na aquacultura


Na aquacultura
não há ditadura
há variedade
de opiniões.

Alguns apregoam
há um mar lá fora
para nadarmos
sem donos
já está na hora
de derrubarmos
os muros 
dos tanques.

Ilusões.

Na aquacultura
não há ditadura
há variedade
de opiniões.

Nunca ninguém viu
esse mar
e a maioria
não quer arriscar
há que respeitar
a democracia.

Na aquacultura
não há ditadura
há variedade
de opiniões.

Fritos
com arroz de tomate
preferem alguns.
Assados na brasa
também tem adeptos.
Assados no forno
não causa transtorno
aos maiores.
Acabarmos
numa caldeirada
é o desejo
de quase todos.

Na aquacultura
não há ditadura
há variedade
de opiniões.

E mais nada!

a minha faquinha


O gume de puro aço
mas o aspecto já baço
a folha pela metade
da já avançada idade
e tantas amoladelas
foi-me dada já velhinha 
nos meus tenros sete anos.

Tanto cortei com ela
presunto, pão e linguiça
paus e canoiras de milho
correias, baraços, cortiça
ervas, juncos e madeira
toicinho da salgadeira
e sem aos dedos fazer danos.

Essa foi sem desprimor 
de todas as suas herdeiras 
sempre a preferida minha
muitas outras a seguiram
nenhuma como a primeira 
como dizem do amor
a minha primeira faquinha.

o palhaço


O palhaço sabe
não é da piada
que o povo
ri
é de si.

Qual piada
se tantos nem sabem 
s'é pra rir
s'é pra chorar 
o palhaço
não tem nervos
de aço. 

O palhaço
queria
chorar um dia
o povo se queixa
e não deixa.

O palhaço
perdeu o riso 
com a falta de siso
de
alegres alarves.

O palhaço
perdeu a vontade
de rir
ao ouvir 
tanta imbecilidade.

chuva chuvinha


De corações apertados
nos tens trazido
e tu perdida
por outros lados
para aqui esquecidos
e não merecemos.

Não fujas para onde és de mais

e só vais 

fazer mal

volta para aqui

precisamos de ti

por ti ansiamos

e te queremos.


Tu és o licor

o suco da vida

por favor

dá-nos um sinal

e alguma esperança.


Mas o outono é ainda

uma pequena criança

e já se adivinha

uma bela chuvinha

que sejas bem-vinda!


paradoxo


Num reino antigo que acabei de criar
um homem havia com estranhos poderes
diferente de todos os outros seres
com as desgraças costumava sonhar.

Nesse reino distante que ficava perto
sempre amargurado o homem vivia
antecipando os males ele tanto sofria
ansiando sempre por não estar certo.

Mas por sorte ou azar um dia chegou
em que o sonho foi com uma inundação 
e o bom do homem correu a avisar.

O povo, avisado, todo se salvou
pra tão grande alarme o rei não vê razão 
e o bom do homem foi a decapitar.

já agora

 
Um mais um
nem sempre faz dois
às vezes só faz um
um outro ser
dos dois diferente.

Um homem
mais uma mulher
podem não ser
só ele mais ela
podem ser 
um casal
um outro ente
uma terceira entidade.

O hidrogénio 
mais o oxigénio 
se uma chispa os toca 
ardem
andam à bulha
até podem 
explodir 
mas depois de casados
são apenas um
um terceiro 
de outra qualidade
água, só água
agá dois ó.

Com "já" e "agora" é igual
alguns cegos só vêem 
que é repetição 
mas não 
"já" é neste momento 
"agora", também 
mas "já agora"
é diferente 
é para aproveitar
a oportunidade.

Já que aqui estamos 
já agora 
vamos falar.

Tal como o oxigénio
e o hidrogénio 
em separado
não são água. 

Tal como uma mulher 
e um homem 
cada um para o seu lado
não são um casal.

Também "já"
e "agora"
separados
não são "já agora".




versos com rima


Muitos pensam que o rimar
é que faz a poesia
depois é rimar, rimar
e a coisa fica vazia.

Por isso fiz estes versos 
com temas bem actuais 
falar de versos e reversos
isso tudo e muito mais.

Aquilo que vou escrever
é feito com intenção 
apeteceu-me algo dizer
do tema da ingratidão.

Que há muita ingratidão 
ninguém o pode negar
gente que esquece a mão 
que a ajudou a levantar.

Mas como com todas as folhas
esta também tem outro lado 
e às vezes quando bem olhas
vês que não é desinteressado.

Aquele que estende a mão 
pode ser por interesse
nem sempre acredites, não 
nem tudo é o que parece.

Às vezes o bem é feito
só para que fiques grata 
às vezes é só um jeito
de te pôr em cima a pata.

