brio

    O filho levantou-se primeiro que o pai. Tinham tido a sorte de rebolar por cima do monte de areia já meio espalhada das obras da casa do Natalino, onde a Sachs de três velocidades ficou presa. O gaiato tinha ido parar em cima dos mentrastos do barranco. O Amadeu foi poisar em cima do burro do Tio José Rato que estava a pastar no barranco, preso pela arreata à oliveira velha, e o sacudiu aos coices.
    — Ah, malandro! Que me queres matar o burro! — praguejava o Tio Rato.
Era Domingo Gordo. À tarde, quando o Amadeu desceu a ladeira que vem da Alcaria, com o filho sentado à sua frente em cima do depósito de gasolina, entrou na estrada nova, e tentou fazer a curva, a rua da venda da Marília estava cheia de gente. A grande maioria homens, mais velhos, mais novos, juventude, gaiatos, tudo.
    Três mascarinhas iam a chegar quando ele não conseguiu fazer a curva, e tiveram que fugir do trajecto da motorizada para não serem apanhadas. A última, quando viu que não conseguia fugir com a saia apertada, teve que recorrer a um voo para o barranco.
    — Raios me partam se aquele não é o Marcelino! —  e era. Era o melhor guarda-redes da aldeia. O voo denunciou-o.

    — Malvado! Onde vais com a criança?
    — Vamos à batalha das flores, não vamos, filho?
    — Era bem feito que a guarda te multasse.
    — Cala-te, maluca. Tu não queres vir, não venhas. Aposto que o Luís vai gostar.
    — Era só o que me faltava, andar por aí a brincar ao carnaval. Coisa mais parva. Por amor de Deus, tem cuidado com a criança.

    O Amadeu tinha andado quase toda a noite com a malta a fazerem partes de carnaval pela aldeia e arredores.
    O António do Cerro, puseram-lhe os fardos de palha do vizinho Jorge arrumados à porta. Falta dizer que eles estavam zangados que não se podiam ver, por causa de umas teimas com a estrema lá ao pé da ribeira.
    O António Semedo, levaram-lhe o carro de besta e foram metê-lo no alpendre do forno da Carminda. Falta dizer que eles não se davam desde que o António foi apanhado a espreitar à janela da Carminda quando o marido desta estava na França.
    E nisto andaram até já passava das três da manhã. A última foi o clássico batuque com a aldraba da porta do Joaquim Caçapo. Usavam um fio de guita com mais de cem metros, ligado à aldraba por um fio de lã que funcionava como um fusível das instalações eléctricas, quando ele tentasse agarrar no fio eles puxavam para não perderem o fio de guita, porque o de lã era mais fraco e se partia. O Joaquim saía de casa e corria atrás deles à pata descalça pelo restolho. Eles espalhavam-se pela chapada. De vez em quando ele dizia bem alto:
    — Já te apanhei, malandro!
    Era a ver se os outros vinham acudir, mas eles sabiam que era bazófia.
 
    O Amadeu levantou a Sachs, esteve um bocado a ver se estava tudo em bom estado. Pegou no gaiato, que chorava baba e ranho, meteu-o em cima da bicicleta e arrancou rumo à Alcaria.
    Quando já todos pensavam que ele tinha voltado para entregar o gaiato à mãe, o Amadeu deu a volta na estrada velha, acelerou pela ladeira abaixo, entrou na estrada nova à laia de roleta russa, sem olhar a ver se vinha alguém, fez a curva com o patim esquerdo a faiscar no alcatrão e saiu disparado pela estrada fora, olhando para trás para a multidão, que batia palmas, ou assobiava, ou ria, ou abanava a cabeça.

    E o Amadeu lá vai todo lampeiro para a batalha das flores. Que é que eles pensavam? Que ele não conseguia fazer a curva como deve ser?
    O Luís já não chora, agora vai atrás, bem agarrado ao pai.



2 comentários:

  1. E era assim, todos felizes, sem qualquer tipo de preocupação. Brincava-se e não se ofenfia, ou magoava alguém. Adorei

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