natrium sa

    O papel passa de mão em mão. Cada um lê com atenção e passa a outro. Todos riem com estardalhaço ao acabar a leitura. Os restantes conversam entre si em voz alta, assuntos diversos, banais. Alguns escrevem em papéis semelhantes ao primeiro, que põem a circular. Algumas pessoas presentes na esplanada olham com curiosidade o ruidoso grupo que lhes retribui os olhares com sorrisos coniventes. A ninguém lhe passaria pela cabeça que aqueles papéis que circulam de mão em mão não são textos humorísticos. Como também não lhe passaria pela cabeça que cada papel depois de lido por todos vai pela sanita abaixo, é papel solúvel.
    Tarde de domingo. Quando se separam, distribuindo sorrisos por todos os que desfrutam da esplanada, espalham-se rapidamente pela cidade. Cada um ao encontro dos respectivos companheiros, que entretanto andaram pela cidade levando consigo os telemóveis, mesmo desligados.
    Todas as medidas são poucas para despistar os agentes do DSS - Departamento de Saúde e Segurança. É preciso despistar as escutas e localizações telefónicas, é preciso despistar os microfones direccionais de longo alcance. É preciso ter todos os cuidados.

    — Marquinho, lá em baixo é o mar. Para lá das barreiras. Quando a mãe era da tua idade passava dias inteiros na praia... — Mariana baixa a voz para explicar ao filho, enquanto passa o tempo à espera do marido.
    Há quinze anos foram erigidas barreiras entre o mar e a cidade. Arame farpado, e um bardo de figueiras-da-índia com mais de vinte metros de espessura.

    O contacto com a água do mar só está permitido por motivos profissionais, e a trabalhadores da NATRIUM. E mesmo esses terão que passar pelos postos de controlo.
    — O senhor Marques hoje ingeriu água do mar!
    — Eu não, senhor agente. Só lavei a cara por causa do calor.
    O agente levanta os olhos do monitor e fixa-o com dureza:
    — Senhor Marques! Não pense que engana os sensores. Tenha cuidado, estime o seu emprego.

    Regularmente, uma vez por mês, reúne-se o conselho regional para coordenar a resistência. Desta vez, na esplanada, tratou-se de uma reunião alargada aos responsáveis de zona. Estava em causa a mudança de táctica. A situação da população está a ficar insuportável, é preciso acções que deixem o DSS à nora e animem a massa. Em resumo: passar à ofensiva.
    Duas semanas para preparar os pormenores: a juventude e os reformados serão os principais envolvidos na acção.
    Já lá vão trinta e sete anos, um escritor franzino e apagado escreveu que quando começam a diabolizar um alimento, mesmo que se trate de um alimento essencial, o caminho está aberto para todas as arbitrariedades que se possam imaginar. Na altura, os poucos que o leram acharam que era mais um louco.

    — Então o senhor Almeida acha que a NATRIUM SA não tem legitimidade para governar a ilha? — o juiz da NATRIUM é implacável — Permita-me que lhe recorde que a nossa Constituição foi referendada.
    — Foi, sim, Sua Excelência, mas isso foi há vinte e dois anos. Apostaria tudo o que me pedissem que hoje o resultado não seria o mesmo.
    — Isso não está aqui em discussão. Quero lembrar-lhe que conspirar contra a NATRIUM SA é crime.
    — Conspirar?!
    — O senhor Almeida nega que o disse perante três amigos à mesa do café?
    Ernesto Almeida gelou.
    — Por esta vez o senhor Almeida leva apenas uma repreensão registada, por não ser reincidente. Mas não pense que a NATRIUM anda a dormir. Se reincidir teremos mão pesada.

    A Constituição de 2033 foi referendada. O sim teve 65,17 % dos votos expressos, de um universo de 71,34 % dos eleitores inscritos. Havia muitas décadas que a abstenção não era tão baixa. As duas imposições mais marcantes desta constituição são o adiar de eleições “sine die”, como forma de garantir a estabilidade, e a entrega de todas as funções da governação da ilha, incluindo a judicial e a legislativa, à empresa NATRIUM SA.
    — Para que são esses deputados todos? — era voz corrente desde havia muitos anos. Tendência crescente agravada pela inépcia na solução dos problemas prementes e por escândalos a rebentarem por todos os lados.
    Cada vez com menos meios, os serviços do estado foram definhando e não conseguiam dar resposta às necessidades da população.
    Em 2019, foi fortemente penalizado fiscalmente o comércio do sal. Medida que contou com apoio activo da televisão local, de mais de dois terços das associações a favor da vida saudável, assim como das três igrejas com peso na ilha.
    — Esta medida já vem tarde — apregoava o ministro da saúde Alves Moreira — o sal é o veneno da civilização.
    Em 2024 formou-se a NATRIUM SA, tendo à cabeça o Dr. Alves Moreira, como presidente da administração.
    Beneficiando das medidas anteriores de restrição do comércio através da carga fiscal gigantesca, da poderosa máquina de repressão do mercado negro e do posicionamento em postos chave do aparelho de estado, a NATRIUM alcandorou-se ao monopólio da produção e comércio de sal na ilha. Produzia para o mercado interno e para exportação, adquirindo rapidamente a imagem do melhor empregador da ilha, assim como de máquina afinada e oleada onde nada falhava. A compra das acções da NATRIUM depressa ultrapassou a compra dos títulos da dívida pública, até então preponderantes entre quem tinha dinheiro.

    Em 33, por impulso de um grupo de cidadãos cujo centro foi o Dr. Alves Moreira, houve o já citado referendo. Com os resultados já referidos.

    Vinte e dois anos depois, a NATRIUM estagnava devido à falta de poder de compra da população e à quebra das exportações, por outras ilhas terem resolvido os seus problemas de abastecimento. O número de excluídos não parava de subir. A NATRIUM sempre optou por uma política de se concentrar na produção e comércio do sal e na administração da ilha em todos os seus aspectos, deixando os outros ramos do comércio, a agricultura e alguma indústria subsidiária para outros investidores. Mas, no fundo, tudo girava à sua volta. Se a NATRIUM não conseguia subir o volume de negócios, tudo o resto se sentia.
    O desespero da população para o acesso ao sal atingia o máximo e levava muitas vezes a actos tresloucados. A NATRIUM, pressionada pelos accionistas, respondeu com o aumento das medidas de segurança. As barreiras passaram a ser electrificadas. A instauração da pena de morte foi a medida mais drástica.
    A resistência foi aparecendo a pouco e pouco. No início eram meia dúzia. Mas a electrificação das barreiras e a pena de morte indignaram muitos milhares.

    — Que confusão é esta? — berrava o Dr. Alves Moreira ao telefone, no gabinete da presidência da NATRIUM. — Quero que isto fique resolvido ainda antes do almoço. Antes que rolem cabeças...
    De repente a situação era caótica em toda a cidade. Amanheceu um dia normal e às oito e meia pode-se dizer que a cidade era um engarrafamento completo.
    Estava o Dr. Alves Moreira longe de entender que as decisões do conselho regional da resistência de há pouco mais de quinze dias estavam a ter amplo sucesso e adesão em massa. E o DSS completamente à nora. Quando os agentes do DSS chegavam a uma passadeira que os transeuntes, os mais novos e os reformados, teimavam em passar em fila interminável. Já estes se tinham dispersado e o mesmo começava noutras partes da cidade. Em dezenas de passadeiras...


* Natrium é sódio. Vem do latim, e ainda é a palavra para sódio em várias línguas. Daí que o seu símbolo químico seja Na.

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