o meu tabaco não é para gandulos

     O taca-taca, taca-taca, taca-taca ainda torna mais pesada a modorra. As raras casas que se avistam vêm e vão, lânguidas, cúmplices com o estado de espírito do António.
    Tinha tentado dormir, para que o tempo custasse menos a passar, mas não se conseguia ajeitar a gosto no banco austero. Nem os ossos nem a carne já são os mesmos do tempo da tropa, em que dormia até sentado numa pedra sem encosto para as costas. Acreditem que é verdade.
    Entre estações e apeadeiros tinham parado oito vezes quando o inglês embarcou. Uma mochila, uma viola, cabelo pelos ombros.  
    O sargento Dias havia de dar conta dele, se lá o tivesse apanhado.
    — Isto aqui não é lugar para meninas! Máquina zero! —  havia ele de berrar.
    Mas estes tempos são outros. Muita falta fazia a esta malta, para aprenderem como é a vida.

    Dedilha as cordas da viola, displicente, enquanto olha, distraído, a planície.  
 
    Não há instrumento como o acordeão. Isso é que é alma. Não me venham cá com violas, nem com pianos, nem aqueles, que parece que estão a serrar, e servem para dar sono. Isso não é música. Na casa do meu pai assim que tocava música dessa mudava-se logo de posto.
    — António, tu devias ir aprender a tocar acordeão com o Isidro.
    Ainda tinha comprado um, em segunda mão, mas depressa desistiu. Os dedos calejados do ferro não obedeciam. Gostava de assobiar. Não eram todos que assobiavam como ele.
    Os dedos do inglês eram delgados e compridos e moviam-se com muita facilidade. Devia dar um bom tocador de acordeão. É pena que se perca com violas. Mas eles lá nem devem conhecer o acordeão. Dá Deus nozes a quem não tem dentes. De certeza que o inglês não deve trabalhar no duro; se ele tivesse que trabalhar a dobrar e armar ferro; às vezes com geada, às vezes com o sol a queimar; não ia ter dedos para tocar.
    Nem sempre trabalhou no ferro. Começou a dar serventia a pedreiros como quase todos. Às vezes era uma brincadeira, mas quando tocava a fazer e carregar massa para assentar tijolo ou encher chão, era duro. E ninguém quer ficar como servente. Calhou o mestre Olindo tê-lo convidado para trabalhar com ele, e nunca mais deixou o ferro. Até ao acidente.
    Só não trabalhou no ferro enquanto esteve na tropa.

    O inglês agora começou a cantar, primeiro baixinho.
    — Olha-me este material, inglês. — e apontava para uma moça roliça que passava à procura de lugar, arrastando dois cestos.
    O inglês olhou para ele e sorriu.
    Não deve ter percebido, ou se calhar não gosta. Com aquele cabelo, hm...
    
    — Não estou a ver como vamos resolver isto, a não ser que os pais da moça aceitem a indemnização e desistam da queixa. — o advogado, arranjado pelo tio, que era polícia, foi categórico.
    Ela foi ganhando confiança lá em casa, ficava por lá muito tempo. Naquela noite estava uma invernia das antigas. Chuva e vento, escuro e lama. Foi ficando. A meio da noite foi ter com ele à cama. Muitos anos mais tarde veio a desconfiar que a gravidez não era dele. Mas na altura resolveu-se com um desmancho e uma indemnização de trinta contos. O pai soprava, mas pagou. O António tinha quinze anos; a Idalina, dezassete.

