvesse, o que é que ele poderia fazer sem a perna? Nem para segurança, que é o que há agora mais. Ainda há quem fale mal do Doutor Madeiro, no tempo dele havia trabalho para todos. E cursos, toda a gente fazia cursos.
O inglês agora canta alto. Uma grazinada.
— A vida é filha da puta, inglês. Disso não sabes tu nada. — o inglês não ouviu.
Bons tempos. Ganhava-se bem. Cheguei a ir à boate e pagar duas ou três garrafas de champanhe. Houve uma época que era quase todas as noites.
Foi mais ou menos por essa altura que se meteram na minha vida e me desmancharam o casamento. Gente invejosa. Já levávamos vinte anos de casados, sempre nos demos bem. Ninguém me tira da ideia que foi obra da minha santa sogra, que deu a volta à cabeça da filha.
E já se avista o rio. O inglês pousou a viola, sacou uma máquina fotográfica da mochila e agora tira fotografias.
Lá na Guiné também tive uma máquina fotográfica. Tirei muitas fotografias, estão lá para casa, três caixas de sapatos cheias. Nunca mais me apeteceu tirar fotografias. Que saberá o inglês do que é estar longe de casa por ser obrigado, e não de vontade; e ainda sujeito a levar um tiro nos cornos ou rebentar-lhe uma mina debaixo dos tomates?
Nunca vou voltar a ter uma máquina fotográfica. Com a reforma de merda que me arranjaram. Eu sei que não se recebe mais porque não se descontou tudo. Mas o Mateus pagava bem, se fosse pagar para a segurança social e para as finanças como eles queriam o que é que sobrava?
E nestes pensamentos chegam ao fim da linha. Sai para o cais suportado pelas canadianas. E só sentiu um encontrão, casual. Ouviu um rebuliço lá para trás. Alguém corria, pelo barulho seriam mais que um. Foi quando deu pela falta da carteira. Conseguiu avistar o inglês a correr veloz e pensou: 'Ah, Malandro! Já me roubou.'
Foi quando o inglês se atirou com um voo digno do Zé Gato, e derrubou um latagão que corria à sua frente. Imobilizou-o quase sem luta, devia ser perito em artes marciais, ai isso devia. De onde estava, o António não conseguia ver bem, porque entretanto tinha-se juntado gente. Mas não demorou muito e viu o latagão a afastar-se e a olhar para trás desconfiado.
Ainda o António não tinha entendido o que se passava, parado no cais, embasbacado sem saber o que fazer, quando sentiu um leve toque no ombro. Voltou-se. Era o inglês:
— Aqui tem a sua carteira, amigo. Até à vista e porte-se bem. — e afastou-se com um sorriso sacana direito a uma rapariga linda que estava ali perto à sua espera... e afinal era português.
Ainda estava ali parado quando veio direito a si nada mais nada menos que o Hilário. Companheiro de tropa, encontravam-se regularmente no almoço da companhia. Um par de abraços.
— Olha lá, ó António, agora também tens amigos gadelhudos?
— Eu? Que conversa é essa?
— Eu vi. Estavas mesmo agora a conversar com um. — e ria.
— Ah, isso foi um que me veio pedir tabaco. Respondi-lhe logo que o meu tabaco não é para gandulos.
um cheque truculento
Quando a tia Deolinda chegou à da sobrinha Beatriz teve a impressão de que mais cinco minutos e já os quatro se teriam agredido a sério.
— Alicinha, o que se passa aqui? Estão todos malucos? Se a minha mana cá voltasse acho que morria outra vez com o desgosto.
— Tá vendo? Até a tia… — e a Beatriz rebenta em pranto.
Beatriz nunca entendeu porque é que a irmã era Alicinha e ela era só Beatriz. Como nunca entendeu porque é que estando as duas juntas se dirigiam sempre à Alicinha. Dizem que os filhos mais novos são sempre os preferidos. Realmente nos largos anos de viuvez foi sempre com ela que a mãe viveu. Visitava a Alice com frequência, mas nunca lá dormia. Claro que nunca abordou o assunto com ela, não fosse pensar que a queria ver pelas costas.
— Não metas cocos na cabeça, mulher. — bem lhe dizia a tia Deolinda.
Mas então porque puxava sempre para a Alicinha, sempre a Alicinha. Sempre roupa em segunda mão. Sempre os livros em segunda mão. Até as bonecas em segunda mão, quando era pequena. Isso até ela entendia, a irmã não tinha culpa de ser mais velha. Mas o que a tirava mesmo dos eixos era o “Alicinha”. Até a doação daquele talhão para fazer a casa foi para a “Alicinha”.
