4 de fevereiro

    O barulho forte e cavernoso fez-se sentir sem aviso. A Henriqueta correu a procurar o terço e a fechar as janelas e as portas. Não sem antes chamar pelo Carlos, que andava brincando, com um buldózer feito duma pedra da ribeira com veios de sílex, junto ao caminho da chã.

    — Diz-se que é no dia 4 de Fevereiro, vizinha Tereza. Eu cá para mim tanto se me dá.
    — Não diga isso, senhora. — e a vizinha Tereza persignava-se. — Tome lá o meio quartilho e não diga mais blasfémias.
    — Com a minha idade é que me vou importar com isso! Anda Bonita! —  e lá foi sentada de lado na albarda da burra pachorrenta.
    A Henriqueta fazia que não ouvia a conversa da sogra e das vizinhas.

    — Brrrrrr Brrrrrr Brrrrrr...
    O Carlos passava os dias a surribar terra com o buldózer de pedra. Fazia os socalcos, os caminhos. Compunha a quinta e quando estava tudo acabado, destruía. O prazer estava no fazer, não na obra feita.

    — Vizinha Guilhermina, é a garrafa do petróleo e pese-me duzentas gramas de açúcar.
    — Já vomecê ouviu falar do 4 de Fevereiro?
    — Já ouvi falar, já. Para mim já não deve demorar muito, não.
    — Deixe-se de blasfémias.
    — Ó, vizinha Guilhermina, quantas vezes é que eu já ouvi falar? Quando eu era gaiata já falavam no fim do mundo. Um dia há-de ser. Antes tarde que cedo. —  e ria. — Anda Bonita, que ainda temos que passar ao poço.

    Quando era tempo de chuva é que ele adorava. Aí fazia barragens nos regatos. Até no barranco ele chegou a fazer. Barro e varas para segurar. Complicados sistemas de descarga. A preocupação era descarregar sem rasgar a terra. Usava canas, chegou a usar telhas.

    — Vizinho Maurício, ajude-me aqui a encher os cântaros, que me custa a descer da burra. Bem como me custa mais a descer que a subir. Vomecê já ouviu falar no fim do mundo?

    Quando chovia muito e não dava para sair, gostava de ficar a fazer coisas de canoira de milho, de cana, de cortiça, de arame de fardo de palha. Carlos nunca se aborrecia, o tempo nunca sobrava, era sempre pouco.
    — Carlos, anda almoçar! — era sempre preciso chamá-lo.
    Se adoecia resistia, porque a mãe mandava-o para a cama.

    — Lá na sua aldeia também já ouviu falar no fim do mundo, Dona Henriqueta?
    — É toda a gente, senhor João. Eu tenho muito respeito.
    — Oh Dona Henriqueta, eu já tenho quase sessenta e já nem sei quantas vezes assisti a boatos destes.
    Henriqueta calou-se.

    Uma vez resistiu tanto que quando a mãe se apercebeu que ele estava doente já não se aguentava de pé. Teve que lá ir o Doutor Matias a casa.
    — Seu malandro, podias não escapar desta.
    E disse um nome tão esquisito para a doença que nunca o decoraram. Uma injecção na altura e uns comprimidos.
    — Ele não consegue tomar comprimidos, senhor doutor. É melhor passar injecções se houver em injecções.
    — Essa agora! Haver há, mas olhe que nunca tinha visto tal coisa! Vá lá que vocês aqui têm sorte, têm a Marília que dá injecções a toda a gente. — e riu.

    A Henriqueta era alentejana. Nem pai, nem mãe, nem irmãs, nem irmãos, ninguém ia à missa. Nunca se soube donde veio a sua devoção. Mas era muito devota e temente a Deus.
    Com o barulho correu a fechar as janelas e as portas, a rezar e a chamar o filho:
    — Carlos! Carlos! Anda para casa!
    O Carlos veio a correr, mas não para casa, veio buscá-la para irem ver se o chofer da camioneta tinha ficado mal. Ele viu tudo. A camioneta não fez a curva e derrubou três marcos daqueles que se usavam, ligados por cabos de aço, para evitar que os carros rebolassem pelos taludes. Derrubou três marcos e ainda foi derrubar o marco do quilómetro vinte e cinco, que ficava a mais de vinte metros...
    Era 4 de Fevereiro de 1961, o chofer ia sozinho e não ficou mal.

* Facto notável: a data de 4 de Fevereiro de 1961 é tida por muitos como a data do início da luta armada em Angola

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