aula do ginjeira

    — O senhor compre meia-folha de papel selado e anule a matrícula, homem! Nem eu chateio o senhor nem o senhor me chateia a mim.
    A malta, cá atrás, nas carteiras, continha o riso a custo. Só o Pereira tinha pouca vontade de rir. O quadro já quase cheio de letras e números, de traços e setas, de sinais de mais e de menos, uma confusão pegada.
    Nove no primeiro período, nove no segundo. Faltava-lhe onze para ir a exame. Se não fosse a matemática ainda poderia cortar. Mas a matemática ainda era maior dor de cabeça. E não podia cortar a duas.
    O exercício não correra bem: oito.
    Se fosse ao menos um dez, ainda podia ser que, bem esticado, rendesse o onze no fim do período. Mas oito!
    Tinha-se preparado bem para a chamada: duas noites quase sem dormir. Parecia-lhe que iria correr bem. Mas no quadro era diferente, os números e letras tão grandes, e facilmente se perdiam de vista. E ainda mais, tantos olhos postos nele e o Ginjeira a enervá-lo.
    O Ginjeira passeava na sala de cenho carregado. Ia à janela, fixava os olhos no infinito. Voltava ao meio da sala. Ia até à porta. Soltava sopros. Voltava à janela. Mandava uma escarreta lá para fora. Voltava ao meio da sala. E, de repente, disparou:
    — Escreva-me aí a fórmula do ácido sulfúrico!
    O Pereira quase deu um pulo. Pegou na esponja. Tentou escrever com ela. Pôs a esponja no tabuleiro. Pegou no giz. Coçou a cabeça. E por fim conseguiu escrever com excessiva perfeição: H2SO4.
    Agora todos sabiam o que se ia seguir. Era uma espécie de ritual. O Ginjeira terminava sempre com a fórmula do ácido sulfúrico os seus ataques de fúria com os alunos que eram chamados ao quadro.
    Mandou o Pereira apagar o quadro e ir-se sentar. Olhou mais uma vez pela janela com olhar ausente. E foi-se sentar à secretária a remexer na caderneta.
    Desde a licenciatura sempre fora professor do ensino secundário. Leccionava Física e Química aos cursos industriais desde 65, havia quatro anos.
    Antes, e durante mais de quinze anos fora professor de Geografia.
    Foi por essa época que, estando um dia a bronzear-se na praia de Armação de Pêra, a dado momento se levantou, e, com ar imponente, informou os acompanhantes:
    — Vou dar um mergulho no Mediterrâneo!
    E lá se foi direito ao mar.


 

enigma

     O grito foi tão pungente que duas vizinhas saíram das suas casas e entraram pela porta entreaberta.

    Ao médico do 112 não restou mais que declarar o óbito da Ernestina e cuidar do Júlio, que estava prestes a entrar em estado de choque. A PSP não encontrou quaisquer sinais de arrombamento nem da hipotética presença de mais ninguém.
    — Senhor Júlio, vai ter que nos acompanhar. E vamos ter que selar a casa e chamar a PJ para fazer a recolha de provas.
    O Júlio acompanhou-os aparvalhado, sem dizer palavra.
 
    «Mais um caso de violência doméstica» titulava o “Trombeta Matinal” no dia seguinte, em primeira página. «Mais um energúmeno que mata a mulher com uma facada no coração, para o que usou a faca da cozinha. Mais um que toda a vizinhança afiança ser um homem pacato, que nunca tinha arranjado problemas com ninguém. São os piores.» continua o articulista.
 
    A abrir os telejornais: «Segundo fontes fidedignas, a PJ não encontrou quaisquer indícios da presença de mais ninguém no apartamento. No entanto o doutor Ramires, advogado do suspeito, garantiu à nossa estação que o seu cliente se declara inocente. Instado a nos explicar o que se terá passado, o doutor Ramires garantiu que o seu cliente diz que está despedaçado, e estupefacto, sem saber o que dizer sobre o que terá acontecido.»
 
    — Assassino! Assassino! — a multidão grita à saída de Júlio Cortes do tribunal de Odemano onde esteve a ser interrogado o dia inteiro e recolhe à cadeia onde irá aguardar julgamento.
 
