o padre vermelho

    — Sabes bem que não gosto de comprar pão fatiado. Seca num instante.    
    — Sim! Mas este pão do Vale do Pato é o melhor. Até havia lá muito, mas todo fatiado.  
    Não é a primeira vez que o Jaime repara que o pão fatiado é o que mais sobra. Porque será que insistem em fatiar o pão se ninguém lhe pega?  
 
    O Manuel sempre foi um personagem apagado. Já na escola primária nunca se oferecia para responder. Nem na escola, nem na tropa, nem no trabalho, em nenhum dos vários trabalhos que teve, nunca se oferece para nada.  
 
    — Quem não aproveita as oportunidades nunca passa da cepa torta, e olha que elas passam na nossa frente uma só vez. — O Jaime tem sempre presente este conselho do velhote. É verdade que acabou afogado em dívidas, mas como é que ele podia prever que a construção iria sofrer uma crise como esta? Não foi culpa dele, que foi sempre um empresário com olho.  
    Como daquela vez que comprou aquele terreno que não valia nada e olha depois com a aprovação do PDM como conseguiu que ficasse incluído na zona industrial. É preciso cultivar as amizades certas.
    — Certas e bem oleadas. — como ele dizia, com uma piscadela de olho. O Jaime acha que tem que ter alguma ideia assim brilhante. O jornal local, que dirige, está com dificuldades.  
 
    O Manuel não tem amigos, não por ser má pessoa, mas porque não frequenta cafés, não vai à bola, nunca teve jeito nenhum para o sexo oposto, não vai à missa, não é bombeiro. Antigamente ia à pesca, passava todo o tempo livre na pesca, mas desinteressou-se desde que o peixe sabe a esgoto.  
    De há uns anos para cá gasta o tempo livre a passear pelas ruas, sem destino. Foi nesses passeios que notou tanta gente a remexer no lixo. Ao princípio era gente que lhe parecia porca, suja, demente. Mas nos últimos anos aparece gente limpa, gente com roupa lavada, gente que disfarça quando ele se aproxima. Ganhou o hábito de ir assobiando, coisa de que só se lembra de fazer quando era  moço. Mas assim deixa que dêem pela sua aproximação e não se sintam humilhados.    
 
    — Jaime! E se tu voltasses a dar explicações. Não precisavas de deixar o jornal e sempre era mais esse que entrava. — lá vinha a mulher com a conversa, cada vez mais frequente.    
    — Espera mais algum tempo. O que eu preciso é de algum furo que projecte o jornal. O meu pai dizia que de repente pode aparecer-nos na frente a oportunidade, temos que estar atentos. — Ela olhava-o, a princípio com admiração, mas cada vez mais com algum desdém, embora fizesse tudo por disfarçar.  
 
    O Manuel aproximou-se timidamente da senhora que saía da instituição com ar apressado.    
    — Precisam aqui de voluntários para ajudar?
    Foi assim que passou a ajudar os sem-abrigo. Uns sem abrigo por todo o corpo e outros apenas sem abrigo por baixo da pele. Muita fome há por aí escondida.  
 
    O Jaime, sem saber porquê, volta a pensar no pão fatiado. Passa pelo hipermercado e lá está, nove da noite e as prateleiras cheias de pão fatiado. Do inteiro nicles. Estes gajos não sabem trabalhar, pensa. Mas, sem dar por isso, volta lá, e torna a voltar.  

    O Manuel nunca dá nas vistas e inspira confiança a qualquer chefe. Já teve vários trabalhos e nunca foi despedido de nenhum, a não ser daqueles em que a empresa encerrou, que foram quatro. Nos outros dois foi ele que se despediu por encontrar melhor.  
 
    Torna-se obsessão. Sempre o cenário é parecido. Umas vezes mais, outras menos, mas sempre excesso de sobras de pão fatiado.   
 
    O último trabalho do Manuel é na reposição do hipermercado. Reposição dos produtos de padaria é o que mais gosta.
    — Manuel, esta máquina serve para fatiar o pão. Tens que ter cuidado com os dedos!  
    Depois veio outra mais segura, para a fazer cortar tens que ter as duas mãos a carregar os botões, um de cada lado; assim é impossível ter alguma das mãos ao mesmo tempo na frente da lâmina. Há invenções geniais.  
 
    Sábado à noite. O Jaime está no carro, de luzes apagadas, e confirma as suspeitas que se têm vindo a formar na sua cabeça. O funcionário sai pelas porta de serviço do hipermercado com um carrinho a caminho do contentor do lixo. Ao regressar deposita um saco num triciclo estacionado. E volta lá para dentro. Jaime espera. O mesmo funcionário sai algum tempo depois, já sem a farda do hipermercado, monta no triciclo vai-se embora. Jaime segue o triciclo.    
 
    — Aqui tem o seu cafezinho, senhor padre.
    — Obrigado, Tino.    
    — Senhor padre, já leu a primeira página d"O Megafone"?    
    — Não! Alguma coisa com interesse?
    — Está aqui! Leia, leia...  
    "GOLPE ENGENHOSO NO HIPERMERCADO
    O meliante Manuel da Silva Custódio apanhado pelo nosso jornal a vigarizar o hipermercado tal e tal... Ele ganhou a confiança dos patrões e então fatiava pão em demasia, que toda a gente sabe que não tem saída, e no fim do dia levava-o para a Casa de Acolhimento do Espírito Santo, ludibriando assim o honesto comerciante, e tal e tal e tal..."  
    O padre Correia, conhecido popularmente por "Padre Vermelho" devido às suas tendências a favor dos desprotegidos, acabou de ler, dobrou o jornal e não disse nada.  
    — Então, senhor padre? — Celestino está impaciente por ouvir a opinião do padre.  
    O padre como que voltou a este mundo:  
    — Meu filho, nunca confundas golpes baixos com golpes dos de baixo. E já agora por falar em golpes dos de baixo, traz-me lá um cálice daquele medronho que tu tens escondido por causa da ASAE.  
 

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