o parafuso

     Chovia que Deus mandava. A lama era tanta que a bicicleta não ajudava. Era preferível continuar a pé e a bicicleta servir de apoio para se equilibrar. A luz nem pensar, o dínamo nem rodava com a lama que se acumulava no pneu. O que vale é que conhecia aqueles caminhos tão bem que se guiava pelas silhuetas das oliveiras e das alfarrobeiras. E se o doutor tiver saído? As silhuetas de vez em quando desapareciam quando a chuva batia com mais força. Tinha que chegar à do Mogo para daí telefonar para o doutor Matias. A seguir à do Pinguinhas a chuva amainou. Agora era a descer e melhor caminho, experimentou a montar-se na bicicleta, mas depressa desistiu. Escorregava aqui, encalhava ali, e receou que pudesse cair, ficar mal e não conseguir chamar o doutor a tempo. E se o doutor tiver saído? Afastava este pensamento com um gesto da mão. Mas de vez em quando ele voltava e era insuportável. Era só mais uma subida e depois já se havia de ver a venda do Mogo lá  em baixo antes da curva. Havia de se ver se a chuva não tivesse voltado outra vez com força. Quando chegou à portela suava debaixo da samarra. Encharcado, o suor misturava-se com a água que escorria pelas calças abaixo. Mas agora já era sempre a descer.

    — Eduardo, hoje não me apetece sair. — e passava a mão pelo cabelo do marido, já a ficar grisalho.
    Ele fez que não ouviu.
    — Apetece-me ficar aqui no quentinho ao pé do fogo. — e adoçava a voz.
    Procurava desculpas, não porque não gostasse também das saídas, mas receava que ele se estivesse a viciar no jogo. Não notava que ele perdesse o controlo, mas a verdade é que desde que abriram o casino na Almadrava era vê-lo lá quase todas as noites.
    Ele foi até à janela e ficou a olhar para a chuva.
    Foi quando o telefone tocou.
    — É para o senhor doutor.
    — Quem é, Laurinda?
    — É o senhor Domingos Parafuso. Desculpe o senhor doutor, eu não sei o nome dele. Toda a gente o conhece por Parafuso.
    — Não faz mal, Laurinda.

    O doutor Matias era um lavrador. Filho único, o pai deixou-lhe três quintas espalhadas pela freguesia e mais as casas na vila, junto ao que antes tinha sido lagar de azeite, e agora são arrecadações de apoio às quintas. Homem pacato, alia gostos refinados a maneiras rústicas, por vezes a raiar o rude. São lendários os seus lapsos. Conta-se que uma vez receitou a um paciente “duas carradas de estrume e um bidón de gasóleo”.

    — Problema resolvido, Hilda, já não precisas sair. Eu é que tenho que ir ao Vale da Lama.
    — Com um tempo destes?
    — É o filho do Parafuso. Tenho que ir, pelo que ele me descreveu é uma difteria, garrotilho. Pode ser fatal se não for medicado.
    — Eu sei. — e passava a mão pelo cabelo do marido, agora sem fingimento. — e sabes o caminho?
    — Acho que seria capaz de lá ir ter, mas pelo sim, pelo não, e com este tempo, ele está à espera na venda do Mogo.

    Já passa muito da meia-noite quando o doutor Matias parou o Peugeot 404 novinho e todo enlameado na rua da venda do Mogo, onde o Parafuso tinha deixado a bicicleta no alpendre. Era mesmo um garrotilho, e tinham chegado a tempo.
    — Agora não tenho como lhe pagar, doutor, mas diga-me quanto é, e pagarei assim que puder.
    — Quinhentos escudos. — com o escuro não se vê a cara do Parafuso, mas é melhor assim.
    — Isso não é muito, doutor? — balbuciou ao fim dum momento.
    — Quem quer bons ofícios aprenda-os.

    Estava o Parafuso a jogar às cartas à do Mogo num domingo à tarde quando chegou o filho do quinteiro do Azinhal na bicicleta à sua procura:
    — O doutor Matias quer que você vá lá à quinta pra arranjar o carro.
    — O novo?
    — Não! O boca de sapo.
    — Diz que já lá vou. É só acabar a partida.

    Domingos Cabrita Guerreiro é conhecido por toda a freguesia e arredores por Parafuso. Há quem tenha alcunhas muito menos a propósito. O Parafuso é um exímio mecânico, de automóveis, de máquinas agrícolas, de camionetas, de motores de rega e industriais. De tudo. Estão a ver aqueles músicos brilhantes que tocam de ouvido e sabem o que ninguém lhes ensinou. O Parafuso é isso mesmo, mas com a mecânica.

    — Grandes carros, doutor. Já está como novo. Tem aqui carro para mais uns vinte anos. É só estimá-lo.
    — E quanto é, Parafuso?
    — Quinhentos escudos.
    O doutor Matias abriu a boca de surpresa:
    — Eu não te comprei um carro, só mandei consertar este.
    — Quem quer bons ofícios aprenda-os, senhor doutor.

1 comentário:

  1. Chamou-me a atenção o título!. Gostei muito do parafuso. Obrigado Ze Varela .

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