o joão cuco

     Eu estava abrindo os buracos na parede com o broquim de manivela que era do meu sogro, para pregar os camarões onde havia de amarrar a rede, quando ele apareceu a esbracejar e aos gritos:
    — O que é que você me está fazendo à parede?
    Eu estava no meu terreno. Como é que eu havia de segurar a rede sem furar a parede? Mas ele vinha direito a mim com uma tal fúria que comecei a ficar com medo. Não parava de gritar:
    — Quem é que lhe deu autorização para me estar furando a parede?
    Ele é um homem bem encorpado, com talvez mais de um metro e oitenta. Eu tenho um metro e cinquenta e três, pelo menos é isso que diz no bilhete de identidade. Ao pé dele sou um pardalinho. Tive medo, quem é que não teria medo?
    Olhei à volta à procura de alguma coisa com que me defender e arranquei um dos paus de eucalipto que já tinha atanchado para segurar a rede. Quando ele me tentou agarrar dei-lhe com ele no lombo duas vezes.
    Aquele pedaço de terra por trás das antigas ramadas do gado é muito ruinzinho, aquilo só dá erva. Lembrei-me que podia aproveitá-lo para fazer um cercado para as galinhas. Quando as galinhas andam à solta, a comer pedras e bicharada, dão logo melhores ovos e carne. E assim aproveito aquela casa que tem a porta lá para trás, onde guardavam a folhada do milho e o feno quando tinham gado, e fica a servir de galinheiro. A minha Isaura, com a mania de contrariar, disse logo:
    — Achas bem feito pôr um cercado de galinhas mesmo arrumado à casa dos vizinhos, com tanto terreno que temos. Gostavas que te viessem pôr a estrumeira a cheirar mal à tua porta?
    Tive que lhe abrir bem os olhos para ela entender quem veste calças cá em casa. Nunca fui homem de bater na mulher. Só se for mesmo obrigado. Há homens, eu conheci um quando era pequeno, que todos os dias arriava na mulher. Não gosto disso. Contam-se pelos dedos das mãos as vezes que tive que dar uns carolos na minha. E não gostei nada, fiquei sempre mal disposto. Mas se um homem as deixa mandar nunca mais dá conta delas. E dizem que há mulheres que também gostam de levar, isso não sei.
    O jipe da guarda chegou ainda antes da ambulância. Não sei quem os chamou, ainda estou para saber. Dali ao posto público ainda são bem uns três quilómetros e não há telefone nenhum mais perto. Desconfio que foram os tiradores de cortiça que andavam no outro lado da ribeira, ouviram a gritaria das mulheres e foram de bicicleta. Mas não sei. Eu tenho a certeza de que só lhe dei com o sarrafo duas vezes, e foi no lombo.
    A minha Isaura, que apareceu não sei de onde, porque tenho a certeza de que ela tinha ficado em casa a fazer o almoço, e não dei por ela se ter aproximado, disse ao cabo da guarda, que eu ouvi com os meus ouvidos, que lhe dei com o pau pelo menos cinco vezes, e que a primeira foi na testa. A minha própria mulher! Estou cá com a pulga atrás da orelha, queira Deus que me engane, nem quero pensar numa coisa dessas, mas isto de dar as favorências ao vizinho Augusto não me cheira nada bem. Eles foram criados ao pé um do outro. Tenho que passar a andar de olhos bem abertos.
    Uma pessoa não pode deixar que o pisem. Nunca me esquece daquela história da barragem. O dinheiro que lá gastei, e depois ter que desmanchar aquilo tudo e ainda ser multado pelos hidráulicos. A barragem estava na minha terra. Vem ele com a conversa de que a barragem ia inundar o terreno dele, se aquilo era só mato. Tive que fazer a barragem cá muito mais abaixo, nem leva metade da água, nem o terreno é tão seguro, uma boa parte dela some-se pelo chão abaixo, e assim nem consigo regar aquele bocadinho à parte de cima de casa, que sempre dava jeito para ter ali a horta mesmo ao pé da cozinha. Só desperdícios. E ainda veio a Isaura com a conversa de que se eu tivesse falado com o vizinho Augusto antes de mandar fazer a barragem ele até não se tinha importado. Sempre a favor dele!
    Quando os meu sogros morreram, a pouco mais de dois meses um do outro, e viemos para aqui, vi que o barranco tinha feito aquela curva lá no “Corgo das Abelhas”, à estrema com o pinhal do doutor Leandro. Os barrancos são assim, às vezes mudam de lugar, e aquela vargem sempre leva bem um alqueire de favas, e que boa terra aquilo é para favas. A minha mulher diz que sempre conheceu aquilo assim, mas eu acho que ela nem ia para lá quando era moça, e para que quer o doutor Leandro uma vargem daquelas se para ele fica lá no fim do mundo, por trás do pinhal. Pois não sei quem lhe foi contar mas desconfio que foi o gajo da máquina que eu chamei para ir lá endireitar o barranco como devia ser. Nunca me esquece que me fizeram pagar o trabalho da máquina a desmanchar o que estava feito e ainda as despesas do tribunal. E o juiz ainda me disse lá na audiência que ficava assim porque eu não tinha antecedentes. Como se fosse pouco. Malditos juízes.
    Mas não são só os juízes, nem os da hidráulica, o estado é todo assim. Quando vieram os homens dos marcos, o primeiro que falou comigo ofendeu-me logo:
    — É o senhor que lhe chamam João Cuco? Desculpe lá, não sei se é nome se é anexim, mas como toda a gente por aí o chama assim, nós precisamos de saber de quem é que estão a falar.
    Deu-me cá uma rabiada.
    — O meu nome é João dos Santos Palhinha. Na minha terra conhecido por João Domingos, porque já o meu pai era conhecido por Manuel Domingos, mas isso não era o nome dele. Agora Cuco é que não, eles que vão para o raio que os parta com esse Cuco.
    E ele:
    — Não se zangue, senhor João, nós só queremos ter a certeza de a quem é que eles se referem quando dizem “João Cuco”, para não haver confusões.
    E ele a dar-lhe com o Cuco! Fiquei cá com uma arrelia ao homem que nunca mais o vi com bons olhos.
    Mais tarde, quando vieram fazer a reclamação, eu reclamei do que tinha a reclamar, não chegou a uma dúzia de reclamações, vocês sabem o que aquele moço do Joaquim do Vale, aquele Carlos, que nessa altura tinha começado a trabalhar com eles, um dia me disse:
    — Senhor João, você é um homem com azar. Veja lá que onde quer que você tem um bocadinho de terra lá tem um mau vizinho. É mesmo azar!
    Eu não conhecia o moço, trabalhei com o pai na fábrica da cortiça quando éramos moços e era uma jóia de homem, mas ao moço nunca mais lhe falei. Não lhes parece que ele estava querendo dizer que a culpa era minha?
    Agora tenho que estar aqui até terça-feira, que segunda é feriado e o tribunal está fechado. Só o trabalhador do campo é que tem que trabalhar todos os dias. Quem é que me paga estes três dias aqui preso. Corja! E o doutor Gomes ainda me vem dizer que se tenho o azar de o homem morrer, porque ele está muito mal, vou apanhar uns anitos. Como é que pode ser uma coisa destas se eu agi em legítima defesa. Queria ver se fosse com algum de vocês, verem vir um latagão daqueles a gritar e a esbracejar, parecia um toiro bravo. Um homem tem que se defender!


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