o quilómetro 25

    Quando rebentou a úlcera ao meu amigo Diamantino e teve que ser operado de emergência, eu só soube três dias depois. Claro que fui visitá-lo nesse mesmo dia.
 
    O Diamantino e eu fomos vizinhos e amigos de infância. Aquele arco que o avô lhe tinha dado, e que era do cubo da roda dum carro de besta, era o meu brinquedo preferido aí pelos meus dez, onze anos. Fiz um guiador com um ferro das obras e andava muito mais com ele do que o Diamantino.
 
    Quando eu nasci, os pais do Diamantino moravam pertinho dos meus, no outro lado da ribeira. Diziam eles a rir que se invejaram e arranjaram o Diamantino. Foi assim que ele nasceu um ano depois de mim. Depois foram morar para mais longe e só nos voltámos a reunir tinha eu nove anos.
    Por esses tempos, costumávamos ser nós que íamos para a estrada esperar os peixeiros que vinham de Odemano com as suas motorizadas carregadas de sardinhas, carapaus brancos e negrões, cavalas, besugos, fanecas, e uma ou outra novidade de tarde em tarde. Costumávamos esperar por volta do marco de quilómetro 25, umas vezes mais abaixo, outras mais acima, conforme a brincadeira nos levava. Eles, ao sair da ponte de São Cristóvão costumavam buzinar apertando aquelas pêras de borracha que usavam para o efeito, e nós vínhamos a correr para a estrada quando andávamos mais longe.
 
    Quando o visitei no hospital, para o que nos havia de dar, para rememorar episódios, hilariantes uns, dramáticos outros, que presenciámos, juntos ou individualmente por volta desse quilómetro 25. Dramáticos como o daquele senhor que ficou entalado debaixo do tractor do Armando Correia, com o óleo quente a escorrer por cima das pernas. Esse felizmente acabou por escapar. Já aquele rapaz da Alcaria, que o pai lhe tinha comprado uma Zündapp Perfecta, não teve tanta sorte. Atrapalhou-se na curva, com a estrada molhada de fresco fez pião, e foi colhido por trás por um carro, por acaso de um senhor que era seu vizinho lá na Alcaria. Depressa abandonámos os episódios dramáticos que nos faziam pele de galinha.
 
    — Carlos, lembras-te daquele carro que lhe saltou uma das rodas da frente na mesma curva do moço da Alcaria?
    Se me lembrava! Era um daqueles carros antigos, não me lembro da marca. Foi a roda direita que se soltou do carro, este guinou para a direita e assentou o cubo no chão A velocidade também não era muita, mas foi a suficiente para embalar a roda de tal maneira que passou rolando pela frente do carro, atravessou a estrada e galgou pela encosta abaixo. Andavam umas mulheres apanhando azeitonas perto do caminho que passa lá em baixo a uns trezentos metros da estrada. Eu e o Diamantino bem gritámos para elas se desviarem, mas o vento estava norte e elas não ouviam. Por sorte a roda passou entre elas sem tocar em nenhuma e foi tombar por falta de embalagem mesmo antes de chegar às piteiras que bardavam o caminho.
 
    — Diamantino, e aquele das moedas?
    E ele já se ria.
    Foi na outra curva, no princípio da subida. O carro ia cheio de gente. O chofer não se apercebeu a tempo que a curva era tão apertada e teve que travar e apertar com o volante já no meio. A porta do lado direito abriu-se e saiu de lá a voar um homem bem corpulento. Parecia que tinha sido atirado por uma catapulta. No ar ainda ia na posição de sentado. E sentado aterrou em cima da daroeira, que lhe serviu de almofada. Só ficou um pouco doído, nada de grave. A parte engraçada, e proveitosa para nós, é que passados quinze dias ainda lá encontrávamos moedas. Coitado! Devia levar os bolsos do casaco e das calças cheios.
 
    — Carlos! E lembras-te da Clementina?
    Ai não, que não me lembrava!
    Fui eu que primeiro ouvi o tiquetique espaçado dos saltos altos na estrada. Ambos soubemos imediatamente quem era. A Clementina já passava dos vinte. Era a mais nova de dez irmãos.
    — Ainda há outra mais nova, — corrige-me o Diamantino —  a Alice.
    — Pois há, não me estava lembrando da Alice. Essa moça foi lá para a França, nunca mais a vi.
    A Clementina, contra ventos e marés, decidiu ir para a escola secundária, já depois de crescida. Apesar de, ou por isso mesmo, a maior parte dos irmãos e irmãs já terem saído da casa dos pais, as posses não abundavam. Umas leiritas de terra muito minguadas. Uns pais já de idade avançada. Mas ela teimou. Ia a pé para a vila, dez quilómetros para lá, dez quilómetros para cá. Acontece que a Clementina não era moça de andar fora de moda: sapatos de salto altíssimo, saia travada e uma poupa digna da Rita Pavone. E lá ia ela em passo miudinho, tiquetique tiquetique pela estrada fora.
    Ambos nos escondemos atrás duma daroeira mesmo junto à estrada para a vermos bem de perto sem sermos vistos. Nem se nos ouvia a respiração.
    Foi quando o cabelo dela se soltou e algo caiu no chão...
 
    Parece que o riso é uma necessidade fisiológica. Quando estamos algum tempo impossibilitados de rir, a energia acumula-se e então é como os tremores de terra: quando se solta é uma força tremenda que chega a pontos insuspeitados do nosso corpo. Se não acreditam experimentem rir com vontade quando tiverem uma crise de gota a afectar um dedo do pé.
 
    A Clementina olhou para todos os lados. Fez uma ginástica digna de uma acrobata para se conseguir dobrar com a saia travada e apanhou do chão nada mais nada menos que um enorme rolo de palha-de-aço.
 
    E a enfermeira de serviço teve que me mandar embora antes que algum dos pontos do Diamantino rebentasse.


2 comentários: