A V5 engolia quilómetros com apetite insaciável, mesmo na subida íngreme. Deitava-se nas numerosas e apertadas curvas para não perder a embalagem. Depois do monte do Javali já a estrada era mais suave.
— Ó Crispim, vamos ali à oficina e arranjamos quatro ou cinco iguais àquela enquanto o diabo esfrega um olho. — o Eduardo bem o tinha tentado dissuadir daquela viagem.
— Não! Já procurei muitas vezes e não encontro uma igual. Umas são muito grandes e as outras muito pequenas.
O Crispim era assim; a V5 era a sua aliada preferida, sempre às ordens. Quando se lembrava de que lhe fazia falta alguma coisa de casa, lá na Beira Baixa, não hesitava; fosse inverno, fosse verão, montava as cangalhas na V5; se fosse inverno montava também o pára-brisas e os guarda-pernas. As cangalhas eram uma armação que ele tinha mandado fazer a um serralheiro de Santa Bárbara; serviam para amarrar carga nos dois lados da V5 como se fosse um burro ou uma mula. Com as cangalhas carregava bem três malas, uma de cada lado e outra em cima. Chegava a carregar mesas, camas, tudo. A V5 era como uma mula, com a vantagem que vencia com toda a facilidade as centenas de quilómetros.
— Ó Crispim, você já viu quanto é que gasta de gasolina daqui a Faro, sem contar com os pneus e o resto? Tinha que ganhar muitos juros para recuperar essa despesa.
— Mas é meu! Se deposito aqui leva pelo menos três ou quatro dias a chegar o dinheiro à minha conta.
Quando recebia o cheque, o Crispim podia ir às finanças e depositá-lo na caixa geral de depósitos, havia lá um empregado que tinha essa função: representar a caixa geral de depósitos. Mas isso não seria o Crispim. O Crispim pegava na V5 e ia a Faro no mesmo dia depositar o cheque. E não pensem que o Crispim ia a Faro e aproveitava a viagem para mais algum assunto; não, pelo tempo que demorava ele ia e vinha de seguida.
Quando ia à terra, nalgum fim de semana, ou colher a azeitona, nas férias, deixava tudo de tal maneira que quando voltava sabia sempre se algum dos camaradas de trabalho com quem partilhava a casa alugada tinha mexido nalguma coisa. Por exemplo, na caixa de fósforos deixava um fósforo atravessado. Na gaveta dos talheres deixava um bocadinho de cartão entalado de maneira que cairia ao abrir a gaveta. Tudo armadilhado.
Não pensem que o Crispim era um mãos fechadas. Não! ele era capaz de dar a camisa se fosse preciso. Mas tinham que saber que ele sabia que tinham mexido nos fósforos, ou no sal, ou no azeite, ou na gaveta dos garfos, ou fosse no que fosse.
O Crispim falava sempre de seguida. De tal maneira que uma vez no Barranco do Velho, num dia de chuva, fez-se dois minutos de silêncio na taberna e toda a gente olhou para o Crispim. E este, quando deu pela falta:
— Então! Ninguém diz nada?
Foi gargalhada geral. O Crispim não se desmanchava. Ficou a ranger os dentes por alguns segundos, mas retomou imediatamente o matraquear normal.
— Deve ser medida inglesa. Vamos lá à oficina e encontra-se de certeza. Pode é ter que se procurar bem.
— Não se encontra, não! Tantas vezes que já procurei nas drogarias, nas oficinas.
O Eduardo veio a conhecer, alguns anos mais tarde, o carácter generoso do Crispim.
— Senhor Eduardo, o senhor Manuel está à rasca, nem ele sabe no que está metido. Alguém tem que o avisar.
— Já reparei, Crispim. Mas ele é que sabe. Já lhe chamei a atenção mas ele não liga nada.
O senhor Manuel, tal como o Crispim, já estava reformado. Mas veio fazer reconhecimento em regime de empreitada, um tanto por cada ortofotomapa de cem hectares. Ele era uma pessoa simpática, mas orgulhoso no trabalho. Recebeu duas fotografias simples que estavam muito mais actuais e nítidas do que o ortofotomapa. Vai daí resolveu fazer o reconhecimento sobre essas fotografias. Ele que nunca tinha feito reconhecimento, era regente agrícola.
Ora, o terreno era muito acidentado e numa fotografia aérea que não tenha sofrido tratamento a escala não é uma constante, depende de muitos factores, e em terreno cheio de altos e baixos então as diferenças de escala de um lugar para outro atingem máximos imprevisíveis para qualquer leigo.
O Crispim estava deveras preocupado com o senhor Manuel.
— Senhor Eduardo, ele a mim não liga, mas você há-de arranjar uma maneira de o fazer entender. — e o tom do Crispim era quase implorativo. Fez o Eduardo prometer que iria ajudar.
E assim foi. Nesse mesmo dia vinha o Eduardo a descer a escada da pensão e estava o senhor Manuel com as duas fotografias a trabalhar todo entusiasmado. O Eduardo olhou pelo canto do olho e viu a oportunidade. Dois caminhos apareciam numa das fotografias quase sobrepostos e na outra bem afastados. Normal, eram numa encosta, e as fotos tinham sido tiradas sucessivamente com o avião em voo, logo foram tiradas de pontos de vista diferentes.
E foi assim que conseguiu fazer entender ao senhor Manuel o erro que andava a cometer. Outros teriam simplesmente pensado: ai tu é que sabes, então desenrasca-te. Mas o Crispim era um homem muito mais sensível e generoso do que parecia.
Estava o Eduardo dormindo a sesta quando o Crispim lhe bateu à porta:
— Aqui está ela. Estava lá no sítio onde estive a conferir os números, mesmo em cima da pedra ao lado daquela em que estive sentado. — e o Crispim estava orgulhoso da sua façanha. Cinquenta e dois quilómetros em ida e volta para recuperar uma anilha.
— Esta é que tem o tamanho certo para caberem os números dentro. Já anda comigo há dezanove anos!
O Crispim viria a ser atropelado mortalmente na sua terra, antes dos oitenta, na força da vida, quando atravessava a estrada, sem a sua V5.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
o crispim e a sua v5
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Muito interessante. O Crispim, levava o trabalho a sério. Levou uma vida na estrada e viu a morte, longe da sua V5.
ResponderEliminarAdorei.
Obrigado.
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