    Para onde irá o inglês? Luxo de gente fina, deve ter paizinho rico, para andar por aí a passear de viola às costas.
    Nem eu sei para onde vou; quer dizer, saber sei; mas qual vai ser o meu destino? O doutor Sabino disse que tenho poucas hipóteses de conseguir que o seguro me pague alguma coisa. Ele tinha dois no seguro, fomos três aleijados. O Mateus até nem foi má pessoa. A viúva do Manuel assim sempre recebe alguma coisa. E o Dimas está pior que eu, coitado. Azar sermos logo três. Mas coitado do Mateus, se fosse pagar seguro para todos não lhe sobrava nada, quinze homens.       
    O doutor Sabino diz que nem vale a pena meter o Mateus em tribunal, ele abriu falência da empresa e não tem nada em seu nome. Nem sequer o Mercedes 300 está em seu nome, quanto mais o resto. Nem eu seria capaz duma coisa dessas, sou amigo do Mateus desde moço.
    O inglês parece que lhe leu os pensamentos. Será que pensou em voz alta? Mas mesmo que assim fosse, ele não ia perceber nada. O inglês continua a olhar para ele com ar de pena. Ele que vá mas é à merda. Que sabe ele da vida!
    Dantes havia trabalho, muito trabalho. Pontes, muitas pontes o António fez. Quando teve o acidente havia muito trabalho. Agora já não há, mas mesmo que houvesse, o que é que ele poderia fazer sem a perna? Nem para segurança, que é o que há agora mais. Ainda há quem fale mal do Doutor Madeiro, no tempo dele havia trabalho para todos. E cursos, toda a gente fazia cursos.

    O inglês agora canta alto. Uma grazinada.
    — A vida é filha da puta, inglês. Disso não sabes tu nada. — o inglês não ouviu.
    
    Bons tempos. Ganhava-se bem. Cheguei a ir à boate e pagar duas ou três garrafas de champanhe. Houve uma época que era quase todas as noites.
    Foi mais ou menos por essa altura que se meteram na minha vida e me desmancharam o casamento. Gente invejosa. Já levávamos vinte anos de casados, sempre nos demos bem. Ninguém me tira da ideia que foi obra da minha santa sogra, que deu a volta à cabeça da filha.

    E já se avista o rio. O inglês pousou a viola, sacou uma máquina fotográfica da mochila e agora tira fotografias.

    Lá na Guiné também tive uma máquina fotográfica. Tirei muitas fotografias, estão lá para casa, três caixas de sapatos cheias. Nunca mais me apeteceu tirar fotografias. Que saberá o inglês do que é estar longe de casa por ser obrigado, e não de vontade; e ainda sujeito a levar um tiro nos cornos ou rebentar-lhe uma mina debaixo dos tomates?
    Nunca vou voltar a ter uma máquina fotográfica. Com a reforma de merda que me arranjaram. Eu sei que não se recebe mais porque não se descontou tudo. Mas o Mateus pagava bem, se fosse pagar para a segurança social e para as finanças como eles queriam o que é que sobrava?
    E nestes pensamentos chegam ao fim da linha. Sai para o cais suportado pelas canadianas. E só sentiu um encontrão, casual. Ouviu um rebuliço lá para trás. Alguém corria, pelo barulho seriam mais que um. Foi quando deu pela falta da carteira. Conseguiu avistar o inglês a correr veloz e pensou: 'Ah, Malandro! Já me roubou.'  
    Foi quando o inglês se atirou com um voo digno do Zé Gato, e derrubou um latagão que corria à sua frente. Imobilizou-o quase sem luta, devia ser perito em artes marciais, ai isso devia. De onde estava, o António  não conseguia ver bem, porque entretanto tinha-se juntado gente. Mas não demorou muito e viu o latagão a afastar-se e a olhar para trás desconfiado.  
    Ainda o António não tinha entendido o que se passava, parado no cais, embasbacado sem saber o que fazer, quando sentiu um leve toque no ombro. Voltou-se. Era o inglês:
    — Aqui tem a sua carteira, amigo. Até à vista e porte-se bem. — e afastou-se com um sorriso sacana direito a uma rapariga linda que estava ali perto à sua espera... e afinal era português.
    
    Ainda estava ali parado quando veio direito a si nada mais nada menos que o Hilário. Companheiro de tropa, encontravam-se regularmente no almoço da companhia. Um par de abraços.
    — Olha lá, ó António, agora também tens amigos gadelhudos?
    — Eu? Que conversa é essa?
    — Eu vi. Estavas mesmo agora a conversar com um. — e ria.
    — Ah, isso foi um que me veio pedir tabaco. Respondi-lhe logo que o meu tabaco não é para gandulos.    


3 comentários:

  1. Reli, e realmente as pessoas não têm noção da vida do outro, inventam e por mais que verifiquem que não é verdade, nunca dão o braço a torcer. Adorei

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  2. Gostei e já tinha lido por aí!😘

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  3. Adoro estes contos maravilhosos

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