senhora de fátima

     Quando voltou a si havia uma multidão à sua volta. Fez mais de trinta quilómetros sem encontrar ninguém, e agora tanta gente. São os retardatários que regressam da feira.
    — Temos homem! Temos homem!
    Tenta levantar-se, mas a perna direita avisa-o de que não está sã. E volta a estender-se no chão. Não tem ideia de há quanto tempo ali está. Só tem a imagem duma luz forte e da escuridão que se fez. Tudo escuro, não vê a estrada, não vê nada; depois nem sabe se bateu ou se lhe bateram. E a carrinha? Onde está a carrinha? Só depois soube que a carrinha o atirou fora e rebolou por ali abaixo até ao fundo do barranco. Mais de duzentos metros a espalhar botas e sapatos pelo meio das estevas e dos tojos, das urzes e dos medronheiros.
    Completa a escola primária, o pai falou com o parente Filipe do Cardal de Cima e mandou-o para lá a aprender o ofício de sapateiro. Légua e meia na ida, légua e meia na volta. Ao princípio a pé; quando fez treze anos comprou uma bicicleta. Aí já levava e trazia o calçado da aldeia, para consertos. E de vez em quando já tirava medidas para calçado novo. Era vê-lo à luz do candeeiro a petróleo com o lápis a riscar o papel à volta do pé do freguês.
    — Tira sempre dos dois, Nicolau, — recomendava-lhe o mestre Filipe — os pés nunca são iguais. E nunca te esqueças de medir o peito do pé, dos dois também. E tem cuidado para não trocares. O melhor é escreveres logo no molde.
    Tinha jeito para o ofício. Aos quinze anos já o parente Filipe lhe entregava de vez em quando um par de botas para fazer do princípio ao fim, talhe e tudo.
    — Toma muito cuidado com essa faca. Tem que estar sempre bem afiada. Quanto mais bem afiada estiver menos perigosa se torna.
    Quando voltaram da Alemanha, onde foram emigrantes durante vinte e seis anos, o Nicolau já trazia na cabeça a ideia, embora um tanto vaga, de se meter no negócio do calçado. Afinal foi no calçado que trabalhou na sua mocidade e mesmo já depois de casado.
    Montar uma sapataria na aldeia está fora de questão, é tão pouca gente. Deixar a sua aldeia e ir viver para o litoral? Nem pensar. É aqui que tem a casa. É aqui que tem os amigos. Aqui é que se sente bem. Os filhos já foram à sua vida. A mulher também é da aldeia, também é aqui que se sente em casa.
    E assim se foi talhando na sua cabeça o projecto de comprar uma carrinha e começar a vender nos mercados e feiras. Quando falou à mulher no assunto, ela não foi fora do jeito.
    — Depois também podes ir comigo de vez em quando, sempre que houver mais trabalho; e sempre vais mudar de ares.
    — É melhor comprar primeiro a carrinha e alinhavar o negócio e depois logo se vê, não? — a mulher puxa-o para a terra, como sempre.
    O Nicolau nunca mais parou, a sondar fornecedores, a visitar mercados, a sondar preços, tendas, marcas de carrinhas. Nova? Em segunda mão?
    Decidiu-se por uma nova. O dinheiro para a entrada não é problema. A casa está feita. Por muito mal que o negócio corra a carrinha nunca é perdida.
    O Nicolau nunca foi pessoa de ir à missa, tem o seu respeito e até a sua crença, mas não é pessoa de ir a uma confissão, a uma comunhão, nada dessas coisas. A mulher também não é católica praticante, raramente vai à missa, embora não perca as procissões e as festas religiosas. Mas, uma vez comprada a carrinha, uma Toyota HiAce azul, novinha em folha, logo as amigas da mulher, encabeçadas pela mana Julieta, começam a tentar convencê-la de que devem mandar benzê-la.
    — Ó Nico, eu também não sou de benzeduras, acho que são coisas pagãs, mas que mal faz? E se um dia acontecer alguma coisa, a vizinhança, e especialmente a minha irmã, não vão ter nada que dizer.
    O Nicolau resiste tanto quanto pode à ideia. Mas a dada altura acaba por ceder à pressão da mulher. Contrariado e receoso, pois é supersticioso, um supersticioso secreto, daqueles que acreditam que o falar do mal pode chamá-lo.
    É rara a semana em que não sai duas ou mesmo três vezes. Mercado aqui, feira acolá. Há épocas do ano em que tem de escolher onde tenha mais fregueses. Tem sempre muito cuidado para não desiludir a freguesia, e o negócio vai correndo bem.
    Até àquela madrugada em que regressa da feira de Almadrava e sobe a serra, já perto de casa. Nunca fez um seguro contra todos os riscos. Porém, tira sempre o cinto de segurança quando começa a subir ou a descer a serra. Faz isto desde que, em menos de um ano, aconteceram quatro acidentes com carros a rebolar pelas ribanceiras da serra; só um não escapou com vida e foi precisamente aquele que levava o cinto posto.
    Quando elas entraram na enfermaria estava o Nicolau a contar ao vizinho do lado a sua opinião sobre o uso do cinto de segurança nas estradas da serra.
    — E o que é que vai fazer no dia em que for apanhado pela brigada?
    — Tenho mais amor à vida do que medo à brigada.
    — A Julieta diz que temos que ir a Fátima? — e a mulher aponta para a irmã.
    — Não fiz promessa nenhuma. Não me digas que ficámos sem a carrinha e sem para cima de duzentos contos em sapatos e botas e ainda temos que agradecer!
    — Não fizeste promessa nenhuma, Nico. Mas fiz eu por ti. E tu escapaste com vida, não escapaste? — e a Julieta continua implacável — Não me vais deixar ficar mal com a Nossa Senhora de Fátima!

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