— Tinha que ser. Ele foi sempre muito esquisito, só não via quem não queria.
— É verdade, vizinha Guiomar. Já a minha mãe dizia. Mas nunca imaginava isto.
— Não imaginava? Toda a gente aí nas redondezas sabia. Só aqui é que andamos de olhos tapados.
— Sim, toda a gente sabia que havia ali mistério, mas...
Quando o solicitador o procurou na loja, estava o Augusto longe de imaginar sequer que tinham aquele tio. De um momento para o outro a vida parecia sorrir-lhe. O testamento é claro na substância: a herança vai para os filhos do sobrinho mais novo à data da sua morte. Mesmo dividindo com o irmão, e mesmo que não fosse uma grande herdade havia de dar para alguma coisa. Ainda antes de falar com o irmão e com a mulher, já estava no stand a negociar o carro dos seus sonhos, um Toyota Corolla Station.
— Já me fui informar, Domingos. A herdade não tem cortiça nem rendimento nenhum que não seja preciso trabalho e gastar lá dinheiro. Tem o monte e uns duzentos e trinta hectares de terra. Dizem que tem boas condições para pastagens. Cá no meu ver o melhor era pô-la à venda. — O Augusto tenta convencer o irmão.
— Por mim acho que o melhor era não ter pressa, a ver se entendemos melhor o que nos caiu nos braços. Assim como assim, perder não se perde nada. Não tínhamos nada. Mas se tu estás com pressa em conseguir dinheiro também não me oponho àquilo que faças. Cá está, não tinha nada, também não vou perder nada. Mas olha, tens que ser tu a tratar disso, tu é que tens pressa. O que fizeres para mim está feito.
E o Augusto meteu mãos à obra. É que estava mesmo com pressa. A loja de fazendas, herdada do sogro, que lhes tinha dado vida folgada, já não vendia nem uma quarta parte, nem uma quinta, de quando lhe pegou. Para se modernizar, ou mudar de ramo, não tinha capital. E cada vez menos. Sentia-se apertado, num beco sem saída. Não lhe passava sequer pela cabeça sugerir à mulher que voltasse a dar aulas. Tinha sido ele que a tinha convencido a deixar o ensino. Ainda por cima tinha-se deixado levar no impulso da compra do carro. Bem, o outro já quase não havia ano que não o fizesse deixar uma boa maquia na oficina. Pediu a um amigo que lhe fizesse uma avaliação da herdade, assim por alto, e pôs um anúncio no jornal.
— Li no jornal que está uma herdade à venda aqui perto, a Herdade da Codorniz. Queria ver a herdade. Alguém me sabe indicar o caminho para lá? — pergunta um interessado no adro da igreja.
Ninguém lhe responde.
— Deve ser aqui perto pelo que dizia no jornal... — todos encolhem os ombros.
Na venda da aldeia aparece outro possível comprador a perguntar o caminho. O Tio Manuel olha-o bem nos olhos e diz com ar grave:
— Se fosse a si não comprava.
— Mas porquê?
— Eu não disse nada. Faça como quiser, mas depois não me venha culpar a mim. — e fechava-se em copas.
E mais um:
— Bom dia! Desculpe, sabe-me dizer o caminho para a Herdade da Codorniz?
A mulher meteu a cabeça em baixo e pareceu ao doutor Covas que se persignava enquanto acelerava o passo.
Passam os meses. Volta a insistir com outro anúncio, por um preço mais baixo. E nada. Os possíveis compradores desistem ainda antes de responder ao anúncio. Nenhum responde sem tentar ver primeiro a herdade, e no local ninguém lhes indica o caminho. Passam três anos e o Augusto não consegue vender a herdade, apesar dos repetidos anúncios.
Quando os homens do banco vieram buscar o carro, ele ficou um bom bocado na loja a olhar para as estantes quase vazias. Depois pegou nalgumas notas que estavam na gaveta, atafulhou-as no bolso do casaco, passou numa drogaria e foi à procura dum táxi.
— Para a Herdade da Codorniz, fica no concelho de Odemira. Eu sei o caminho.
Quando o taxista o deixou junto ao monte da herdade entregou-lhe as notas sem sequer perguntar quanto era.
— Isto é dinheiro a mais. Tome lá o troco.
Augusto nem olhou.
— Não se preocupe com isso, fique com o troco.
Assim que o táxi partiu dirigiu-se ao velho pereiro que existia mesmo em frente da janela do quarto que tinha sido do tio. Era uma sexta-feira, vinte e oito de Novembro e estava um dia de sol radioso.
Quando o taxista viu no jornal, de há semanas, na barbearia, o anúncio do desaparecimento, olhou para a fotografia, somou dois mais dois e foi participar à polícia o que suspeitava.
Quando a guarda levantou o corpo já o cheiro quase se não sentia nos arredores.
Depois da morte do irmão, ao Domingos meteu-se-lhe na cabeça que estava farto da vida de Lisboa. Dos transportes. Do barulho. Do patrão. Da rotina...
— Susete, eu vou à frente para o caso de aquilo correr mal. Já me informei com um amigo do Augusto, aquele que fez a avaliação da herdade. Faço um empréstimo ao banco, compro umas sete ou oito vacas, uma carrinha de caixa aberta, faço algumas reparações no monte que sejam mais necessárias...
Ela olhou-o de lado:
— Tu estás maluco, Domingos? O que é que tu percebes de vacas?
Mas ele insistia com tanta convicção que acabou por convencê-la.
Ao fim de cinco anos ninguém diria que o Domingos alguma vez tinha sido um funcionário burocrático de uma cimenteira. A exploração ia de vento em popa. Tinha começado com oito vacas leiteiras. Já ia nas vinte e sete.
Ia a casa duas ou três vezes por mês, conforme o serviço permitia.
Numa quarta-feira, dezassete de Abril, estava um dia de chuva, o Domingos passou na venda da aldeia, onde havia o posto público dos correios, para ligar para a mulher. Não atendeu.
— Senhor Domingos, estão aqui duas cartas com aviso de recepção. Como sempre, assinei.
— Fez bem, Tio Manuel.
Ambas as cartas eram de advogados. Estranho! Ainda antes de passar a ribeira não resistiu à curiosidade: o que seria? e logo duas?
O primeiro dizia ser mandatário da cunhada, e vinha exigir um aumento substancial do valor da renda "dado que a herdade apresenta significativas mais valias em relação à data em que foi celebrado o contrato".
A segunda era de uma advogada que dizia ser procuradora da Susete e vinha requerer o divórcio por "motivos de abandono do lar".
Quando chegou ao monte ficou muito tempo detrás da janela a olhar para a chuva. Depois pegou numa corda e, ainda antes de parar de chover, dirigiu-se ao velho pereiro.
O homem da cooperativa estranhou a falta do Domingos a entregar o leite. Ao segundo dia estranhou mais. Ao terceiro foi falar com o cabo Ramos, comandante do posto da guarda.
— O meu Joaquim diz que o cabo Ramos estava indignado. Vejam lá que a judiciária, não sei o que é que andavam à procura, mas viram o livro no meio das bugigangas do velho e atiraram para o lado sem sequer o abrir, como se não tivesse valor nenhum para a investigação.
— Que livro é, ‘vó?
— Não sejas impertinente.
— ‘Vó, que livro é? — o Marinho puxa pela manga da avó.
— Não são coisas para a tua idade. Está calado!
— É o livro de São Cipriano. Que mal faz a criança saber? — o Alfredo "Moina" ouviu, meteu o bedelho e foi andando.
Todas se persignaram.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
uma herança maldita
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Reli, e adorei
ResponderEliminarObrigado.
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