É bonito querer bem 
a quem te estendeu a mão 
e é bonito também 
demonstrar a gratidão.

Mas é muito feio pedi-la
chega a ser desagradável
ainda é mais feio exigi-la
isso, então, é execrável. 

E só para arrematar
que já vão longos os versos 
e eu só queria assegurar
que tudo tem os seus reversos.

Agora já estou cansado
com tudo o que disse acima
só pra ficar demonstrado 
que também sei usar a rima.


baús interiores


Os nossos passados
de amores 
e desamores
com nus
ou sem nus
infelizes ou felizes
são tesouros
valiosos. 

Não são para esquecer

não são para apagar

não são para reviver

não são para alardear.


São somente 

para guardar 

e bem

guardados 

em baús

muito discretamente 

espalhados

pelos jardins interiores.


E também 

regra de ouro

não são para esfregar 

nos narizes 

dos amores 

novos.



tia jacinta


     São eles! Só podem ser eles. A pequena mancha em movimento não escapa ao olho atento e ainda agudo da Tia Jacinta, apesar dos seus cinquenta e nove anos.
     Deixa lá ver se voltam para cá. E, logo a seguir à Portela da Rata, a mancha tomou o caminho do monte do Barranco Fundo. 
     É mais que certo. Não demora nada estão aí. Gatunagem! E agora o que é que eu faço? Esconder-me não serve de nada. Eles voltam. Ou esperam. Ou arrombam as portas. Sei lá. Essa cambada não tem coração, são capazes de tudo.
     Ah, mas eles não sabem com quem se metem. Eles não conhecem a Jacinta do Barranco Fundo.
     Ora, deixa cá ver, Jacinta. Não posso dizer que vivo sozinha, eles se calhar sabem quantas pessoas vivem aqui. O melhor é dizer a verdade. E fazer-me de surda, muito surda, quanto menos conversa melhor.
     Serei capaz de trazer aqui para a casa de despejo uma saca de trigo? Não perco nada em experimentar. Com o carrinho de ir à água, ele pode com dois cântaros cheios, também deve poder com uma saca de quatro arrobas. Vamos lá ver. Vou empurrar aqui uma destas de cima, assim não a tenho que levantar. 
     Já está. Assim fica bem. Mesmo aqui ao pé da farinha. Mas eles vão achar pouco, uma casa de três pessoas com uma saca só! Vou trazer mais outras duas. Anda lá, Jacinta. Tiveste força para trazer uma, também vais ter para trazer mais duas.

     — Ó Manel! Olha lá, além para a portela. Aquilo não são os homens do grémio?
     — Só podem ser eles. Dois homens com três mulas por estes lados só podem ser eles. Filhos dum cabrão! Um pobre não pode ter nada. Vou já a correr esperá-los lá a casa e vamos a ver o que eles fazem. Se for preciso tenho a espingarda.
     — Não vás, Manel! Não te vás desgraçar. Fica aqui sossegado. O que for há-de ser. Por amor da tua mãe, não nos desgraces.
     — Deixar-me roubar assim e ficar quieto?!
     — E o que é que tu queres fazer? Desgraçar-te a ti e desgraçar a tua família? O baraço parte sempre pelo lado mais fraco.
     O Manuel do Barranco Fundo debate-se dolorosamente entre o portar-se como um homem, e não deixar que abusem dele, e o ceder ao conselho da mulher, e verem-no como um mole. A boca seca-lhe, o coração salta-lhe que nem um cavalo. Vai à infusa e bebe um bom gole de água fresca. Aos poucos vai-se acalmando. Contrariado, decide ficar quieto. Mas já o apanho da azeitona não o consegue entreter. 
     — Tens razão, mulher. Mas já não consigo ficar aqui. Vou albardar o burro, carregamos a azeitona e vamos embora. Prometo que não faço nada para os impedir.
     A Catarina é cautelosa. Sabe que é arriscado aproximarem-se de casa enquanto os homens do grémio não se tiverem ido embora. O seu homem tem muito génio, qualquer pequena chispa pode ser fatal. Consegue ir entretendo-o, mas muito a custo. Vai buscar conversas de tempos felizes, ele vai abrandando. Chega-se a ele, tenta-o. Ele percebe bem a manobra, mas deixa-se ir. Primeiro muito teimoso, mas a pouco e pouco cedendo.

