Parece-me que a estou a ver subir a vereda que nos trazia da casa onde ela nasceu e cresceu até à estrada nova.
Não sei se alguma vez viram como as pessoas da serra vencem as subidas íngremes e prolongadas que, na serra, estão por todo o lado. Dão passos curtos em cadência lenta e constante, assentam a sola do pé por inteiro de uma vez só no chão e balançam ambos os braços ao mesmo tempo, para a frente e para trás, para dar o máximo impulso ao corpo. Assim vencem quilómetros de subida sem parar e sem mostrar sinais de cansaço. Quando vão à vila ou mesmo lá abaixo ao Algarve, como se diz na serra, mantêm amiúde o mesmo estilo no andar. Nas subidas, então, é quase certo que o façam. Quando subíamos ambos a ladeira eu tinha sempre que descansar pelo menos duas vezes. Sentava-me numa pedra a recuperar o fôlego, ela ficava de pé a olhar para mim e a rir.
Conheci-a no restaurante da Julieta Dias onde ela trabalhou quase desde que acabou a escola primária. Quando voltei da tropa e fui trabalhar para a oficina do Mariano Duarte, íamos sempre lá beber o café depois do almoço. Confesso que simpatizei com ela na primeira vez que a vi, tinha ela dezasseis anos; tenho mais sete. Para mim as bochechas rosadas dela eram pétalas duma flor mimosa. Comecei a passar lá muito tempo, cada vez mais. Não havia tarde que não me demorasse por lá. Ficávamos de conversa sempre que o serviço dela permitia. Um dia enchi-me de coragem e pedi-lhe namoro. Ela olhou-me de viés e disse com aquele ar meloso que me derretia:
— E eu pensando que já namorávamos!
Para encurtar a história direi que casámos tinha ela dezanove anos. Viemos morar para Odemano. Eu tinha arranjado trabalho na oficina de alumínios e ferro do meu primo Aníbal. Sempre gostei mais do ferro forjado que da mecânica de automóveis, que era o que fazia na oficina do Mariano. Acho que tenho veia de artista, e o ferro forjado dá-me a possibilidade de criar obras de arte. Tivemos um casalinho logo nos primeiros três anos de casados; para dizer a verdade a primeira nasceu cinco meses depois do casamento. A Rogélia, assim se chama, arranjou trabalho numa padaria, a vender pão.
Desde ainda antes do namoro tinha percebido que ela gostava de ter estudado mais. Eu andei na escola até ao terceiro ano. Comecei a trabalhar nas oficinas aos quinze. Felizmente não foi porque os meus pais não pudessem, eu é que não tinha paciência para a escola. Eu sei que faz falta, mas a escola não foi feita para mim. E também porque assim já ganhava alguma coisa para os meus gastos sem estar às tenças dos velhos. Eu queria ter uma motorizada, nunca teria coragem de a pedir ao meu pai. Quando a miúda fez dez anos eu disse:
— Olha lá, Rogélia, tenho pensado muito nisto. Já desde os primeiros tempos que te conheci que sei que tu gostavas de ter estudado. Porque não vais para a escola de noite? A miúda já está crescidinha, já me ajuda a cuidar do irmão. Tu vais à escola e a gente desenrasca-se cá em casa.
Notei que ela ficou muito sensibilizada com a minha ideia. Levou algum tempo a aceitar porque achava que eu não seria capaz de dar conta do recado. Tanto insisti que ela acabou por se ir matricular. A escola nem era longe de casa. Dava para ir e voltar a pé.
Eu bem dizia que ela tinha vocação para a escola. Imaginem que em três anos deu conta de cinco anos de escola. Não sei quando é que ela estudava, o que sei é que cinco anos depois tinha o sétimo ano, ou equivalente, não entendo nada disso. Diziam que ela sabia sempre tudo quando era chamada ao quadro. Eu estava orgulhoso da minha Rogélia.
O meu trabalho não faltava. Havia muitas encomendas e o meu primo era daqueles que sabem reconhecer o valor de quem trabalha. Foi assim que quando ela disse:
— Arménio, agora tenho que procurar um trabalho em que ganhe mais. Gosto muito do trabalho na padaria, mas para isso não precisava de ter estudado.
