Quando a tia Deolinda chegou à da sobrinha Beatriz teve a impressão de que mais cinco minutos e já os quatro se teriam agredido a sério.
— Alicinha, o que se passa aqui? Estão todos malucos? Se a minha mana cá voltasse acho que morria outra vez com o desgosto.
— Tá vendo? Até a tia… — e a Beatriz rebenta em pranto.
Beatriz nunca entendeu porque é que a irmã era Alicinha e ela era só Beatriz. Como nunca entendeu porque é que estando as duas juntas se dirigiam sempre à Alicinha. Dizem que os filhos mais novos são sempre os preferidos. Realmente nos largos anos de viuvez foi sempre com ela que a mãe viveu. Visitava a Alice com frequência, mas nunca lá dormia. Claro que nunca abordou o assunto com ela, não fosse pensar que a queria ver pelas costas.
— Não metas cocos na cabeça, mulher. — bem lhe dizia a tia Deolinda.
Mas então porque puxava sempre para a Alicinha, sempre a Alicinha. Sempre roupa em segunda mão. Sempre os livros em segunda mão. Até as bonecas em segunda mão, quando era pequena. Isso até ela entendia, a irmã não tinha culpa de ser mais velha. Mas o que a tirava mesmo dos eixos era o “Alicinha”. Até a doação daquele talhão para fazer a casa foi para a “Alicinha”.
— Ó, mulher, que culpa teve a tua mãe de o teu nome ser Beatriz? Não vês que naquele tempo eram as madrinhas que punham o nome? E uma santa madrinha que tu tiveste.
— Eu sei, tia Deolinda, mas é mais forte do que eu.
O tribunal deu razão à Beatriz no que toca às tornas. Bem, o advogado pediu mil e quinhentos contos, e o juiz sentenciou mil e duzentos. Mas pronto, assim já está bem.
— Aqui está o cheque. — o Marcolino estende o cheque para o cunhado, já na sala. — Nós somos ricos, o nosso trabalho não custa. — resmunga.
— Olha lá! Porque não disseste isso ao juiz, heim? Ou queres agora voltar tudo ao princípio?
E continuaram a esgrimir argumentos cada vez mais acalorados.
Por seu lado a Alice sempre se achou preterida. Como qualquer irmã mais velha, no caso dela eram seis anos, sentia-se roubada nos afectos. Porque é que a mãe só vivia na casa da Beatriz? Só ela é que era filha? Também ela precisou de ajuda, principalmente quando o Jorginho era mais pequeno. E onde estava a mãe? Sempre na casa da Beatriz. A sogra também nunca lá ficava. Sim, sei que às vezes posso ser muito exigente, quero as coisas à minha maneira. Mas a casa não é minha? Toda a gente quer as coisas à sua maneira. Não é andarem por casa com o calçado que usam na rua. Provarem a comida e voltarem a meter a colher no tacho, isso é que não. Se quero receber as minhas amigas da igreja gosto de estar à vontade, não gosto que me façam caras de censura. A casa é minha!
Mas o pior estava para vir, quando deram porque nem um nem o outro tinha o cheque.
— Querem lá ver que fui eu que comi o cheque? — e o Fernando soprava.
— Pois! Tu não foste, mas fui eu, que não sou tão sério como tu!
— O que é que queres dizer com isso?
Quando o Fernando trabalhava nas finanças teve uma vez um processo disciplinar por uns fundos que não apareciam. Veio-se a provar que se tratava de um erro do sistema e que ele estava completamente inocente. Mas o surgir da suspeita é fácil, o limpar da imagem é impossível. Toda a gente sabe.
— Vocês não me vão dizer que deram fim ao cheque. Fui eu que o assinei, não me vão dizer que não existe? — Alice voltava-se para o cunhado.
— Se calhar foi como os cheques do Eduardo e do Diniz… — a Beatriz, que ainda não se tinha metido na conversa.
Quando a crise começou a apertar e o Marcolino teve que despedir os dois carpinteiros, diz-se que os primeiros cheques da indemnização que lhes passou não tinham cobertura.
Foi no preciso momento em que a Alice ia explodir por causa da insinuação da irmã que chegou a tia Deolinda.
— Já vocês se deram ao trabalho de procurar bem a ver se encontram o cheque? Às vezes as coisas escapam-nos das mãos sem darmos por isso. Já me tem acontecido. E às vezes metem-se em sítios que não lembraria ao diabo.
Alice benze-se.
Todos contrariados lá começaram à procura do cheque. Vasculharam tudo o que lhes veio à ideia, e nada.
— O melhor é ir mandar encomendar o cheque à tia Belarmina. — opina a tia Deolinda.
— Oh, tia, isso não é coisa de Deus. — a Alicinha até ficou ofendida.
— Olhem, eu não passo mais cheque nenhum e passem bem. — e o Marcolino pega no braço da Alicinha — Vamos embora.
Foi como azeite no lume. Recomeçaram os gritos e as acusações mútuas...
Até que...
— Vamos mas é ter juízo que o Paulinho está a chegar e não quero que o meu filho veja cenas destas. — o Fernando vê a carrinha da cooperativa de ensino especial a fazer a curva da ponte.
Mas não adianta terem-se calado.
— Porque estão com essas caras? — ainda antes de cumprimentar já o Paulinho inquiria.
— Quais caras?
— Não vale a pena quererem enganar-me.
— Está bem. Um cheque desapareceu das nossas mãos aqui dentro da sala, com tudo fechado, e não o conseguimos encontrar. — explica a Beatriz. Ninguém o conhece melhor que a mãe.
Paulinho faz um gesto com a mão a indicar que não precisa saber mais nada. Fecha os olhos por breves segundos, e começa na busca. Sobe a uma cadeira de maneira a avistar o topos de todos os móveis. Depois espreita por baixo dos mesmos, onde lhe é possível. Verifica todas as ranhuras, incluindo por baixo de portas e gavetas.
— Só falta ver debaixo da estante. Têm que me ajudar a desviá-la.
— Tu estás maluco, Paulinho? — opina o tio Marcolino. — A estante está colada ao chão. Lá é que não pode mesmo estar.
— Voilà! Procurar sempre onde os outros sabem que não pode estar! — e o Paulinho já festeja vitória.
Lá se convenceram a desviar a pesada estante cheia de livros com encadernações de luxo, quase todos só lidos pelo Paulinho, e perante o espanto de todos, lá está o cheque.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
um cheque truculento
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