— Ó, mulher, que culpa teve a tua mãe de o teu nome ser Beatriz? Não vês que naquele tempo eram as madrinhas que punham o nome? E uma santa madrinha que tu tiveste.
— Eu sei, tia Deolinda, mas é mais forte do que eu.
O tribunal deu razão à Beatriz no que toca às tornas. Bem, o advogado pediu mil e quinhentos contos, e o juiz sentenciou mil e duzentos. Mas pronto, assim já está bem.
— Aqui está o cheque. — o Marcolino estende o cheque para o cunhado, já na sala. — Nós somos ricos, o nosso trabalho não custa. — resmunga.
— Olha lá! Porque não disseste isso ao juiz, heim? Ou queres agora voltar tudo ao princípio?
E continuaram a esgrimir argumentos cada vez mais acalorados.
Por seu lado a Alice sempre se achou preterida. Como qualquer irmã mais velha, no caso dela eram seis anos, sentia-se roubada nos afectos. Porque é que a mãe só vivia na casa da Beatriz? Só ela é que era filha? Também ela precisou de ajuda, principalmente quando o Jorginho era mais pequeno. E onde estava a mãe? Sempre na casa da Beatriz. A sogra também nunca lá ficava. Sim, sei que às vezes posso ser muito exigente, quero as coisas à minha maneira. Mas a casa não é minha? Toda a gente quer as coisas à sua maneira. Não é andarem por casa com o calçado que usam na rua. Provarem a comida e voltarem a meter a colher no tacho, isso é que não. Se quero receber as minhas amigas da igreja gosto de estar à vontade, não gosto que me façam caras de censura. A casa é minha!
Mas o pior estava para vir, quando deram porque nem um nem o outro tinha o cheque.
— Querem lá ver que fui eu que comi o cheque? — e o Fernando soprava.
— Pois! Tu não foste, mas fui eu, que não sou tão sério como tu!
— O que é que queres dizer com isso?
Quando o Fernando trabalhava nas finanças teve uma vez um processo disciplinar por uns fundos que não apareciam. Veio-se a provar que se tratava de um erro do sistema e que ele estava completamente inocente. Mas o surgir da suspeita é fácil, o limpar da imagem é impossível. Toda a gente sabe.
— Vocês não me vão dizer que deram fim ao cheque. Fui eu que o assinei, não me vão dizer que não existe? — Alice voltava-se para o cunhado.
— Se calhar foi como os cheques do Eduardo e do Diniz… — a Beatriz, que ainda não se tinha metido na conversa.
Quando a crise começou a apertar e o Marcolino teve que despedir os dois carpinteiros, diz-se que os primeiros cheques da indemnização que lhes passou não tinham cobertura.
Foi no preciso momento em que a Alice ia explodir por causa da insinuação da irmã que chegou a tia Deolinda.
— Já vocês se deram ao trabalho de procurar bem a ver se encontram o cheque? Às vezes as coisas escapam-nos das mãos sem darmos por isso. Já me tem acontecido. E às vezes metem-se em sítios que não lembraria ao diabo.
Alice benze-se.
Todos contrariados lá começaram à procura do cheque. Vasculharam tudo o que lhes veio à ideia, e nada.
— O melhor é ir mandar encomendar o cheque à tia Belarmina. — opina a tia Deolinda.
— Oh, tia, isso não é coisa de Deus. — a Alicinha até ficou ofendida.
— Olhem, eu não passo mais cheque nenhum e passem bem. — e o Marcolino pega no braço da Alicinha — Vamos embora.
Foi como azeite no lume. Recomeçaram os gritos e as acusações mútuas...
Até que...
— Vamos mas é ter juízo que o Paulinho está a chegar e não quero que o meu filho veja cenas destas. — o Fernando vê a carrinha da cooperativa de ensino especial a fazer a curva da ponte.
Mas não adianta terem-se calado.
— Porque estão com essas caras? — ainda antes de cumprimentar já o Paulinho inquiria.
— Quais caras?
— Não vale a pena quererem enganar-me.
— Está bem. Um cheque desapareceu das nossas mãos aqui dentro da sala, com tudo fechado, e não o conseguimos encontrar. — explica a Beatriz. Ninguém o conhece melhor que a mãe.