     Enquanto isso, a Tia Jacinta arruma as três sacas na casa de despejo. Vai esconder o carro de mão. Limpa vestígios do carrego dos sacos. Vai ao palheiro, onde o trigo está, e junta palha e feno em cima dos sacos. Tem cuidado para não deixar nada que faça parecer que lá andou a mexer. Por fim, encosta a porta, meio entreaberta, de maneira a fazer escuro lá dentro e ao mesmo tempo não parecer que tem lá tanto valor. 
     Deixa a gata cheirar bem à volta dos sacos, para ela se certificar de que não há ratos. Esta gata pode andar por onde andar que assim que se muda um saco de um lado para o outro, ela aparece.
     Quando a gata se aquieta e vai outra vez para o mato, ela mete-se em casa e espreita por detrás do postigo.
     — Manel, sabes o que tenho estado a pensar? 
     — Sei lá! Que ainda estou aqui para as curvas? — e ri.
     — Isso já eu sabia, Manel. — e também se ri. — Tenho estado a pensar que a tua mãe é bem capaz de se ter desenrascado melhor do que nós imaginamos. Ela é muito esperta, Manel. Eu tenho a impressão de que já a conheço melhor que tu.
     O Manuel do Barranco Fundo olha para a mulher com o carinho de que é capaz e só consegue dizer.
     — Deus te oiça.

     Quando os homens chegaram e bradaram:
     — Ó da casa! Está aí alguém?
     Tiveram que repetir e bater à porta com força.
     Ela demorou um bocado a sair lá de dentro, fingindo não perceber o que se passava. Olhou-os de alto a baixo. Olhou para as mulas e, subitamente, soltou um grito lancinante e correu para a porta da casa de despejo. 
     Agarrou-se à porta com tanta força que foi difícil aos dois latagões apartarem-na. Tiveram que a obrigar a ir buscar a chave para abrir a porta. Fez-se de surda, tiveram dificuldade a fazerem-se entender. Recorreram a fazer gestos. Com gestos ela ia entendendo, não exagerou no fazer-se difícil. Surda, sim, parva, não. 
     Quando viram os três sacos, ficaram desiludidos. O mais novo queria levar tudo. Mas o mais velho disse que isso não se fazia, pelo menos deixavam um saco para os pobres.
     — Obrigado, tiazinha! Os soldados mandam agradecer por estas sobras da nação. — ainda disse o mais velho à despedida.
     — Vão para a puta que os pariu! — mastigou a Tia Jacinta assim que eles se afastaram, ao mesmo tempo que escarrava no chão.
     
Zé Varela
Setembro de 2024

com pés e cabeça


A que me tomem por poeta
sempre me fui esquivando
preconceito? 
talvez seja
ou também pode ser peta
uma desculpa, é o mais certo
pois que nunca estive perto
de escrever o que se veja
nada, nadinha de jeito.

Dizem que os poetas fingem
também ouvia falar 
que os que fazem a poesia
têm a cabeça no ar
até há quem diga na lua
e eu com medo das alturas
sempre sofri de vertigens 
e muitas mais tretas ouvia
mesmo aqui na minha rua
como que são todos loucos. 

Ter os pés na terra queria
como agarras bem seguras
quando o bichinho chegou
não me deixou escapar
essa é que é essa
e foi penetrando 
aos poucos.

Com a cabeça no ar
e os pés assentes no chão
também veio a minha vez
para ter pés e cabeça
agora vou evitar
e sempre, sempre dizer não
a pôr-me em bicos de pés.

saudades de amores

 
Dos amores
com princípio, meio
e fim
dos que toda a gente
tem
ficam as saudades doces
daquilo que correu bem.

Daquilo que mal correu
daquela parte ruim
ficam as amargas dores
de momentos para esquecer
abandonos e ciúmes
birras, rixas, azedumes
da vida que se perdeu
com secos amores
sem sumo.

Porém 
o que mais nos
rói
é o sempre doce amargor
das saudades
a maior
daquele amor que não foi.



a perca enjeitada


Não tenho ciúme
dessa prima fina
em berço de ouro
embalada 
de doutores afilhada
de seu nome "Perda"
o seu "ê", frouxo e rombo
o seu "dê", de dó e débil.

O meu nome é gume 
afiado
a gosto do povo 
é a minha voz clara
sem vacilar 
o meu "cê", de cavalo enérgico
o meu "é", de fel e mel
mas do seu nome eu não zombo
mesmo soando a servil.

O meu espaço tem roubado
mas não é isso que mais custa
aquilo por que ando triste
é ver os dedos em riste
de todos os com vergonha
dos falares do seu povo.

Renegar pai e mãe 
suas maneiras de falar 
não é de gente decente
aquilo que causa horror
é vê-los jurar
que com o meu nome
não conhecem mais 
que um simples peixe
grande perca de pudor.

Zé Varela
Setembro de 2024

fofinhos


O mundo dos fofinhos
é um mundo sem imundos 
onde tudo está certinho
um mundo feito sem pragas
sem maleitas
e sem chagas
e tudo em nome da paz.

Para os fofinhos 
que haja fome, que haja dor
é igual, tanto faz
o que lhes interessa é a cor 
daqueles céus azulinhos.