    — Viste que ele nem chorava?
    — Vi, vi. Vi logo que ali havia qualquer coisa.
    Eram as vizinhas.
 
    — Pai! Olhe-me nos olhos. Eu quero acreditar em si. Olhe-me nos olhos e diga-me que não foi o pai. Não sabemos o que se passou, o doutor Ramires diz que está a fazer os possíveis por deslindar o que se terá passado. Dizem que é um bom advogado, foi o que consegui arranjar. Também lhe trouxe algumas coisas que lhe vão fazer falta. Roupa interior. Trouxe-lhe um bocado de presunto. Um pão caseiro. Não me esqueci das suas amêndoas para a azia. Entreguei tudo ao guarda, ele depois lhe dará. Mas agora eu preciso que me olhe nos olhos e diga que está inocente. Não suporto viver com esta dúvida.
    Mas como poderia o Júlio olhar a filha nos olhos? A vergonha profunda. Não, não conseguia. Depois do que lhe fizeram.
 
    — Tens a certeza que é este?
    — É. Está aqui a foto no jornal. — e o Silvério mostrava o telemóvel contrabandeado para dentro da prisão pela mãe.
    O pior não foi a dor física. E já essa seria muita, foram alguns sete. O pior foi a vergonha. Já não se sentia homem. Nunca mais poderia enfrentar a filha.
 
    Três dias depois, o “Trombeta Matinal” titulava: «O assassino que matou a mulher com uma facada no coração encontrado morto na sua cela.»
 
    E passados mais dois dias: «Fontes idóneas garantiram-nos que o assassino se suicidou ingerindo uma grande quantidade de amêndoas amargas que usava desde há muitos anos para a azia. E a filha, na melhor das intenções, lhe levou.»
 
    Um ténue fio de sangue, quase imperceptível, espreitava ao canto da soleira da porta quando o Júlio bateu levemente e não obteve resposta. Não ouve por causa do barulho da televisão, pensou. Tinha o hábito antigo de bater levemente à porta mesmo tendo consigo a chave. Foi com o coração aos saltos que meteu a chave e abriu a porta, assim que os olhos deram no fio de sangue.
    Toda a gente sabe que os acidentes domésticos são grandes causadores de vítimas. Porém, nunca irão suspeitar de que dezassete minutos antes de o marido chegar, a Ernestina se desequilibrou ao tropeçar no cabo da vassoura, que tinha caído sem que ela desse por isso. E, ao tentar equilibrar-se, assentou a mão na tábua de cortar a carne, deixada, inadvertidamente, um pouco saída do balcão. Esta projectou a faca com que tinha estado a cortar a carne para o jantar. No esforço para se desviar da faca o tapete escorregou no chão molhado e caiu de bruços precisamente em cima da mesma faca, que tinha acabado de bater com o cabo no chão e ainda não tinha tombado. Esta perfurou-lhe o tórax com o resultado que já conhecemos.



