— Grande país este, nem os funcionários públicos sabem a data.
— Isso não é bem assim, Matilde.
— Não é? Então como é que a certidão foi tirada hoje, dia 3 de Agosto, e tem a data de 22 de Junho?
— Sei lá eu...
— Sempre tenho razão! Os funcionários públicos aqui não sabem a quantas andam.
A Matilde e o Valdemar foram emigrantes em França durante vinte e sete anos. O Valdemar é dos que não gostam de ouvir falar mal do seu Portugal. A Matilde, pelo contrário, fala com desdém de tudo o que é português. Os filhos ficaram na França. Por vontade da Matilde também eles tinham lá ficado, mesmo depois da reforma. Mas ele vai sempre arranjando maneira de justificar a permanência por cá. Umas vezes é por causa de acabar a casa. Outras por isto, outras por aquilo. É cá que tem os amigos. Até arranjou um trabalho de distribuir pão pelas manhãs.
O lavrador Silvério Carriço morreu de um enfarte fulminante sem deixar descendentes directos. Os três sobrinhos apareceram a reivindicar a herança. Nunca eles se preocuparam com o tio em tempo de vida. Visitavam-no de vez em quando, mas nem um prato lavavam. Apareciam separadamente cada um com a conversa mais melosa que os outros. Mas mais nada.
— Manuel, tu tens que avisar os moços da conversa do testamento.
Os moços eram os filhos da Aurora Medeira, o Isidro e o Valdemar. O Manuel do Montinho lembrava-se de ouvir o lavrador Carriço dizer que estava pensando em fazer um testamento a favor dos dois. Desde a morte da mulher até à morte da Aurora Medeira, quando caiu da ameixeira, foi sempre com esta que o lavrador pôde contar.
— Manuel, se tu não os avisares vais ficar com esse peso na consciência para o resto da vida. — e a mulher insistia todos os dias com o marido, que não se queria meter no assunto porque sabia que daí viria guerra com os sobrinhos do lavrador. Um deles cabo da guarda.
Um dia o Manuel do Montinho encheu-se de coragem e foi procurar o Valdemar.
— Tu vai-te informar. Se calhar já vai ser tarde, porque ouvi dizer que os sobrinhos já andam a tratar da herança. Mas olha que o tio Silvério disse-me que andava a pensar em fazer o testamento para vocês, para ti e para o teu irmão, olhando ao que a tua mãe fez por ele.
— Ó tio Manuel, eu não estou a contar com isso. O meu irmão está lá para o Canadá, também não deve estar a contar com heranças. A minha mãe só fez aquilo que qualquer boa vizinha faria. Limpar-lhe a casa, lavar a roupa e coisas assim.
— E achas pouco? Estás avisado, ele falou-me nisso já deve haver mais de dois anos. Não sei se o chegou a fazer ou não. Mas no teu lugar ia saber disso.
— Senhor Valdemar, você é de Santana da Charneca?
— Sou, sim senhor, você conhece?
— Quando era miúdo passava todos os anos férias na Alcaria, na casa duns primos do meu pai. Conhecia lá quase toda a gente, aquilo também não é grande.
— Morreu hoje uma senhora de lá que era prima do meu pai, Adelaide Carola. Eu estava parado na Mimosa quando a filha me telefonou a dizer que morreu a mãe.
O funcionário do Instituto de Registos e Notariado ficou nitidamente chocado:
— A Catarina? Brinquei muito com ela em pequeno.
E foi lá para dentro conversar com uma senhora que devia ser a chefe. Demoraram bem mais de meia hora.
— Aqui tem a certidão, senhor Valdemar. Agora vocês vão ter que ir o mais depressa possível às finanças para fazer a relação de bens e depois vão ter que meter um advogado porque os outros herdeiros já fizeram escritura de habilitação.
— Está dentro do prazo... — o funcionário das finanças aconchegou os óculos no nariz e releu a data para confirmar. — Mais um dia e teriam que pagar uma multa um bocado pesada. Mas está aqui, 22 de Junho, não li mal.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
o rapaz dos registos
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