Fogem da realidade 
como o diabo da cruz
quando alguém diz a verdade
é aqui d'El Rei, ai Jesus.

Têm pena dos pobrezinhos
mas nada há a fazer
é o seu destino, coitadinhos
sempre assim foi, sempre há-de ser
garantem os fofinhos.

A verdade nua e crua
é assunto dos grosseiros
os fofinhos 
não põem os pés na rua
por não suportarem os cheiros
e não sujarem os sapatinhos.

Se o tema é fracturante
se não estão todos de acordo
os fofinhos até tremem
que uma briga se levante. 

De tão limpinhos que são 
às vezes chego a pensar
que os fofinhos estão
feitos sem buraquinhos 
pra não fazerem merdinhas
e não expelirem peidinhos.


Zé Varela 
Setembro de 2024

o meu umbigo


O umbigo 
o que é um umbigo?
isso depende
do ponto de vista
uma anomalia 
dirá o purista
uma cicatriz 
diz o anatomista 
o centro do mundo
cogita 
o egocentrista
um depósito de cotão 
pensa a maioria. 

Mas nada disso é comigo
o meu é especial 
não é uma cicatriz
por aí não se fica
era pouco pra mim 
é duas
ganhei uma ao nascer
a outra ao renascer
por ali saiu
o mal 
que levaria
ao meu fim
foi por um triz. 


fonte dos louzeiros


Noite marafada
de um de muitos 
Fevereiros
que medonha derrocada
ali na Fonte dos Louzeiros.

Derradeira 
madrugada
desse mês de tão má fama
sem pressentir nadinha 
estava eu na minha cama.

Dormindo
o sono dos justos
sacudido
sacolejado 
meio surdo da zoeira
acordo assarapantado.

Bem longe
de adivinhar
mas bem perto
tudo estava tão pior
gritos, choros e assombro
choros, gritos e pavor.

De pé
quase nada 
tudo levou um tombo 
só a teimosa fonte
na véspera tão vazia
subiu tanto
tanto, tanto
que pelos campos 
escorria.

excursão ao alentejo


Diga lá, Ti Maria
o que mais lhe agradou

Gostei muito de ver
os campos ceifados
fez-me reviver
os tempos passados
quando a gente ceifava
de sol a sol
todos os dias
a comer sopas frias
as costas num oito
o que nos valia
era o baile à noite
e os beijos roubados
outras idades
tempo que passou
apesar da penúria 
sentimos saudades.

E você, Ti Alfredo?

Estava farto de ouvir
segredar aos ouvidos
que tinham comido
vacas, porcos, carneiros
nas terras roubadas
aos donos legítimos
por Deus doadas
como diz o prior
conversa dos casqueiros
da confederação
estava com medo
de que fosse verdade
e fiquei com vontade
de lá ir
ver com os meus olhos
que eram mentiras 
só mentiras.

E você, Ti Henriqueta

Eu sou alentejana
vim do Alentejo
já crescidinha
lembro-me bem
de fugir à frente
da guarda
só por ir apanhar
um tanganho
uma boleta
a esse tempo
eles querem voltar
só não gostei
porque à légua os cheiro
daquele da cooperativa
onde dormimos
com ares de manajeiro
queria estar enganada
mas assim
vai acabar mal.

E tu, Jaiminho?

Eu, cá pra mim
só não gostei 
daquele grupinho
sempre à parte
sempre juntinho
dizia um 
com ar
de professor
isto não tem jeito
andar, andar
dois dias a andar
devíamos parar
num sítio
pra ligar às massas
sujar as mãos
na terra.

Eles não entendem, Jaiminho
nem nunca entenderão
que a força desta excursão
é mesmo esta gente 
ver
com os seus olhinhos
as mentiras
dos casqueiros 
da confederação
verem as sementeiras
verem o gado
e acima de tudo
verem que é 
por todo o lado.

E você, Ti Carrasqueiro?

Eu cá do que mais gostei
foi da cara dos casqueiros
quando lhes semeámos 
os cartões 
da confederação
que eles
nos tinham passado
rasgadinhos
em pedacinhos
como se fossem papéis 
de carnaval
em cima dos cornos
quando vinham 
lá do plenário
de defender 
o latifundiário
de Braga ou de Rio Maior 
sei lá 
alguns nem saíram
nem se atreveram
na estação
mas a gente não
lhes fizemos mal
foi só medo
medo é favor
tiveram pavor
fascistas!
aldrabões!



a angústia da caixa de correio


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 


Piii piii piii piii piii piii piii piii piii piii pii "Chegou à caixa de correio de 941 ... ..." 





celestina


Moça airosa
culta, inteligente
e fina
o seu nome lembra o céu
é Celestina
uma autêntica donzela
não há rosto 
como o seu
os olhos, o cabelo
a postura
elegante, requintada 
e bela
é um gosto
vê-la
voz angelical
clara e harmoniosa.

