Foi tudo tão rápido que não me apercebi de mais que um pequeno som cavo de algo a bater na chapa do carro; logo de seguida, surgiu, primeiro a mão a tentar segurar-se para se levantar e depois uma cara exibindo surpresa, espanto, indignação: «O senhor não vê o que está a fazer?!»
Instintivamente, recuei um pouco o carro.
Ele inclinou-se para baixo como para apanhar qualquer coisa do chão e quando me voltou a encarar já não tinha o ar indignado de há pouco: «Não se enerve. Parece que não foi nada. Claro que o senhor não fez de propósito.» O ar do homem já era mais cordial.
«Veja lá se há algum problema.»
E ele: «Assim à primeira vista, só me está a doer um bocadinho o joelho. Mas isto passa.»
«Veja lá, precisa de ir ao hospital? Eu tenho seguro.» Insisti eu.
«Não se preocupe.» E o homem já sorria cordialmente. Um rapaz novo, talvez duns quarenta anos ou mesmo menos. Bem vestido. Mas apalpava o joelho.
Eu insistia com ele para ir ao hospital.
Ele dizia que não era nada, mas notava-se que estava com dores. Tentava disfarçar uns esgares.
Perante a minha insistência, atreveu-se a perguntar-me se o podia levar à casa da irmã, que morava perto. Que já não se estava a sentir em condições de conduzir, mas só por causa do joelho. «Isto foi um joelho que eu tive que operar, mas há muito tempo. Coisas da bola.» E sorriu, um sorriso aberto.
Voltei a insistir. «Veja lá se não é melhor participar ao seguro?»
Que não, que isso só ia dar problemas. Às tantas ainda me punham a fazer psicotécnicos e mesmo a ele ainda acabavam por demorar a pagar alguma coisa que fosse necessária. Ele tinha um bom seguro de saúde que cobria todas estas coisas. Que não me preocupasse. Agradecia-me era que o levasse, então, se não me importasse, até à casa da irmã.
Lá me explicou onde morava a irmã.
«Eu não tenho cá mais ninguém, e nem vinha a planear passar pela casa dela. Não é por nada, eu e o meu cunhado não nos damos muito bem. Mas com a minha irmã dou-me às mil maravilhas. Eu só estou aqui de passagem, em serviço. Como vê, pelo meu sotaque, não sou de cá.» De facto, tinha sotaque do Norte, não sei precisar donde, e também não perguntei.
Lá me convenceu a levá-lo à casa da irmã. Era perto, menos de um quilómetro.
A casa era num bairro novo, calmo, devia ser caro. Não sei se conheces, fica onde era antigamente uma fábrica de conservas, ainda lá tem uma chaminé. Pelo caminho fomos conversando. Perguntou-me o que eu fazia. Mostrou espanto quando lhe disse que estava reformado de vendedor de ferragens. Que me achava ainda na flor da idade, com muito bom aspecto. Que ele era delegado de informação médica. Sempre tínhamos muito em comum. E sorriu, como a explicar porque tinha o tal bom seguro de saúde, ele conhecia bem o meio.
Mostrou-se um bom conversador. Foi-me indicando o caminho, mas confiou em mim quando lhe disse que pelos dados sabia onde era.
Quando estávamos a chegar, tomou as rédeas da navegação. Mas não estava muito seguro. O que não me espantou.
«Já me enganei, para ir para a casa dela não se passa aqui junto a este terminal de multibanco, a não ser que seja novo aqui.»
Era, de facto, uma caixa nova, confirmei eu.
«Ah, então é mesmo aí ao virar da esquina.»
Sou capaz de jurar que vi o homem empalidecer, à medida que olhava para o telemóvel e o tentava ligar para gravar o meu número. Perguntei-lhe o que se passava e ele mostrou-me o vidro todo partido e ficou calado, sem acção. Levou um bom bocado para conseguir falar. «Deve ter sido quando fez marcha-atrás. E eu apanhei-o e guardei e nem reparei... e tenho aqui o meu trabalho todo, contactos, e-mails... também os tenho lá em casa...» Pareceu tentar tranquilizar-me. «Mas eu vivo em Aveiro! E nem tenho ninguém em casa, acabei de me divorciar.»
Tentei outra vez convencê-lo a participarmos ao seguro.
«Para quê?! Quando eles me viessem a pagar alguma coisa já eu não precisava.»
O homem estava destroçado, só olhava para o telemóvel e abanava a cabeça.
Vi-o tão sem acção que tive pena dele, muita pena. E o que posso eu fazer por si, perguntei-lhe.
Olhou-me nos olhos com um olhar de profunda sinceridade: «Eu sei que o senhor não fez de propósito. Mas eu também não tive culpa. Custa-me muito o que lhe vou pedir, acredite que custa. Mas vou ter que lhe pedir a sua ajuda, que afinal não é mais que a assunção da sua responsabilidade.»
Tive que concordar com o homem. Diga lá então.
«Com o que vejo aqui isto não me vai custar menos de uns trezentos e setenta ou trezentos e oitenta euros a consertar. Isto é um iPhone. Consegue arranjar-me essa ajuda? Ficar-lhe-ei eternamente grato.»
Dirigi-me à caixa multibanco e levantei duzentos euros. Nem sabia que se podia levantar mais. Mas ele explicou-me, entre queixas do joelho, que lhe doía cada vez mais, que em duas vezes conseguia levantar quatrocentos.
Estendi-lhe os trezentos e oitenta euros, e ele disse-me: «Já agora, o que é que você adianta com esses vinte?»
— E tu deste-lhos?
— Dei, meu amigo. Estava cego. Ainda saí de lá com pena do homem. Só no dia seguinte é que comecei a somar dois mais dois. A primeira coisa que me veio à cabeça foi o ar guloso com que ele não conseguiu deixar de olhar para os vinte euros que iam ficar na minha mão. Depois foi ele nem sequer ter ficado com o meu número nem dado o dele. Depois foi ele não ter comunicado com a irmã a ver se ela estaria em casa. Depois foi ele fugir sempre à participação ao seguro.
— Só isso, Henrique? Desde o início do teu relato que eu tinha reparado que só deste por uma leve pancada na chapa do carro. Então, atropelas o homem, e o carro nem estremece?!
— Tens razão, António. E agora que falas, veio-me também à ideia que o pilar do parque logo a seguir ao meu carro, era o último. Não fazia sentido ele vir dali.
— E agora estás capaz de comê-lo, se o encontrares. Não estás?
— Não, ao princípio, sim. Estava zangado com ele e ainda estava mais zangado comigo próprio. Como é que eu me tinha deixado assim embarretar?! Mas agora estou em paz. Isto foi há três meses. Ainda não tinha dito a ninguém, nem aos meus filhos. Mas agora, depois de falar contigo vou dizer. É verdade que se foi mais de metade do dinheiro do IRS. Mas eu fiquei a ganhar mais que ele.
— Mau! Agora é que me partiste todo. O gajo mama-te quatrocentos euros e tu é que ficaste a ganhar?! Essa agora! És capaz de me explicar isso?
— Explico, mas acho que não vais entender. Ele ganhou quatrocentos euros; eu recuperei a minha humildade, que tinha perdido há muitos anos. E agora que estou aqui a falar contigo, já não me restam dúvidas. Se fosse ao contrário também eu conseguia ver tudo clarinho como a água.
— Tu estás com febre, Henrique? Sempre te conheci como uma pessoa modesta. Inteligente e modesta. Até fiquei espantado como caíste nessa. E já te conheço há mais de trinta anos...
— Modéstia é algo que os outros vêem. Humildade só o próprio sente.
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