mel e limão

     Oito horas de uma noite de inverno. Carlos bem acena aos táxis, que tratam de acelerar ao verem os dois homens corpulentos de braço dado. O mais velho parece ter uma daquelas bebedeiras como há muitos anos não apanha uma.
    Carlos lembra-se duma vez em que ele se demorou mais que a conta. Moravam na quinta. A mãe saiu com eles pela mão. Devia ter uns oito anos e a Carolina uns cinco.
    — Mãe, onde é que vamos à procura do pai?
    Que saberia ela? Só sabia que já não conseguia estar em casa. Que um escuro pesado e sufocante descia sobre tudo e a obrigava a sair. Pelo menos na rua havia estrelas no céu. Seguiram pela estrada nova. O "Quatro-Olhos" acompanhava e sempre dava ousio. Chamavam-lhe "Quatro-Olhos" por ter uma pinta branca acima de cada olho, a contrastar com o castanho escuro do resto do pêlo. Ao longe, no outro lado da ribeira viam-se as luzes amareladas e mortiças da Alcaria Nova, onde já havia luz eléctrica. Não passava vivalma na estrada. Ouviam-se as rãs lá em baixo na ribeira. Um ou outro mocho piava de vez em quando. Não fazia lua, mas via-se bem a estrada com o brilho das estrelas.
    Mesmo ao começar da descida para a ponte de São Cristóvão apareceu um carro na curva.
    — Cuidado! Desviem-se para a berma!
    O carro parou um pouco depois de passar por eles. Era o pai, o Aldemiro, grande amigo, foram tropa juntos, e o chofer, que o Carlos não conhecia, mas devia ser amigo também. O pai quis apear-se, mas não se equilibrava. E ria, ria.
    Agora está tal e qual, ri, e ri. E tem o Carlos de o levar pelo braço, que não se equilibra. Por mais que tente não consegue que nenhum táxi pare. Consegue a custo fazê-lo subir para o autocarro. Depois outro autocarro. Depois o barco. No barco toldou-se ainda mais. Atrasa e adianta o relógio ao acaso e teima com os outros passageiros por causa das horas. Carlos piscava o olho aos outros e eles deviam entender que era bebedeira. Que adiantaria estar a explicar? Depois o comboio. Aí já foi mais calmo. Finalmente adormeceu aconchegado na samarra.
    Falta de lembrança de ter pedido à senhora do consultório para chamar um táxi. Mas como é que ia prever o efeito retardado da anestesia, se o pai estava tão lúcido e equilibrado mesmo já um bocado depois de sair do consultório. Ainda pensou em voltar para trás a ver se havia alguém no consultório, mas lembrou-se de que a senhora já estava a vestir o casaco quando se despediram e o médico já tinha saído. A consulta até foi rápida, mas ele bem se queixava de que doía. Pudera, a anestesia ainda não tinha feito efeito.

    — Ó Carlos, já reparaste que o teu pai está sempre tossindo?
    Não era bem tossir, era mais um pigarrear constante. E toda a gente já tinha reparado.
    — Ele não devia fumar tanto. — era opinião generalizada.
    Convenceram-no a consultar o doutor Castro, um reputado otorrinolaringologista de Odemano.
    De facto, foi a primeira coisa que lhe tirou, o tabaco. Ninguém acreditava que o Joaquim do Vale fosse capaz de deixar de fumar, mas foi.
    Dantes, quando jogava à sueca, estava sempre de cigarro na boca. Agora implicava com os outros, que lhe incomodava o tabaco. Engordou muito, chegou a pesar mais de cento e vinte quilos.
    — Tu fumas muito, Carlos!
    — Diz o roto ao nu. — e o Carlos ria.
    — Eu nunca fumei como tu fumas.
    — Pois...

    Mas o pigarro não desapareceu.
    — Senhor Joaquim, não tenha medo, isto é só para ficarmos descansados. Mas vou-lhe marcar uma biópsia para um colega meu em Lisboa...
    — O que é isso, senhor doutor?
    — Ele vai tirar um bocadinho de carne aí da garganta, assim do tamanho dum bago de arroz. Não vai doer nada.

    Passaram alguns anos depois de o resultado da biópsia não ter acusado nada de cuidado. O que não passou foi o pigarro. O doutor Castro bem receitou xaropes, comprimidos, até injecções, mas o pigarro resistia mais que as ervas daninhas da horta.

    — Estanazar?
    — Não! Salazar!
    — Ah, Estanazar. Nunca tinha ouvido tal nome!
    O pai do Joaquim do Vale era de tal maneira surdo que nunca chegou a saber como se chamava o Salazar. O Joaquim, embora mais tardio, começou a acusar o peso dos genes. Já o doutor Castro tinha morrido sem dar conta do pigarro resistente. Foi preciso consultar outro otorrino. Aconselharam-no a consultar um médico jovem, da idade do Carlos, que tinha acabado de montar consultório em Almadrava, mas já estava a ganhar fama.
    — Olhe lá, senhor Joaquim, está constipado?
    — Não, senhor doutor. Esta tosse anda comigo há anos.
    — E nunca consultou nenhum médico?
    — Oh, se consultei! Anos e anos com o doutor Castro, não sei se o senhor doutor conheceu. Morreu o ano passado.
    — Há dois anos. Conheci muito bem. Um grande médico, amigo do meu pai e meu amigo. Aprendi muito com ele. E ele não deu com o mal?
    — Não! Até a Lisboa fui, fazer uma biópsia.
    — Ah, e não acusou nada?
    — Nada!
    — E está a tomar alguma coisa que ele tenha receitado?
    — Já não! Ele mesmo desistiu. Que não conseguia encontrar nada que acabasse com isto. Tomo é todos os dias de manhã e à noite mel com limão.
    — Hm, há muitos anos?
    — Uns quinze, talvez, antes de consultar o doutor Castro já tomava.
    — Pois vai deixar de tomar. E daqui a três meses quando cá voltar por causa dos ouvidos logo me conta.

    E era uma vez um pigarro.
    Explicou o doutor novo que o limão servia para irritar a garganta e o mel para o fixar.



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