Tudo nela 
faz antever felicidade 
futura
é verdade
não toca piano
nem fala francês
sinais 
dos tempos
nada de mal
orgulho dos pais.

Mudam os ventos
e chega a idade
dos calores
desejos de amores
o João
da oficina
arrasta-lhe a asa
recebe "não"
atrás de "não" 
as mãos sujas
o cheiro a gasolina
as unhas negras
não jogam a favor 
insiste o João 
resiste a Tina
mas a vida tem regras
que desconhecem a razão
é o amor.

Toda a família 
da Celestina 
e mais o povo
em alvoroço
só o mano 
mais novo
não diz que não
ao sujo moço
grandes desgostos
oposição!
vence o amor
por fim
e no altar
se dão o sim.

Passado um ano
foi-se a paixão 
perdeu a graça 
festeja a família 
aplaude o povo
ganhou juízo 
dizem alguns
ponto assente. 

Um novo amor
soam zunzuns
pior não será 
auguram todos
e na noite
de São João 
grande recepção 
na praça 
o casalinho lá está 
é este, meu pai
o meu grande amor
moiral das vacas
dum lavrador
Manuel da Luz Vicente 
por alcunha "O Lavajão".


lua nua

 
De azul me querem pintar
azul és tu, minha mãe
vejo-te assim
eu sou prateada
e nua
nuazinha
lua doirada
aos olhos de alguém.

Querem-me aumentar
fazer crescer!
a mim?!
só se for
com as pedras celestes
e os pós do espaço
que caindo vão
e a cada passo
me assustam
menos estes
que aquelas.

Tolos, é o que são!

O que eles não vêem 
porque se encandeiam
com as luzes da cidade
é o meu luar
que só avistam
das janelas
e de noite
dava pra verem
onde punham os pés.

Eu estou aqui
para ajudar
a regular
o que nasce, cresce 
e morre 
quando chega a idade.
Sem mim
que regulo as marés
e até os humores
que seria da vida
dos amores
que existem em ti?








