faces da crise

    — Dona Lucinda, quando doer diga. Está muito tensa. Nada que não se resolva. Para já vamos tentar estas sessões de massagem com óleo de abacate.
    Toca o telemóvel:
    — Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
    — ...
    — Ah, sim, sim. Faço trabalhos especializados de limpeza de casas.
    — ...
    — Depende muito. Há certas casas, onde viveram pessoas com energias muitos negativas durante várias gerações, e se tornam muito complicadas. Já tive uma que tive que queimar três velas, em duas sessões. Por vezes são fáceis. Só posso fazer orçamento caso a caso.
    — ...
    — Então fica combinado. Até amanhã.

    Dona Lucinda tem dificuldade em lidar com o tempo, agora que os miúdos já não são miúdos.
    — Cindinha, também já não me faltam muitos anos para a reforma e depois já estamos ambos livres para nos fazermos companhia.
    — Não?! Pelo menos sete!
    O marido calou-se. Contra factos...
    Ela reformou-se cedo, do banco.

    — Ora vamos lá a mais uma sessão. Ponha-se à vontade, Dona Lucinda, já sabe como é. Com estas sessões a senhora já se vai sentindo mais relaxada. Mas o grande problema é a Lua em Saturno, que acho que não vai lá só com massagens. Se não der resultado teremos que fazer umas três ou quatro sessões de hipnose regressiva.
    — E onde é que vou fazer essas sessões de hipnose, menina?
    Cidália não responde de imediato. Concentra-se uns bons minutos massajando os glúteos ainda firmes, apesar dos cinquenta e quatro.
    — Faz aqui mesmo. Eu mesma faço, dona Lucinda.
    Dona Lucinda voltou ligeiramente o rosto da almofada para mirá-la com ar avaliador. Passou na avaliação.
    Toca o telemóvel.
    — Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
    — ...
    — Sim, tenha a gentileza de passar por cá na segunda-feira para analisarmos o seu caso.
    E Cidália explica a Dona Lucinda:
    — Na minha profissão tenho que subir ou baixar o nível da conversa conforme com quem falo.

    Com a concentração do comércio nas grandes superfícies, inevitavelmente aquele comércio personalizado, mercearias, drogarias, lojas de roupas, sentiu-se e muito. O patrão da Cidália Pires não foi excepção. Começou por reduzir o pessoal, mas mesmo assim não aguentou, e teve que encerrar a loja de pronto-a-vestir de Odemano. Para agravar a situação, também o marido da Cidália passou de uma situação em que nunca lhe faltava trabalho na cofragem, para ter que andar quase a implorar a amigos por uns biscates aqui ou além. Os miúdos a crescer e a crescerem as despesas proporcionalmente.
    Mas a Cidália nunca foi mulher de se render. Investiu a indemnização quase toda em cursos que lhe pudessem render alguma coisa. Começou pela manicura, mas a competição era enorme. Depressa saltou para a cartomancia, a numerologia, e por aí fora. Aprendeu que em tempos complicados as pessoas recorrem a tudo para tentar enganar a sorte, só é preciso agarrar essa oportunidade.

    — Ponha-se à vontade, dona Lucinda. Afrouxe a roupa, tire os sapatos, estenda-se neste divã e relaxe ao som das taças tibetanas. A hipnose vai com certeza resolver o problema.
    Como habitualmente, lá vem o toque do telemóvel:
    — Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
    — ...
    — Sim! Posso tentar, nem sempre consigo, mas posso tentar. Já curei um caso de hérnia indignal. Dessas ainda não, mas posso tentar.
    — ...
    Dona Lucinda abotoou-se, calçou-se, pegou na carteira e saiu sorrateiramente sem a Cidália dar por isso. Quando chegou à rua correu, correu, quase até lhe faltar o ar.

    À noite, de cada vez que começava a deixar-se ir no sono mergulhava num pesadelo. Era um espaço infinito em todas as direcções. E de todas as direcções surgiam faces humanas deformadas que cresciam à medida que se aproximavam e aumentava a intensidade dos gritos mais ou menos estridentes, sempre repetindo as mesmas palavras, numa berraria muito pior que insuportável:
    «HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL ...»
    Cindinha acordava banhada em suor e tremia, e tremia…



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