Paulinho faz um gesto com a mão a indicar que não precisa saber mais nada. Fecha os olhos por breves segundos, e começa na busca. Sobe a uma cadeira de maneira a avistar o topos de todos os móveis. Depois espreita por baixo dos mesmos, onde lhe é possível. Verifica todas as ranhuras, incluindo por baixo de portas e gavetas.
— Só falta ver debaixo da estante. Têm que me ajudar a desviá-la.
— Tu estás maluco, Paulinho? — opina o tio Marcolino. — A estante está colada ao chão. Lá é que não pode mesmo estar.
— Voilà! Procurar sempre onde os outros sabem que não pode estar! — e o Paulinho já festeja vitória.
Lá se convenceram a desviar a pesada estante cheia de livros com encadernações de luxo, quase todos só lidos pelo Paulinho, e perante o espanto de todos, lá está o cheque.
faces da crise
Toca o telemóvel:
— Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
— ...
— Ah, sim, sim. Faço trabalhos especializados de limpeza de casas.
— ...
— Depende muito. Há certas casas, onde viveram pessoas com energias muitos negativas durante várias gerações, e se tornam muito complicadas. Já tive uma que tive que queimar três velas, em duas sessões. Por vezes são fáceis. Só posso fazer orçamento caso a caso.
— ...
— Então fica combinado. Até amanhã.
Dona Lucinda tem dificuldade em lidar com o tempo, agora que os miúdos já não são miúdos.
— Cindinha, também já não me faltam muitos anos para a reforma e depois já estamos ambos livres para nos fazermos companhia.
— Não?! Pelo menos sete!
O marido calou-se. Contra factos...
Ela reformou-se cedo, do banco.
— Ora vamos lá a mais uma sessão. Ponha-se à vontade, Dona Lucinda, já sabe como é. Com estas sessões a senhora já se vai sentindo mais relaxada. Mas o grande problema é a Lua em Saturno, que acho que não vai lá só com massagens. Se não der resultado teremos que fazer umas três ou quatro sessões de hipnose regressiva.
— E onde é que vou fazer essas sessões de hipnose, menina?
Cidália não responde de imediato. Concentra-se uns bons minutos massajando os glúteos ainda firmes, apesar dos cinquenta e quatro.
— Faz aqui mesmo. Eu mesma faço, dona Lucinda.
Dona Lucinda voltou ligeiramente o rosto da almofada para mirá-la com ar avaliador. Passou na avaliação.
Toca o telemóvel.
— Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
— ...
— Sim, tenha a gentileza de passar por cá na segunda-feira para analisarmos o seu caso.
E Cidália explica a Dona Lucinda:
— Na minha profissão tenho que subir ou baixar o nível da conversa conforme com quem falo.
Com a concentração do comércio nas grandes superfícies, inevitavelmente aquele comércio personalizado, mercearias, drogarias, lojas de roupas, sentiu-se e muito. O patrão da Cidália Pires não foi excepção. Começou por reduzir o pessoal, mas mesmo assim não aguentou, e teve que encerrar a loja de pronto-a-vestir de Odemano. Para agravar a situação, também o marido da Cidália passou de uma situação em que nunca lhe faltava trabalho na cofragem, para ter que andar quase a implorar a amigos por uns biscates aqui ou além. Os miúdos a crescer e a crescerem as despesas proporcionalmente.
Mas a Cidália nunca foi mulher de se render. Investiu a indemnização quase toda em cursos que lhe pudessem render alguma coisa. Começou pela manicura, mas a competição era enorme. Depressa saltou para a cartomancia, a numerologia, e por aí fora. Aprendeu que em tempos complicados as pessoas recorrem a tudo para tentar enganar a sorte, só é preciso agarrar essa oportunidade.
— Ponha-se à vontade, dona Lucinda. Afrouxe a roupa, tire os sapatos, estenda-se neste divã e relaxe ao som das taças tibetanas. A hipnose vai com certeza resolver o problema.
Como habitualmente, lá vem o toque do telemóvel:
— Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
— ...
— Sim! Posso tentar, nem sempre consigo, mas posso tentar. Já curei um caso de hérnia indignal. Dessas ainda não, mas posso tentar.
— ...
Dona Lucinda abotoou-se, calçou-se, pegou na carteira e saiu sorrateiramente sem a Cidália dar por isso. Quando chegou à rua correu, correu, quase até lhe faltar o ar.