humildade


     Foi tudo tão rápido que não me apercebi de mais que um pequeno som cavo de algo a bater na chapa do carro; logo de seguida, surgiu, primeiro a mão a tentar segurar-se para se levantar e depois uma cara exibindo surpresa, espanto, indignação: «O senhor não vê o que está a fazer?!»
     Instintivamente, recuei um pouco o carro.
     Ele inclinou-se para baixo como para apanhar qualquer coisa do chão e quando me voltou a encarar já não tinha o ar indignado de há pouco: «Não se enerve. Parece que não foi nada. Claro que o senhor não fez de propósito.» O ar do homem já era mais cordial.  
     «Veja lá se há algum problema.» 
     E ele: «Assim à primeira vista, só me está a doer um bocadinho o joelho. Mas isto passa.»
     «Veja lá, precisa de ir ao hospital? Eu tenho seguro.» Insisti eu.
     «Não se preocupe.» E o homem já sorria cordialmente. Um rapaz novo, talvez duns quarenta anos ou mesmo menos. Bem vestido. Mas apalpava o joelho. 
     Eu insistia com ele para ir ao hospital.
     Ele dizia que não era nada, mas notava-se que estava com dores. Tentava disfarçar uns esgares.
     Perante a minha insistência, atreveu-se a perguntar-me se o podia levar à casa da irmã, que morava perto. Que já não se estava a sentir em condições de conduzir, mas só por causa do joelho. «Isto foi um joelho que eu tive que operar, mas há muito tempo. Coisas da bola.»  E sorriu, um sorriso aberto.
     Voltei a insistir. «Veja lá se não é melhor participar ao seguro?»
     Que não, que isso só ia dar problemas. Às tantas ainda me punham a fazer psicotécnicos e mesmo a ele ainda acabavam por demorar a pagar alguma coisa que fosse necessária. Ele  tinha um bom seguro de saúde que cobria todas estas coisas. Que não me preocupasse. Agradecia-me era que o levasse, então, se não me importasse, até à casa da irmã.
     Lá me explicou onde morava a irmã. 
     «Eu não tenho cá mais ninguém, e nem vinha a planear passar pela casa dela. Não é por nada, eu e o meu cunhado não nos damos muito bem. Mas com a minha irmã dou-me às mil maravilhas. Eu só estou aqui de passagem, em serviço. Como vê, pelo meu sotaque, não sou de cá.» De facto, tinha sotaque do Norte, não sei precisar donde, e também não perguntei.
     Lá me convenceu a levá-lo à casa da irmã. Era perto, menos de um quilómetro. 
     A casa era num bairro novo, calmo, devia ser caro. Não sei se conheces, fica onde era antigamente uma fábrica de conservas, ainda lá tem uma chaminé. Pelo caminho fomos conversando. Perguntou-me o que eu fazia. Mostrou espanto quando lhe disse que estava reformado de vendedor de ferragens. Que me achava ainda na flor da idade, com muito bom aspecto. Que ele era delegado de informação médica. Sempre tínhamos muito em comum. E sorriu, como a explicar porque tinha o tal bom seguro de saúde, ele conhecia bem o meio. 
     Mostrou-se um bom conversador. Foi-me indicando o caminho, mas confiou em mim quando lhe disse que pelos dados sabia onde era. 
     Quando estávamos a chegar, tomou as rédeas da navegação. Mas não estava muito seguro. O que não me espantou.
     «Já me enganei, para ir para a casa dela não se passa aqui junto a este terminal de multibanco, a não ser que seja novo aqui.»
     Era, de facto, uma caixa nova, confirmei eu.
     «Ah, então é mesmo aí ao virar da esquina.»
     Sou capaz de jurar que vi o homem empalidecer, à medida que olhava para o telemóvel e o tentava ligar para gravar o meu número. Perguntei-lhe o que se passava e ele mostrou-me o vidro todo partido e ficou calado, sem acção. Levou um bom bocado para conseguir falar. «Deve ter sido quando fez marcha-atrás. E eu apanhei-o e guardei e nem reparei... e tenho aqui o meu trabalho todo, contactos, e-mails... também os tenho lá em casa...» Pareceu tentar tranquilizar-me. «Mas eu vivo em Aveiro! E nem tenho ninguém em casa, acabei de me divorciar.»
     Tentei outra vez convencê-lo a participarmos ao seguro.
     «Para quê?! Quando eles me viessem a pagar alguma coisa já eu não precisava.»
     O homem estava destroçado, só olhava para o telemóvel e abanava a cabeça.
     Vi-o tão sem acção que tive pena dele, muita pena. E o que posso eu fazer por si, perguntei-lhe.
     Olhou-me nos olhos com um olhar de profunda sinceridade: «Eu sei que o senhor não fez de propósito. Mas eu também não tive culpa. Custa-me muito o que lhe vou pedir, acredite que custa. Mas vou ter que lhe pedir a sua ajuda, que afinal não é mais que a assunção da sua responsabilidade.»
     Tive que concordar com o homem. Diga lá então.
     «Com o que vejo aqui isto não me vai custar menos de uns trezentos e setenta ou trezentos e oitenta euros a consertar. Isto é um iPhone. Consegue arranjar-me essa ajuda? Ficar-lhe-ei eternamente grato.»
     Dirigi-me à caixa multibanco e levantei duzentos euros. Nem sabia que se podia levantar mais. Mas ele explicou-me, entre queixas do joelho, que lhe doía cada vez mais, que em duas vezes conseguia levantar quatrocentos.
     Estendi-lhe os trezentos e oitenta euros, e ele disse-me: «Já agora, o que é que você adianta com esses vinte?»

     — E tu deste-lhos?
     — Dei, meu amigo. Estava cego. Ainda saí de lá com pena do homem. Só no dia seguinte é que comecei a somar dois mais dois. A primeira coisa que me veio à cabeça foi o ar guloso com que ele não conseguiu deixar de olhar para os vinte euros que iam ficar na minha mão. Depois foi ele nem sequer ter ficado com o meu número nem dado o dele. Depois foi ele não ter comunicado com a irmã a ver se ela estaria em casa. Depois foi ele fugir sempre à participação ao seguro.
     — Só isso, Henrique? Desde o início do teu relato que eu tinha reparado que só deste por uma leve pancada na chapa do carro. Então, atropelas o homem, e o carro nem estremece?!
     — Tens razão, António. E agora que falas, veio-me também à ideia que o pilar do parque logo a seguir ao meu carro, era o último. Não fazia sentido ele vir dali. 
     — E agora estás capaz de comê-lo, se o encontrares. Não estás?
     — Não, ao princípio, sim. Estava zangado com ele e ainda estava mais zangado comigo próprio. Como é que eu me tinha deixado assim embarretar?! Mas agora estou em paz. Isto foi há três meses. Ainda não tinha dito a ninguém, nem aos meus filhos. Mas agora, depois de falar contigo vou dizer. É verdade que se foi mais de metade do dinheiro do IRS. Mas eu fiquei a ganhar mais que ele.  
     — Mau! Agora é que me partiste todo. O gajo mama-te quatrocentos euros e tu é que ficaste a ganhar?! Essa agora! És capaz de me explicar isso?
     — Explico, mas acho que não vais entender. Ele ganhou quatrocentos euros; eu recuperei a minha humildade, que tinha perdido há muitos anos. E agora que estou aqui a falar contigo, já não me restam dúvidas. Se fosse ao contrário também eu conseguia ver tudo clarinho como a água.
     — Tu estás com febre, Henrique? Sempre te conheci como uma pessoa modesta. Inteligente e modesta. Até fiquei espantado como caíste nessa. E já te conheço há mais de trinta anos...
     — Modéstia é algo que os outros vêem. Humildade só o próprio sente. 




divórcio com final feliz

 
     O que mais me chocou foi a inesperada reacção dela. Por mais voltas que dê à cabeça não vejo motivo para semelhante crispação. É que ele só disse: «Porque é que isto não me espanta?» 
     — Mana, às vezes uma gota de água faz transbordar o copo. 
     Lá vem o meu irmão com lugares-comuns. Como se não houvesse motivo para o comentário dele. Íamos a sair para a praia, eram quase onze horas. O único café do bairro, para tomarmos o pequeno almoço, fechado. 

     Ela não entende que o nosso pai nunca perde uma oportunidade para depreciar os algarvios.
     — Ó mano, poupa-me. Eles parece que estão ricos. Parece que não precisam de trabalhar. Até parece que não precisam do nosso dinheiro.
     É isto que ela não entende, ouvindo-a falar, é tal e qual o pai. Para eles os algarvios deviam estar dispostos a tudo, como se existissem para nos servir. Eu também não sou algarvio, mas entendo bem como à mãe estas atitudes e comentários mordazes doem. 

     Nunca ouvi ela protestar por nada, fui apanhada de surpresa. Será por o pai ser professor de português e de vez em quando lhe chamar a atenção quando ela usa aquelas palavras incorrectas, como cangrejo, como griséus, como “békm”, ou lá o que é que ela diz às vezes. Pensando bem, ela fica muitas vezes calada, mas depois volta a dizer o mesmo, não aprende.
     — E porque é que havia de aprender, Isabel? E não é “békm”, é “bem como”, é só uma questão de sotaque e também usam a expressão de maneira especial. E olha que eu gosto muito da maneira como os avós falam. 
     Ele não consegue entender que o português é só um, como é que as pessoas se iam entender se cada um desatasse a usar os disparates que os antigos do campo e do mar diziam?  É isso que o pai diz. Mas ele está armado em menino da mamã. 
     Ainda o ano passado ia com o pai ali no Alvor e ouvimos um pescador a dizer para outro, com ar de poucos amigos: “Tibopi!” Perguntei ao pai se tinha entendido e ele ficou a olhar para mim e a abanar a cabeça: «Como queres que eu saiba, essas coisas só se perguntares à tua mãe ou aos teus avós, eu sou só professor de português.» 

     Se eu lhe dissesse que ela está armada em menina do papá ela não ia gostar. Mas está mesmo. Se ela se tivesse dado ao trabalho de explicar a entoação da frase até eu lhe teria dito que o que o homem disse é: «Vai-te embora, pilho!» E o que ele disse foi “Tibó pi” e prolongou este pi de tal maneira que toda a gente aqui entende. 
     E não aprende a dizer “em Alvor”. Não respeitam as maneiras de falar dos da terra. Um dia destes começo a dizer lá em casa “na Coimbra” e vamos vê-los a não gostarem.
     — Qualquer dia, Jorge Miguel, oiço-te a dar explicações de português ao pai. Devia ser para rir.
     Não há nada a fazer. Eu também não estava à espera daquela reacção da mãe. Mas tenho vindo a pensar muito no assunto e compreendo-a. Ela nunca se abriu comigo, mas compreendo. Ela estar farta já deve vir de longe, mas o facto de a Isabel estar a fazer os dezoito anos não deve ser alheio a esta tomada de decisão.

     Quem é que o meu irmão se acha para estar sempre a olhar-me como se eu fosse uma criança. Ele só tem mais cinco anos, três meses e dois dias que eu.
     — Pelo contrário, eu acho que já tens idade, Isabel Maria, para teres responsabilidade. Fazes para a semana dezoito anos, serás de maior idade. E deve ser por isso que a mãe ainda não lhe tinha saltado a tampa. Agora achou que era a altura certa. Vai deixar de ter filhos de menor idade.
     Não demora muito está a tornar-me as culpas.
     Não consigo entender como é que se estraga uma família por mesquinhices, orgulhos. 
     — Mana, aí é que te enganas. Não são mesquinhices. Mesquinhices são ninharias, coisas pequenas. Aqui são duas maneiras de encarar o mundo, e sobretudo do respeito entre as pessoas. O pai sempre se colocou no patamar da superioridade. Quando digo sempre, é desde que me lembro. Sempre desdenhou dos algarvios, não sei porque casou com ela. A mãe sempre engoliu em seco, e creio que desde há muito tempo o fez por nós. Pelos dois. Agora resolveu bater com a porta. Não sou eu que a vou condenar. E há outro pormenor que não estamos a ver, não digo que és tu que não estás a ver, digo que não estamos. O meu coração também ainda não aceita, mas eu e tu somos família, somos irmãos. Nós e os nossos pais somos família, mas eles os dois não são. Não são nada um ao outro.
     Esta agora! Acho que o meu irmão desta vez se excedeu. Como é que ele pode dizer que os nossos pais não são familiares entre si.

     Não queria ser tão duro com ela, ela é a minha mana. Se calhar nunca lhe soube fazer senti-lo, mas é. Tinha que lhe dizer isto, é o que penso e acredito que ela vai compreender, mas tarde ou mais cedo. 
     — Sempre a mesma coisa, tu é que tens a verdade e eu um dia irei compreender. Vai-te lixar, Jorge Miguel Marreiros Falcão. Nunca mais te falo.

     A vida é complicada, e eu até optei por ficar em Coimbra, é aqui que estou a iniciar a minha vida. Gostava de estar com a minha mãe neste período, calculo que para ela não é fácil. Recomeçar a vida no Algarve, donde saiu há tanto tempo, não deve ser fácil. E, tenho que reconhecer, sinto muito a falta também da minha maninha, que, vá-se lá entender, optou por ir com ela.
     — Sossega, maninho, já te compreendi. Não to disse na altura, estava muito zangada contigo, mas já te entendi.

febre do ouro

 
Nações 
em demanda
pelo ouro
nada mais conta
porque afinal
quem ganha é que manda.

Paixões 
incendiadas
não importa o trabalho 
não importa o suor 
tudo isso são nadas
queremos o ouro. 

Multidões 
por todo o mundo 
menos na Rússia 
que fica de fora
por ser do mal.

Medalhas 
muitas medalhas
bronze, prata
mas sobretudo ouro
ai de ti se falhas.

Adversário 
não há adversário
só inimigo
não há respeito 
tens que ganhar
de qualquer jeito.

O ouro
queremos o ouro
se não ganhas
não venhas com choro
mereces castigo. 

Zé Varela 

a cana


Aquele tecto 
do teu quarto 
donde escutavas a chuva
e o vento na telha 
era eu
na casa velha. 

Aquele moinho
que assobiava na horta 
era eu
mesmo já morta.

Aquele canudo
com as aguidas
para armar
aos passarinhos
era eu
ó meu!

Aquela espingarda 
que atirava
caroços de azeitona 
era eu
ora toma!

Aquela vara com um pandulho
com que pescavas
as irós
era eu
e com orgulho.

Aquele cesto 
em que levavas 
o almoço 
era eu
ingrato moço!

Aquele brinquedo 
a que chamavas carreta
com uma roda de cortiça
era eu, chiça!

Aquela vara
com que armavas os griséus 
já não te lembras
era eu
brada aos céus!

Aqueles canudos
que punhas nos dedos 
ao ceifares
era eu
pra não te cortares.

Aquela roca
pra trazer os figos
lá das alturas
era eu
vidas duras.

Tomaram conta de ti
o plástico, o betão 
e a ingratidão 
e agora até me chamas feia 
a mim, que sempre te protegi
as terras
da cheia.

E já nem sabes quem sou 
sou a cana, 
meu sacana!



dias grandes?


Dias de inverno
não dão para nada 
inda mal amanhece
já é noite cerrada
depressa esfria
e puxa um copinho 
e só apetece 
ficar no quentinho 
de cabeça vazia.

Dias de verão 
são grandes
há quem diga
mas não têm serão 
e com o calor
não se adormece
tudo é devagar
até o pensar
à tarde é a folga
vem o suor 
e mais uma vez
tudo se adia.

Dias grandes?
já não há
como dantes.


órfãos de muitos


Quando já não há 

a quem perguntar

panal ou tendal? 

ou seria igual?


Aquela casa 

onde nasci

e veio abaixo em Agosto

terá sido da rega?

tanta água 

que da barragem vinha

e dava gosto

não a sabiam usar

regavam à bruta

era arrendada?

emprestada?

não consigo saber.


Aquela barraca da eira

onde morámos

grande luta

feita de restos

de tábuas velhas

quantos buracos tinha?


E aquela prima 

que nem eram parentes 

mas tu sabias

e pedias segredo

a minha vizinha

que também sabia

disso estou certo

mas nada dizia

e não era por medo

há coisas que nada 

se ganha em saber

em vão te apodavam

de língua de trapo 

eram tão injustos!

Também já não estás

a fazes-me falta

com tantas perguntas

que te fazia.


Órfãos

vamos ficando

órfãos de pais

órfãos de tios

órfãos de primos

órfãos de muitos. 


Quando já não há 

a quem perguntar.