enigma

     O grito foi tão pungente que duas vizinhas saíram das suas casas e entraram pela porta entreaberta.

    Ao médico do 112 não restou mais que declarar o óbito da Ernestina e cuidar do Júlio, que estava prestes a entrar em estado de choque. A PSP não encontrou quaisquer sinais de arrombamento nem da hipotética presença de mais ninguém.
    — Senhor Júlio, vai ter que nos acompanhar. E vamos ter que selar a casa e chamar a PJ para fazer a recolha de provas.
    O Júlio acompanhou-os aparvalhado, sem dizer palavra.
 
    «Mais um caso de violência doméstica» titulava o “Trombeta Matinal” no dia seguinte, em primeira página. «Mais um energúmeno que mata a mulher com uma facada no coração, para o que usou a faca da cozinha. Mais um que toda a vizinhança afiança ser um homem pacato, que nunca tinha arranjado problemas com ninguém. São os piores.» continua o articulista.
 
    A abrir os telejornais: «Segundo fontes fidedignas, a PJ não encontrou quaisquer indícios da presença de mais ninguém no apartamento. No entanto o doutor Ramires, advogado do suspeito, garantiu à nossa estação que o seu cliente se declara inocente. Instado a nos explicar o que se terá passado, o doutor Ramires garantiu que o seu cliente diz que está despedaçado, e estupefacto, sem saber o que dizer sobre o que terá acontecido.»
 
    — Assassino! Assassino! — a multidão grita à saída de Júlio Cortes do tribunal de Odemano onde esteve a ser interrogado o dia inteiro e recolhe à cadeia onde irá aguardar julgamento.
 
    — Viste que ele nem chorava?
    — Vi, vi. Vi logo que ali havia qualquer coisa.
    Eram as vizinhas.
 
    — Pai! Olhe-me nos olhos. Eu quero acreditar em si. Olhe-me nos olhos e diga-me que não foi o pai. Não sabemos o que se passou, o doutor Ramires diz que está a fazer os possíveis por deslindar o que se terá passado. Dizem que é um bom advogado, foi o que consegui arranjar. Também lhe trouxe algumas coisas que lhe vão fazer falta. Roupa interior. Trouxe-lhe um bocado de presunto. Um pão caseiro. Não me esqueci das suas amêndoas para a azia. Entreguei tudo ao guarda, ele depois lhe dará. Mas agora eu preciso que me olhe nos olhos e diga que está inocente. Não suporto viver com esta dúvida.
    Mas como poderia o Júlio olhar a filha nos olhos? A vergonha profunda. Não, não conseguia. Depois do que lhe fizeram.
 
    — Tens a certeza que é este?
    — É. Está aqui a foto no jornal. — e o Silvério mostrava o telemóvel contrabandeado para dentro da prisão pela mãe.
    O pior não foi a dor física. E já essa seria muita, foram alguns sete. O pior foi a vergonha. Já não se sentia homem. Nunca mais poderia enfrentar a filha.
 
    Três dias depois, o “Trombeta Matinal” titulava: «O assassino que matou a mulher com uma facada no coração encontrado morto na sua cela.»
 
    E passados mais dois dias: «Fontes idóneas garantiram-nos que o assassino se suicidou ingerindo uma grande quantidade de amêndoas amargas que usava desde há muitos anos para a azia. E a filha, na melhor das intenções, lhe levou.»
 
    Um ténue fio de sangue, quase imperceptível, espreitava ao canto da soleira da porta quando o Júlio bateu levemente e não obteve resposta. Não ouve por causa do barulho da televisão, pensou. Tinha o hábito antigo de bater levemente à porta mesmo tendo consigo a chave. Foi com o coração aos saltos que meteu a chave e abriu a porta, assim que os olhos deram no fio de sangue.
    Toda a gente sabe que os acidentes domésticos são grandes causadores de vítimas. Porém, nunca irão suspeitar de que dezassete minutos antes de o marido chegar, a Ernestina se desequilibrou ao tropeçar no cabo da vassoura, que tinha caído sem que ela desse por isso. E, ao tentar equilibrar-se, assentou a mão na tábua de cortar a carne, deixada, inadvertidamente, um pouco saída do balcão. Esta projectou a faca com que tinha estado a cortar a carne para o jantar. No esforço para se desviar da faca o tapete escorregou no chão molhado e caiu de bruços precisamente em cima da mesma faca, que tinha acabado de bater com o cabo no chão e ainda não tinha tombado. Esta perfurou-lhe o tórax com o resultado que já conhecemos.



Sem comentários:

Enviar um comentário