À noite, de cada vez que começava a deixar-se ir no sono mergulhava num pesadelo. Era um espaço infinito em todas as direcções. E de todas as direcções surgiam faces humanas deformadas que cresciam à medida que se aproximavam e aumentava a intensidade dos gritos mais ou menos estridentes, sempre repetindo as mesmas palavras, numa berraria muito pior que insuportável:
«HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL ...»
Cindinha acordava banhada em suor e tremia, e tremia…
mel e limão
Oito horas de uma noite de inverno. Carlos bem acena aos táxis, que tratam de acelerar ao verem os dois homens corpulentos de braço dado. O mais velho parece ter uma daquelas bebedeiras como há muitos anos não apanha uma.
Carlos lembra-se duma vez em que ele se demorou mais que a conta. Moravam na quinta. A mãe saiu com eles pela mão. Devia ter uns oito anos e a Carolina uns cinco.
— Mãe, onde é que vamos à procura do pai?
Que saberia ela? Só sabia que já não conseguia estar em casa. Que um escuro pesado e sufocante descia sobre tudo e a obrigava a sair. Pelo menos na rua havia estrelas no céu. Seguiram pela estrada nova. O "Quatro-Olhos" acompanhava e sempre dava ousio. Chamavam-lhe "Quatro-Olhos" por ter uma pinta branca acima de cada olho, a contrastar com o castanho escuro do resto do pêlo. Ao longe, no outro lado da ribeira viam-se as luzes amareladas e mortiças da Alcaria Nova, onde já havia luz eléctrica. Não passava vivalma na estrada. Ouviam-se as rãs lá em baixo na ribeira. Um ou outro mocho piava de vez em quando. Não fazia lua, mas via-se bem a estrada com o brilho das estrelas.
Mesmo ao começar da descida para a ponte de São Cristóvão apareceu um carro na curva.
— Cuidado! Desviem-se para a berma!
O carro parou um pouco depois de passar por eles. Era o pai, o Aldemiro, grande amigo, foram tropa juntos, e o chofer, que o Carlos não conhecia, mas devia ser amigo também. O pai quis apear-se, mas não se equilibrava. E ria, ria.
Agora está tal e qual, ri, e ri. E tem o Carlos de o levar pelo braço, que não se equilibra. Por mais que tente não consegue que nenhum táxi pare. Consegue a custo fazê-lo subir para o autocarro. Depois outro autocarro. Depois o barco. No barco toldou-se ainda mais. Atrasa e adianta o relógio ao acaso e teima com os outros passageiros por causa das horas. Carlos piscava o olho aos outros e eles deviam entender que era bebedeira. Que adiantaria estar a explicar? Depois o comboio. Aí já foi mais calmo. Finalmente adormeceu aconchegado na samarra.
Falta de lembrança de ter pedido à senhora do consultório para chamar um táxi. Mas como é que ia prever o efeito retardado da anestesia, se o pai estava tão lúcido e equilibrado mesmo já um bocado depois de sair do consultório. Ainda pensou em voltar para trás a ver se havia alguém no consultório, mas lembrou-se de que a senhora já estava a vestir o casaco quando se despediram e o médico já tinha saído. A consulta até foi rápida, mas ele bem se queixava de que doía. Pudera, a anestesia ainda não tinha feito efeito.
— Ó Carlos, já reparaste que o teu pai está sempre tossindo?
Não era bem tossir, era mais um pigarrear constante. E toda a gente já tinha reparado.
— Ele não devia fumar tanto. — era opinião generalizada.
Convenceram-no a consultar o doutor Castro, um reputado otorrinolaringologista de Odemano.
De facto, foi a primeira coisa que lhe tirou, o tabaco. Ninguém acreditava que o Joaquim do Vale fosse capaz de deixar de fumar, mas foi.
Dantes, quando jogava à sueca, estava sempre de cigarro na boca. Agora implicava com os outros, que lhe incomodava o tabaco. Engordou muito, chegou a pesar mais de cento e vinte quilos.
— Tu fumas muito, Carlos!
— Diz o roto ao nu. — e o Carlos ria.
— Eu nunca fumei como tu fumas.
— Pois...
Mas o pigarro não desapareceu.
— Senhor Joaquim, não tenha medo, isto é só para ficarmos descansados. Mas vou-lhe marcar uma biópsia para um colega meu em Lisboa...
— O que é isso, senhor doutor?
— Ele vai tirar um bocadinho de carne aí da garganta, assim do tamanho dum bago de arroz. Não vai doer nada.