Eu respondi-lhe:
— Não, Rogélia! Tu agora vais para a universidade. Os moços já ajudam mais do que empatam. Fazemos o sacrifício. Já falei com o Aníbal, o trabalho não falta, posso fazer horas extraordinárias que não dou conta.
Ela começou por resistir. Que isso não tinha jeito nenhum. Uma mulher casada e com filhos fora de casa a semana inteira. Não! Isso não! Mas eu insistia. A Mariana já estava com quase dezasseis anos e também me ajudou a convencê-la:
— Ó mãe, nós damos muito bem conta da casa. Vais a ver que vale a pena, doutora Rogélia. — e ria.
Para dizer a verdade não foi nada fácil. O Pedro estava numa idade difícil, o meu braço direito foi a Mariana. Mas confesso que chegava aos fins de semana meio derreado. O que mais custou foi o último ano, a Mariana entretanto arranjou um namorico, por sinal um rapazinho atinado, gosto muito dele. Mas a Rogélia tinha cada vez mais trabalho lá no curso e ficava em Lisboa muitos fins de semana. Uma vez ficou dois meses de seguida.
— Agora tenho que fazer estágio para conseguir a aprovação na ordem. Vai ser pelo menos mais ano e meio. Gostava de ficar aí ao pé de vocês, mas já fui convidada para fazer o estágio no escritório de um professor meu. Acho que o melhor é aproveitar.
Eu aceitei, um ano e meio passa depressa.
Quando conseguiu a admissão na ordem, o que lhe permitia ser advogada de corpo inteiro, fizeram-lhe uma festa num restaurante de luxo em Lisboa. Lá fomos nós os dois, os moços não quiseram ir. Sentia-me muito deslocado.
— Não sejas parvo, era o que faltava o marido da homenageada não estar presente.
Era tanta gente a cumprimentá-la, a felicitá-la. Eu não entendia metade do que aquela gente dizia.
A certa altura sentei-me num sofá a descansar. Ia passando os olhos pela sala fixando este ou aquele pormenor.
Aproximou-se de mim uma senhora, diria antes uma fulana, gorda, tresandando a tabaco, chegou o rosto junto ao meu, pegou-me no nó da gravata:
— Seu maroto! O senhor deve ter algum encanto escondido para a doutora Rogélia se interessar por si. Ela que é tão exigente com os homens. Não me importava de tirar isso a limpo, seu maroto. — e afastou-se bamboleando as ancas.
Vi duas mulheres, que pareciam ter-se escapado dum filme de Hollywood. A mais alta falava olhando para mim e dizia:
— Não sei o que a doutora Rogélia viu naquele homem. Com tantos homens interessantes por aí. Já viste as mãos dele? E aquela gravata, vê-se logo que não está habituado a usar gravata. Também, como é que alguém se pode chamar Rogélia? — e riam-se. Eu virei a cara para o lado e senti o rubor no rosto, envergonhado como alguém que é apanhado a escutar atrás duma porta.
O pior foi quando a Rogélia estava a conversar com o doutor Vargas, o tal advogado no escritório de quem ela tinha estagiado. Olhavam ambos para mim. Diz ele:
— Já lhe disseste?
— Ainda não, não quero estragar a festa ao pobre.
Ainda não falei do meu tio Armando. O meu tio Armando esteve na tropa na Índia. Apanhou lá uma doença, hoje suponho que tenha sido alguma virose, na altura não se me pôs essa questão, podia ter-lhe perguntado mas agora já é tarde. Bem, ele esteve muito mal e perdeu por completo a audição e a fala. Teve que reaprender, creio que em Alcoitão, a falar e a ler os lábios. Morava mesmo ao meu lado quando eu era pequenito. Eu gostava muito dele, e ele de mim. Passávamos muitas horas juntos. Parece que estou a ouvir a sua voz monocórdica e pausada. Ensinou-me que tinha que falar com ele pronunciando bem as palavras e olhando-o de frente. Como eu era muito curioso, ele também me explicou como me entendia. E foi-me ensinando a ler os lábios. Divertíamo-nos muito a brincar com isso. Ele morreu novo, de um aneurisma, tinha trinta e nove anos.
Nunca mais tinha praticado, nem me lembrava de tal coisa. Mas quando vi os lábios carnudos e bem vermelhos daquela mulher a moverem-se comecei a soletrar e aos poucos fui decifrando até que já entendia perfeitamente. Se calhar é como andar de bicicleta.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
metamorfose
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário