O que mais me chocou foi a inesperada reacção dela. Por mais voltas que dê à cabeça não vejo motivo para semelhante crispação. É que ele só disse: «Porque é que isto não me espanta?»
— Mana, às vezes uma gota de água faz transbordar o copo.
Lá vem o meu irmão com lugares-comuns. Como se não houvesse motivo para o comentário dele. Íamos a sair para a praia, eram quase onze horas. O único café do bairro, para tomarmos o pequeno almoço, fechado.
Ela não entende que o nosso pai nunca perde uma oportunidade para depreciar os algarvios.
— Ó mano, poupa-me. Eles parece que estão ricos. Parece que não precisam de trabalhar. Até parece que não precisam do nosso dinheiro.
É isto que ela não entende, ouvindo-a falar, é tal e qual o pai. Para eles os algarvios deviam estar dispostos a tudo, como se existissem para nos servir. Eu também não sou algarvio, mas entendo bem como à mãe estas atitudes e comentários mordazes doem.
Nunca ouvi ela protestar por nada, fui apanhada de surpresa. Será por o pai ser professor de português e de vez em quando lhe chamar a atenção quando ela usa aquelas palavras incorrectas, como cangrejo, como griséus, como “békm”, ou lá o que é que ela diz às vezes. Pensando bem, ela fica muitas vezes calada, mas depois volta a dizer o mesmo, não aprende.
— E porque é que havia de aprender, Isabel? E não é “békm”, é “bem como”, é só uma questão de sotaque e também usam a expressão de maneira especial. E olha que eu gosto muito da maneira como os avós falam.
Ele não consegue entender que o português é só um, como é que as pessoas se iam entender se cada um desatasse a usar os disparates que os antigos do campo e do mar diziam? É isso que o pai diz. Mas ele está armado em menino da mamã.
Ainda o ano passado ia com o pai ali no Alvor e ouvimos um pescador a dizer para outro, com ar de poucos amigos: “Tibopi!” Perguntei ao pai se tinha entendido e ele ficou a olhar para mim e a abanar a cabeça: «Como queres que eu saiba, essas coisas só se perguntares à tua mãe ou aos teus avós, eu sou só professor de português.»
Se eu lhe dissesse que ela está armada em menina do papá ela não ia gostar. Mas está mesmo. Se ela se tivesse dado ao trabalho de explicar a entoação da frase até eu lhe teria dito que o que o homem disse é: «Vai-te embora, pilho!» E o que ele disse foi “Tibó pi” e prolongou este pi de tal maneira que toda a gente aqui entende.
E não aprende a dizer “em Alvor”. Não respeitam as maneiras de falar dos da terra. Um dia destes começo a dizer lá em casa “na Coimbra” e vamos vê-los a não gostarem.
— Qualquer dia, Jorge Miguel, oiço-te a dar explicações de português ao pai. Devia ser para rir.
Não há nada a fazer. Eu também não estava à espera daquela reacção da mãe. Mas tenho vindo a pensar muito no assunto e compreendo-a. Ela nunca se abriu comigo, mas compreendo. Ela estar farta já deve vir de longe, mas o facto de a Isabel estar a fazer os dezoito anos não deve ser alheio a esta tomada de decisão.
Quem é que o meu irmão se acha para estar sempre a olhar-me como se eu fosse uma criança. Ele só tem mais cinco anos, três meses e dois dias que eu.
— Pelo contrário, eu acho que já tens idade, Isabel Maria, para teres responsabilidade. Fazes para a semana dezoito anos, serás de maior idade. E deve ser por isso que a mãe ainda não lhe tinha saltado a tampa. Agora achou que era a altura certa. Vai deixar de ter filhos de menor idade.
Não demora muito está a tornar-me as culpas.
Não consigo entender como é que se estraga uma família por mesquinhices, orgulhos.
— Mana, aí é que te enganas. Não são mesquinhices. Mesquinhices são ninharias, coisas pequenas. Aqui são duas maneiras de encarar o mundo, e sobretudo do respeito entre as pessoas. O pai sempre se colocou no patamar da superioridade. Quando digo sempre, é desde que me lembro. Sempre desdenhou dos algarvios, não sei porque casou com ela. A mãe sempre engoliu em seco, e creio que desde há muito tempo o fez por nós. Pelos dois. Agora resolveu bater com a porta. Não sou eu que a vou condenar. E há outro pormenor que não estamos a ver, não digo que és tu que não estás a ver, digo que não estamos. O meu coração também ainda não aceita, mas eu e tu somos família, somos irmãos. Nós e os nossos pais somos família, mas eles os dois não são. Não são nada um ao outro.
Esta agora! Acho que o meu irmão desta vez se excedeu. Como é que ele pode dizer que os nossos pais não são familiares entre si.
Não queria ser tão duro com ela, ela é a minha mana. Se calhar nunca lhe soube fazer senti-lo, mas é. Tinha que lhe dizer isto, é o que penso e acredito que ela vai compreender, mas tarde ou mais cedo.
— Sempre a mesma coisa, tu é que tens a verdade e eu um dia irei compreender. Vai-te lixar, Jorge Miguel Marreiros Falcão. Nunca mais te falo.
A vida é complicada, e eu até optei por ficar em Coimbra, é aqui que estou a iniciar a minha vida. Gostava de estar com a minha mãe neste período, calculo que para ela não é fácil. Recomeçar a vida no Algarve, donde saiu há tanto tempo, não deve ser fácil. E, tenho que reconhecer, sinto muito a falta também da minha maninha, que, vá-se lá entender, optou por ir com ela.
— Sossega, maninho, já te compreendi. Não to disse na altura, estava muito zangada contigo, mas já te entendi.