Passaram alguns anos depois de o resultado da biópsia não ter acusado nada de cuidado. O que não passou foi o pigarro. O doutor Castro bem receitou xaropes, comprimidos, até injecções, mas o pigarro resistia mais que as ervas daninhas da horta.
— Estanazar?
— Não! Salazar!
— Ah, Estanazar. Nunca tinha ouvido tal nome!
O pai do Joaquim do Vale era de tal maneira surdo que nunca chegou a saber como se chamava o Salazar. O Joaquim, embora mais tardio, começou a acusar o peso dos genes. Já o doutor Castro tinha morrido sem dar conta do pigarro resistente. Foi preciso consultar outro otorrino. Aconselharam-no a consultar um médico jovem, da idade do Carlos, que tinha acabado de montar consultório em Almadrava, mas já estava a ganhar fama.
— Olhe lá, senhor Joaquim, está constipado?
— Não, senhor doutor. Esta tosse anda comigo há anos.
— E nunca consultou nenhum médico?
— Oh, se consultei! Anos e anos com o doutor Castro, não sei se o senhor doutor conheceu. Morreu o ano passado.
— Há dois anos. Conheci muito bem. Um grande médico, amigo do meu pai e meu amigo. Aprendi muito com ele. E ele não deu com o mal?
— Não! Até a Lisboa fui, fazer uma biópsia.
— Ah, e não acusou nada?
— Nada!
— E está a tomar alguma coisa que ele tenha receitado?
— Já não! Ele mesmo desistiu. Que não conseguia encontrar nada que acabasse com isto. Tomo é todos os dias de manhã e à noite mel com limão.
— Hm, há muitos anos?
— Uns quinze, talvez, antes de consultar o doutor Castro já tomava.
— Pois vai deixar de tomar. E daqui a três meses quando cá voltar por causa dos ouvidos logo me conta.
E era uma vez um pigarro.
Explicou o doutor novo que o limão servia para irritar a garganta e o mel para o fixar.
o padre vermelho
— Sabes bem que não gosto de comprar pão fatiado. Seca num instante.
— Sim! Mas este pão do Vale do Pato é o melhor. Até havia lá muito, mas todo fatiado.
Não é a primeira vez que o Jaime repara que o pão fatiado é o que mais sobra. Porque será que insistem em fatiar o pão se ninguém lhe pega?
O Manuel sempre foi um personagem apagado. Já na escola primária nunca se oferecia para responder. Nem na escola, nem na tropa, nem no trabalho, em nenhum dos vários trabalhos que teve, nunca se oferece para nada.
— Quem não aproveita as oportunidades nunca passa da cepa torta, e olha que elas passam na nossa frente uma só vez. — O Jaime tem sempre presente este conselho do velhote. É verdade que acabou afogado em dívidas, mas como é que ele podia prever que a construção iria sofrer uma crise como esta? Não foi culpa dele, que foi sempre um empresário com olho.
Como daquela vez que comprou aquele terreno que não valia nada e olha depois com a aprovação do PDM como conseguiu que ficasse incluído na zona industrial. É preciso cultivar as amizades certas.
— Certas e bem oleadas. — como ele dizia, com uma piscadela de olho. O Jaime acha que tem que ter alguma ideia assim brilhante. O jornal local, que dirige, está com dificuldades.
O Manuel não tem amigos, não por ser má pessoa, mas porque não frequenta cafés, não vai à bola, nunca teve jeito nenhum para o sexo oposto, não vai à missa, não é bombeiro. Antigamente ia à pesca, passava todo o tempo livre na pesca, mas desinteressou-se desde que o peixe sabe a esgoto.
De há uns anos para cá gasta o tempo livre a passear pelas ruas, sem destino. Foi nesses passeios que notou tanta gente a remexer no lixo. Ao princípio era gente que lhe parecia porca, suja, demente. Mas nos últimos anos aparece gente limpa, gente com roupa lavada, gente que disfarça quando ele se aproxima. Ganhou o hábito de ir assobiando, coisa de que só se lembra de fazer quando era moço. Mas assim deixa que dêem pela sua aproximação e não se sintam humilhados.
— Jaime! E se tu voltasses a dar explicações. Não precisavas de deixar o jornal e sempre era mais esse que entrava. — lá vinha a mulher com a conversa, cada vez mais frequente.
— Espera mais algum tempo. O que eu preciso é de algum furo que projecte o jornal. O meu pai dizia que de repente pode aparecer-nos na frente a oportunidade, temos que estar atentos. — Ela olhava-o, a princípio com admiração, mas cada vez mais com algum desdém, embora fizesse tudo por disfarçar.
O Manuel aproximou-se timidamente da senhora que saía da instituição com ar apressado.
— Precisam aqui de voluntários para ajudar?
Foi assim que passou a ajudar os sem-abrigo. Uns sem abrigo por todo o corpo e outros apenas sem abrigo por baixo da pele. Muita fome há por aí escondida.
O Jaime, sem saber porquê, volta a pensar no pão fatiado. Passa pelo hipermercado e lá está, nove da noite e as prateleiras cheias de pão fatiado. Do inteiro nicles. Estes gajos não sabem trabalhar, pensa. Mas, sem dar por isso, volta lá, e torna a voltar.
O Manuel nunca dá nas vistas e inspira confiança a qualquer chefe. Já teve vários trabalhos e nunca foi despedido de nenhum, a não ser daqueles em que a empresa encerrou, que foram quatro. Nos outros dois foi ele que se despediu por encontrar melhor.
Torna-se obsessão. Sempre o cenário é parecido. Umas vezes mais, outras menos, mas sempre excesso de sobras de pão fatiado.
O último trabalho do Manuel é na reposição do hipermercado. Reposição dos produtos de padaria é o que mais gosta.
— Manuel, esta máquina serve para fatiar o pão. Tens que ter cuidado com os dedos!
Depois veio outra mais segura, para a fazer cortar tens que ter as duas mãos a carregar os botões, um de cada lado; assim é impossível ter alguma das mãos ao mesmo tempo na frente da lâmina. Há invenções geniais.
Sábado à noite. O Jaime está no carro, de luzes apagadas, e confirma as suspeitas que se têm vindo a formar na sua cabeça. O funcionário sai pelas porta de serviço do hipermercado com um carrinho a caminho do contentor do lixo. Ao regressar deposita um saco num triciclo estacionado. E volta lá para dentro. Jaime espera. O mesmo funcionário sai algum tempo depois, já sem a farda do hipermercado, monta no triciclo vai-se embora. Jaime segue o triciclo.
— Aqui tem o seu cafezinho, senhor padre.
— Obrigado, Tino.
— Senhor padre, já leu a primeira página d"O Megafone"?
— Não! Alguma coisa com interesse?
— Está aqui! Leia, leia...
"GOLPE ENGENHOSO NO HIPERMERCADO
O meliante Manuel da Silva Custódio apanhado pelo nosso jornal a vigarizar o hipermercado tal e tal... Ele ganhou a confiança dos patrões e então fatiava pão em demasia, que toda a gente sabe que não tem saída, e no fim do dia levava-o para a Casa de Acolhimento do Espírito Santo, ludibriando assim o honesto comerciante, e tal e tal e tal..."
O padre Correia, conhecido popularmente por "Padre Vermelho" devido às suas tendências a favor dos desprotegidos, acabou de ler, dobrou o jornal e não disse nada.
— Então, senhor padre? — Celestino está impaciente por ouvir a opinião do padre.
O padre como que voltou a este mundo:
— Meu filho, nunca confundas golpes baixos com golpes dos de baixo. E já agora por falar em golpes dos de baixo, traz-me lá um cálice daquele medronho que tu tens escondido por causa da ASAE.
4 de fevereiro
O barulho forte e cavernoso fez-se sentir sem aviso. A Henriqueta correu a procurar o terço e a fechar as janelas e as portas. Não sem antes chamar pelo Carlos, que andava brincando, com um buldózer feito duma pedra da ribeira com veios de sílex, junto ao caminho da chã.
— Diz-se que é no dia 4 de Fevereiro, vizinha Tereza. Eu cá para mim tanto se me dá.
— Não diga isso, senhora. — e a vizinha Tereza persignava-se. — Tome lá o meio quartilho e não diga mais blasfémias.
— Com a minha idade é que me vou importar com isso! Anda Bonita! — e lá foi sentada de lado na albarda da burra pachorrenta.
A Henriqueta fazia que não ouvia a conversa da sogra e das vizinhas.
— Brrrrrr Brrrrrr Brrrrrr...
O Carlos passava os dias a surribar terra com o buldózer de pedra. Fazia os socalcos, os caminhos. Compunha a quinta e quando estava tudo acabado, destruía. O prazer estava no fazer, não na obra feita.
— Vizinha Guilhermina, é a garrafa do petróleo e pese-me duzentas gramas de açúcar.
— Já vomecê ouviu falar do 4 de Fevereiro?
