Sala cheia: a escola primária.
Muitos rostos bem curtidos pelos sóis, pelas geadas, pelos ventos; mas a maioria juventude.
— Estas é que são as pessoas sãs, como tenho dito, as pessoas do campo. — e o doutor Barros observava os colegas da mesa com ar paternal.
— Para dizer a verdade parece-me um pouco estranho ver aqui tanta gente.
— Vai ver que corre tudo bem, comissário Pontes. — era um título que já vinha de Moçambique — São pessoas simples, trabalhadoras, honestas. Aqui os comunistas não entram.
— Deus o ouça, doutor Barros.
Médico de clínica geral na Vila Ruiva, o doutor Barros tinha sido por duas vezes presidente da câmara. E gostava de afiançar a pureza das suas gentes. Mais que um dos correligionários tinha opinado que não deviam ir fazer sessões de esclarecimento sem protecção. Mesmo as pichagens não era muito seguro irem só três pessoas. Mas isso ainda vá que não vá, iam a altas horas da noite e sem que ninguém desse por nada.
— Já não se lembram do Solar de Vidro?
— Aqui?! Nem pensar. Eu ponho as mãos no lume por estas gentes.
— Cuidado! não se queime. — mas o comissário Pontes calou-se perante o olhar ofendido do outro.
Coube ao doutor Barros a apresentação. Pouco ou nada a apresentar sobre si próprio. Todos o conheciam.
— Aqui ao meu lado direito o doutor Pontes.
O comissário Pontes odiava que o chamassem de doutor. A ele, que tinha a quarta classe. Tinha era muita tarimba e disso se orgulhava. Doutores, doutores, a maior parte não vêem um boi à frente do nariz. Chamam-nos doutores para nós também os adularmos. E mergulhava nos seus pensamentos mais recônditos.
Surgia-lhe a imagem daquele advogado que teve a ousadia de o acusar em tribunal de ter usado “métodos pouco ortodoxos” no apuramento da verdade. Que vontade de lhe despejar na cara ali mesmo tantas coisas que sabia dele, como a do negócio das madeiras preciosas. E não ficava por aí. Conteve-se porque o dever acima de tudo. Mas se ele pensa que estou esquecido está totalmente enganado.
— O doutor Pontes é um homem dos de antigamente. Com um curriculum invejável, sempre em defesa da Pátria. — continuava o doutor Barros.
‘Que saberá ele de defesa da Pátria?’, matutava o comissário.
E observava, nervoso, as caras impassíveis dos camponeses. Era mesmo o que o inquietava, teve consciência disso.
— Ao meu lado esquerdo o engenheiro Amado, candidato a deputado à Assembleia Nacional. — o engenheiro toca-lhe no braço e segreda-lhe ao ouvido. — Perdão! À Assembleia Constituinte… — prossegue o doutor Barros.
— Não sei se o doutor Pontes quer dizer alguma coisa?
Que não! Abanou a cabeça o comissário.
— Então passo a palavra ao engenheiro Amado que terá a honra de os esclarecer sobre as nossas propostas.
O engenheiro Amado levantou-se. Era um homem alto, na casa dos quarenta. Elegante e desempenado.
— Boa noite! — a voz era clara. — Como sabem, vai haver eleições para a Assembleia Constituinte. O nosso partido é o único que não defende o socialismo… — e continuou na exposição das suas propostas políticas.
O comissário Pontes estava cada vez mais inquieto. Estranhava o silêncio da sala, onde só se ouvia a voz pausada do engenheiro Amado e algum raro pigarrear.
Afigurou-se-lhe por duas vezes vislumbrar esgares na face de um jovem de barbicha sentado na fila da frente, mas não teve a certeza.
Terminada a intervenção do engenheiro Amado, retomou a palavra o doutor Barros.
— Bem, agora ficamos à espera das vossas perguntas. Eu próprio e os meus colegas, especialmente o engenheiro Amado, que é um homem mais novo e mais a par das novidades, teremos todo o gosto em os esclarecer.
Silêncio total.
— Ninguém tem dúvidas? Não se acanhem, eu sei que não estão habituados a falar em público, mas não tenham vergonha. Estamos em democracia.
Outra vez ao comissário Pontes lhe pareceu lobrigar um trejeito estranho no rosto do jovem da barbicha. Desta vez seria capaz de jurar.
— Bem, nesse caso damos por encerrada a sessão. Boa noite e não se esqueçam de votar no nosso partido.
Levantou-se o jovem da barbicha. Instintivamente o comissário olhou para a porta, que já estava barrada por dois corpulentos e pareceu-lhe haver mais alguns na rua.
— Pronto! — era o rapaz da barbicha — Então vamos lá despachar que temos muito trabalho pela frente. Ali fora estão uns baldes de cal e uns pincéis. A tarefa só acaba quando estiverem caiadas todas as paredes que os senhores sujaram na quinta-feira passada.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
caiação
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