uma cerveja

     Depois, muitos alarmados pelo PREC, outros por gosto, outros por verem os outros, outros porque sim, quase cada homem da zona comprou uma espingarda. Hoje há mais caçadores que há caça, segundo dizem.
    Nem sempre assim foi. Não há muitas décadas havia quem vivesse do que conseguia com a espingarda, e que iam vender à vila. Conta-se, talvez com o exagero próprio das lendas, que havia quem levasse o burro carregado duas vezes por dia, uma de manhã e outra à tarde; lebres, coelhos, perdizes, codornizes, tordos, rolas, pombos bravos, que o marido caçava.
    Nesse tempo o Gregório era um dos caçadores que não fazia mais nada para ganhar a vida. Hoje ninguém sabe do que vive, e também ninguém quer saber. O certo é que tem dinheiro e gosta de exibi-lo. Mais de uma vez já aconteceu serem vizinhos que lhe valeram nas feiras, quando, por sorte, deram com ele a mostrar a carteira bem recheada e um público demasiado interessado a cercá-lo, a cercá-lo.
    
    — Quer beber uma cerveja, senhor Carlos, pago eu?
    O Carlos olhou o homem com curiosidade. Tinha lá almoçado algumas vezes, bebido uma cerveja ou outra, de vez em quando. Não tinha nenhuma confiança especial com o taberneiro, que tinha fama de forreta. A que propósito vinha agora a oferta? Desconfiado, mas aceitou; não via qualquer razão para recusar, afinal foi para beber uma cerveja que lá entrou.
    Dois dedos de conversa. O negócio está mau, a vizinhança não é boa, etc. e tal.
    — Sabe quem morreu?
    — Não! Não sei!
    — Era lá dos seus lados. Mas mora ali atrás. O Armando Correia.
    Carlos ficou sem pinga de sangue, querem lá ver que este alarve me pagou a cerveja para festejar a morte do outro. Despediu-se quase sem palavras. A cerveja não lhe caiu bem. Teve desejos de vomitá-la, não conseguiu.
    Não era que o Armando Correia lhe inspirasse a mais leve simpatia. Lembrava-se até da primeira vez que o viu e ouviu o seu nome. Devia ter uns oito ou nove anos. Andava brincado perto da estrada, entre as figueiras, atrás dos passarinhos, quando o tractor rebolou pelo aterro abaixo. Coitado do tractorista preso e entalado com o óleo quente a derramar-se-lhe por cima das pernas. Correu a procurar gente para avisar.
    Veio uma multidão. Tiraram o homem, mais tarde soube que se salvou. De quem era o tractor? Ouviu-o de um dos presentes em voz baixa com outro:
    — Aquele que chegou agora é o dono do tractor, o Armando Correia. Aquilo é um canzil e um caloteiro do piorio.
    O Carlos veio a confirmá-lo muito mais tarde, já depois de crescido. Não era pouco provável que o taberneiro tivesse fortes razões para não gostar dele. Mas porra! Daí até festejar a sua morte?
    
    O Gregório é um janota. O hábito de vê-lo sair sempre aperaltado faz que nem nos interroguemos como o consegue. Já que vive só. A mulher foi-se embora com as filhas há décadas. Também ninguém sabe porquê, nem quer saber. A casa onde vive, e onde ninguém mais vai, vista de longe parece um pardieiro. Ninguém dirá que mora lá gente, e muito menos gente janota. Foi emprestada ao seu bisavô por um compadre, a troco de uns favores de que já ninguém se lembra. Ali nasceram e se criaram trinta e sete almas desde então.
    Um dos descendentes do tal compadre, por sinal ajudante de um notário de Lisboa, conseguiu há quinze anos reunir outros descendentes e vender a casa ao João Ratinho, que tinha direito de preferência. A reserva de usufruto enquanto vida ficou assegurada para o Gregório, contra a vontade do comprador. O Ratinho é um ganancioso bem conhecido por toda a vizinhança.
    
    Uns meses depois do episódio da cerveja, Carlos cruzou-se com o Armando Correia na estrada. Nunca tinha pensado vir alguma vez a sentir satisfação por ver o Armando Correia, e bem vivo. O que tinha acontecido é que este Armando Correia era o júnior, o que morreu e veio a notícia no DN era o sénior.

    Agora está o Carlos sentado sozinho no lado de fora, mesmo à entrada do café, quando o João Ratinho assoma lá à curva. Reconhece-o e não estranha, deve vir à procura do cantoneiro da água da barragem. Mas, quando ele passa pelo cantoneiro e continua direito ao café, já estranha. O Ratinho nunca entra em cafés a não ser para falar com alguém. De repente, sem saber porquê, surge-lhe a imagem do taberneiro e da cerveja de anos atrás. É por isso que já está à defesa quando o Ratinho se lhe dirige.
    — Carlos, queres beber uma cerveja?
    Uma sensação arrepiante percorre-lhe a espinha.
    — Não, obrigado!
    O Ratinho entrou no café. Quando sai entrou o Carlos.
    — Ai vocês foram beber as cervejas pagas pelo Ratinho?! Já vocês viram alguma vez o João Ratinho pagar alguma coisa a alguém?
    — Tu não me digas… —  parece que ao Joaquim do Vale lhe assomou a suspeita, talvez pela cara do Carlos.
    Realmente a cada um tinha parecido estranho o convite.
    — Digo sim, pai! Vão a ver que morreu o Gregório. Era quase capaz de jurar.
    Olharam uns para os outros com ar de quem já não entende nada do mundo.
    — Eu não sou capaz de acreditar numa coisa dessas.
    — Acredite, tio Constantino! Eu não caí porque já não seria a primeira vez que me acontecia coisa parecida.
    — Ai, filho dum cabrão! Tu não me digas uma coisa dessas. —  e cuspia o resto da cerveja que ainda tinha na boca e agora lhe sabia mal. Muito mal.



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