— Já ouvi falar, já. Para mim já não deve demorar muito, não.
— Deixe-se de blasfémias.
— Ó, vizinha Guilhermina, quantas vezes é que eu já ouvi falar? Quando eu era gaiata já falavam no fim do mundo. Um dia há-de ser. Antes tarde que cedo. — e ria. — Anda Bonita, que ainda temos que passar ao poço.
Quando era tempo de chuva é que ele adorava. Aí fazia barragens nos regatos. Até no barranco ele chegou a fazer. Barro e varas para segurar. Complicados sistemas de descarga. A preocupação era descarregar sem rasgar a terra. Usava canas, chegou a usar telhas.
— Vizinho Maurício, ajude-me aqui a encher os cântaros, que me custa a descer da burra. Bem como me custa mais a descer que a subir. Vomecê já ouviu falar no fim do mundo?
Quando chovia muito e não dava para sair, gostava de ficar a fazer coisas de canoira de milho, de cana, de cortiça, de arame de fardo de palha. Carlos nunca se aborrecia, o tempo nunca sobrava, era sempre pouco.
— Carlos, anda almoçar! — era sempre preciso chamá-lo.
Se adoecia resistia, porque a mãe mandava-o para a cama.
— Lá na sua aldeia também já ouviu falar no fim do mundo, Dona Henriqueta?
— É toda a gente, senhor João. Eu tenho muito respeito.
— Oh Dona Henriqueta, eu já tenho quase sessenta e já nem sei quantas vezes assisti a boatos destes.
Henriqueta calou-se.
Uma vez resistiu tanto que quando a mãe se apercebeu que ele estava doente já não se aguentava de pé. Teve que lá ir o Doutor Matias a casa.
— Seu malandro, podias não escapar desta.
E disse um nome tão esquisito para a doença que nunca o decoraram. Uma injecção na altura e uns comprimidos.
— Ele não consegue tomar comprimidos, senhor doutor. É melhor passar injecções se houver em injecções.
— Essa agora! Haver há, mas olhe que nunca tinha visto tal coisa! Vá lá que vocês aqui têm sorte, têm a Marília que dá injecções a toda a gente. — e riu.
A Henriqueta era alentejana. Nem pai, nem mãe, nem irmãs, nem irmãos, ninguém ia à missa. Nunca se soube donde veio a sua devoção. Mas era muito devota e temente a Deus.
Com o barulho correu a fechar as janelas e as portas, a rezar e a chamar o filho:
— Carlos! Carlos! Anda para casa!
O Carlos veio a correr, mas não para casa, veio buscá-la para irem ver se o chofer da camioneta tinha ficado mal. Ele viu tudo. A camioneta não fez a curva e derrubou três marcos daqueles que se usavam, ligados por cabos de aço, para evitar que os carros rebolassem pelos taludes. Derrubou três marcos e ainda foi derrubar o marco do quilómetro vinte e cinco, que ficava a mais de vinte metros...
Era 4 de Fevereiro de 1961, o chofer ia sozinho e não ficou mal.
* Facto notável: a data de 4 de Fevereiro de 1961 é tida por muitos como a data do início da luta armada em Angola
uma cerveja
Depois, muitos alarmados pelo PREC, outros por gosto, outros por verem os outros, outros porque sim, quase cada homem da zona comprou uma espingarda. Hoje há mais caçadores que há caça, segundo dizem.
Nem sempre assim foi. Não há muitas décadas havia quem vivesse do que conseguia com a espingarda, e que iam vender à vila. Conta-se, talvez com o exagero próprio das lendas, que havia quem levasse o burro carregado duas vezes por dia, uma de manhã e outra à tarde; lebres, coelhos, perdizes, codornizes, tordos, rolas, pombos bravos, que o marido caçava.
Nesse tempo o Gregório era um dos caçadores que não fazia mais nada para ganhar a vida. Hoje ninguém sabe do que vive, e também ninguém quer saber. O certo é que tem dinheiro e gosta de exibi-lo. Mais de uma vez já aconteceu serem vizinhos que lhe valeram nas feiras, quando, por sorte, deram com ele a mostrar a carteira bem recheada e um público demasiado interessado a cercá-lo, a cercá-lo.
— Quer beber uma cerveja, senhor Carlos, pago eu?
O Carlos olhou o homem com curiosidade. Tinha lá almoçado algumas vezes, bebido uma cerveja ou outra, de vez em quando. Não tinha nenhuma confiança especial com o taberneiro, que tinha fama de forreta. A que propósito vinha agora a oferta? Desconfiado, mas aceitou; não via qualquer razão para recusar, afinal foi para beber uma cerveja que lá entrou.
