as mulas do doutor mimoso

    — Tenho a certeza. São as mulas do doutor Mimoso, senhor guarda.
    — Sargento, se faz favor! Sargento!
    — Senhor sargento.
    — O senhor agora tem que assinar aqui a participação.
    — Mas eu não sei assinar. Não me diga que isto ainda me vai trazer desaires. Eu só quero ajudar, senhor sargento. É que o senhor António é da minha terra e sempre foi amigo do meu pai.
    — Não sabe assinar, põe a dedada.

    António Zeferino da Luz, conhecido por António da Várzea, veio da Várzea da Sobreira servir para a casa do lavrador Tomé, numa idade em que seria mais indicado entrar para a escola, que ficava mesmo ao lado da casa dos pais; mas eram oito filhos. O seu primeiro trabalho foi guardar porcos. Uma vez deixou-se dormir ao pé dos porcos, o que lhe valeu foi que estes voltaram para casa sozinhos. Quando acordou e não os viu só teve vontade de fugir para a mãe. Mas ante o medo do lavrador e o do cinto do pai, optou por ir a chorar contar ao lavrador Tomé que os porcos tinham fugido.
    — Não diga nada ao meu pai! —  implorou.
    Nessa noite deixaram-no dormir em casa.

    As mulas foram roubadas da quinta no sábado.
    — Devias ter mais cuidado, António! — ralhara o doutor Mimoso. — Os ladrões a roubar as mulas e tu a dormir!
    Os cães bem ladravam, mas com tantas zorras, doninhas, escalavardos por aí, qual é a noite que os cães não ladram?

    Foi crescendo e mostrando jeito para os animais. Aos treze anos entregaram-lhe uma parelha de mulas para tratar, cuidar e trabalhar. Era o arado, era a carroça, era o carrego do cereal, era tudo o que às mulas dissesse respeito.

    — Ó senhor António! Ó senhor António! — bradou o Justino à entrada da quinta.
    — Olha quem ele é! O que te traz por cá a uma segunda-feira, rapaz? O teu pai está bom?
    — Está bom, sim senhor. Obrigado. Senhor António, venho agora do mercado do Mioto. Montei-me na bicicleta e vim na brasa. É que vi lá as mulas! As suas mulas!
    — Minhas! Quem me dera que fossem minhas.

    As coisas pioraram muito depois do casamento do doutor Mimoso com a filha do lavrador. E pioraram ainda mais depois da morte deste.
    O doutor Mimoso não era na realidade doutor. A bem da verdade possuía o curso liceal. Conheceu a futura esposa na praia de Odemano quando era oficial do exército a cumprir o serviço militar, rolava o ano de 37.
    Ainda em tempo do sogro foi tomando conta da feitoria das terras e do lagar.

    Não tinha o Justino ainda montado a bicicleta e já o senhor António partia ligeiro para a vila, a avisar o doutor Mimoso.
    — Ó homem de Deus, tu não tens emenda! Então como é que vamos fazer a participação à guarda sem a testemunha?
    Por sorte um dos criados de lavoura conhecia o Justino e sabia onde ele morava. E lá foi ele de bicicleta chamá-lo. A pé nunca mais o senhor António lá chegava.
    — Bem! Agora o teu amigo vai com a GNR que eu vou lá ter à feira no automóvel. E tu já te podes ir embora para a quinta que deves ter lá muito que fazer. Está bem assim, senhor sargento?
    — Com sua licença, senhor doutor. O senhor António tem que ir para que as mulas o reconheçam e assim provar que as mulas são as suas.
    — Hã?! Era só o que me faltava ouvir. As mulas conhecerem melhor um simples almocreve que a mim que sou o dono!

 

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