Dois dedos de conversa. O negócio está mau, a vizinhança não é boa, etc. e tal.
— Sabe quem morreu?
— Não! Não sei!
— Era lá dos seus lados. Mas mora ali atrás. O Armando Correia.
Carlos ficou sem pinga de sangue, querem lá ver que este alarve me pagou a cerveja para festejar a morte do outro. Despediu-se quase sem palavras. A cerveja não lhe caiu bem. Teve desejos de vomitá-la, não conseguiu.
Não era que o Armando Correia lhe inspirasse a mais leve simpatia. Lembrava-se até da primeira vez que o viu e ouviu o seu nome. Devia ter uns oito ou nove anos. Andava brincado perto da estrada, entre as figueiras, atrás dos passarinhos, quando o tractor rebolou pelo aterro abaixo. Coitado do tractorista preso e entalado com o óleo quente a derramar-se-lhe por cima das pernas. Correu a procurar gente para avisar.
Veio uma multidão. Tiraram o homem, mais tarde soube que se salvou. De quem era o tractor? Ouviu-o de um dos presentes em voz baixa com outro:
— Aquele que chegou agora é o dono do tractor, o Armando Correia. Aquilo é um canzil e um caloteiro do piorio.
O Carlos veio a confirmá-lo muito mais tarde, já depois de crescido. Não era pouco provável que o taberneiro tivesse fortes razões para não gostar dele. Mas porra! Daí até festejar a sua morte?
O Gregório é um janota. O hábito de vê-lo sair sempre aperaltado faz que nem nos interroguemos como o consegue. Já que vive só. A mulher foi-se embora com as filhas há décadas. Também ninguém sabe porquê, nem quer saber. A casa onde vive, e onde ninguém mais vai, vista de longe parece um pardieiro. Ninguém dirá que mora lá gente, e muito menos gente janota. Foi emprestada ao seu bisavô por um compadre, a troco de uns favores de que já ninguém se lembra. Ali nasceram e se criaram trinta e sete almas desde então.
Um dos descendentes do tal compadre, por sinal ajudante de um notário de Lisboa, conseguiu há quinze anos reunir outros descendentes e vender a casa ao João Ratinho, que tinha direito de preferência. A reserva de usufruto enquanto vida ficou assegurada para o Gregório, contra a vontade do comprador. O Ratinho é um ganancioso bem conhecido por toda a vizinhança.
Uns meses depois do episódio da cerveja, Carlos cruzou-se com o Armando Correia na estrada. Nunca tinha pensado vir alguma vez a sentir satisfação por ver o Armando Correia, e bem vivo. O que tinha acontecido é que este Armando Correia era o júnior, o que morreu e veio a notícia no DN era o sénior.
Agora está o Carlos sentado sozinho no lado de fora, mesmo à entrada do café, quando o João Ratinho assoma lá à curva. Reconhece-o e não estranha, deve vir à procura do cantoneiro da água da barragem. Mas, quando ele passa pelo cantoneiro e continua direito ao café, já estranha. O Ratinho nunca entra em cafés a não ser para falar com alguém. De repente, sem saber porquê, surge-lhe a imagem do taberneiro e da cerveja de anos atrás. É por isso que já está à defesa quando o Ratinho se lhe dirige.
— Carlos, queres beber uma cerveja?
Uma sensação arrepiante percorre-lhe a espinha.
— Não, obrigado!
O Ratinho entrou no café. Quando sai entrou o Carlos.
— Ai vocês foram beber as cervejas pagas pelo Ratinho?! Já vocês viram alguma vez o João Ratinho pagar alguma coisa a alguém?
— Tu não me digas… — parece que ao Joaquim do Vale lhe assomou a suspeita, talvez pela cara do Carlos.
Realmente a cada um tinha parecido estranho o convite.
— Digo sim, pai! Vão a ver que morreu o Gregório. Era quase capaz de jurar.
Olharam uns para os outros com ar de quem já não entende nada do mundo.
— Eu não sou capaz de acreditar numa coisa dessas.
— Acredite, tio Constantino! Eu não caí porque já não seria a primeira vez que me acontecia coisa parecida.
— Ai, filho dum cabrão! Tu não me digas uma coisa dessas. — e cuspia o resto da cerveja que ainda tinha na boca e agora lhe sabia mal. Muito mal.