o joão cuco

     Eu estava abrindo os buracos na parede com o broquim de manivela que era do meu sogro, para pregar os camarões onde havia de amarrar a rede, quando ele apareceu a esbracejar e aos gritos:
    — O que é que você me está fazendo à parede?
    Eu estava no meu terreno. Como é que eu havia de segurar a rede sem furar a parede? Mas ele vinha direito a mim com uma tal fúria que comecei a ficar com medo. Não parava de gritar:
    — Quem é que lhe deu autorização para me estar furando a parede?
    Ele é um homem bem encorpado, com talvez mais de um metro e oitenta. Eu tenho um metro e cinquenta e três, pelo menos é isso que diz no bilhete de identidade. Ao pé dele sou um pardalinho. Tive medo, quem é que não teria medo?
    Olhei à volta à procura de alguma coisa com que me defender e arranquei um dos paus de eucalipto que já tinha atanchado para segurar a rede. Quando ele me tentou agarrar dei-lhe com ele no lombo duas vezes.
    Aquele pedaço de terra por trás das antigas ramadas do gado é muito ruinzinho, aquilo só dá erva. Lembrei-me que podia aproveitá-lo para fazer um cercado para as galinhas. Quando as galinhas andam à solta, a comer pedras e bicharada, dão logo melhores ovos e carne. E assim aproveito aquela casa que tem a porta lá para trás, onde guardavam a folhada do milho e o feno quando tinham gado, e fica a servir de galinheiro. A minha Isaura, com a mania de contrariar, disse logo:
    — Achas bem feito pôr um cercado de galinhas mesmo arrumado à casa dos vizinhos, com tanto terreno que temos. Gostavas que te viessem pôr a estrumeira a cheirar mal à tua porta?
    Tive que lhe abrir bem os olhos para ela entender quem veste calças cá em casa. Nunca fui homem de bater na mulher. Só se for mesmo obrigado. Há homens, eu conheci um quando era pequeno, que todos os dias arriava na mulher. Não gosto disso. Contam-se pelos dedos das mãos as vezes que tive que dar uns carolos na minha. E não gostei nada, fiquei sempre mal disposto. Mas se um homem as deixa mandar nunca mais dá conta delas. E dizem que há mulheres que também gostam de levar, isso não sei.
    O jipe da guarda chegou ainda antes da ambulância. Não sei quem os chamou, ainda estou para saber. Dali ao posto público ainda são bem uns três quilómetros e não há telefone nenhum mais perto. Desconfio que foram os tiradores de cortiça que andavam no outro lado da ribeira, ouviram a gritaria das mulheres e foram de bicicleta. Mas não sei. Eu tenho a certeza de que só lhe dei com o sarrafo duas vezes, e foi no lombo.
    A minha Isaura, que apareceu não sei de onde, porque tenho a certeza de que ela tinha ficado em casa a fazer o almoço, e não dei por ela se ter aproximado, disse ao cabo da guarda, que eu ouvi com os meus ouvidos, que lhe dei com o pau pelo menos cinco vezes, e que a primeira foi na testa. A minha própria mulher! Estou cá com a pulga atrás da orelha, queira Deus que me engane, nem quero pensar numa coisa dessas, mas isto de dar as favorências ao vizinho Augusto não me cheira nada bem. Eles foram criados ao pé um do outro. Tenho que passar a andar de olhos bem abertos.
    Uma pessoa não pode deixar que o pisem. Nunca me esquece daquela história da barragem. O dinheiro que lá gastei, e depois ter que desmanchar aquilo tudo e ainda ser multado pelos hidráulicos. A barragem estava na minha terra. Vem ele com a conversa de que a barragem ia inundar o terreno dele, se aquilo era só mato. Tive que fazer a barragem cá muito mais abaixo, nem leva metade da água, nem o terreno é tão seguro, uma boa parte dela some-se pelo chão abaixo, e assim nem consigo regar aquele bocadinho à parte de cima de casa, que sempre dava jeito para ter ali a horta mesmo ao pé da cozinha. Só desperdícios. E ainda veio a Isaura com a conversa de que se eu tivesse falado com o vizinho Augusto antes de mandar fazer a barragem ele até não se tinha importado. Sempre a favor dele!
    Quando os meu sogros morreram, a pouco mais de dois meses um do outro, e viemos para aqui, vi que o barranco tinha feito aquela curva lá no “Corgo das Abelhas”, à estrema com o pinhal do doutor Leandro. Os barrancos são assim, às vezes mudam de lugar, e aquela vargem sempre leva bem um alqueire de favas, e que boa terra aquilo é para favas. A minha mulher diz que sempre conheceu aquilo assim, mas eu acho que ela nem ia para lá quando era moça, e para que quer o doutor Leandro uma vargem daquelas se para ele fica lá no fim do mundo, por trás do pinhal. Pois não sei quem lhe foi contar mas desconfio que foi o gajo da máquina que eu chamei para ir lá endireitar o barranco como devia ser. Nunca me esquece que me fizeram pagar o trabalho da máquina a desmanchar o que estava feito e ainda as despesas do tribunal. E o juiz ainda me disse lá na audiência que ficava assim porque eu não tinha antecedentes. Como se fosse pouco. Malditos juízes.
    Mas não são só os juízes, nem os da hidráulica, o estado é todo assim. Quando vieram os homens dos marcos, o primeiro que falou comigo ofendeu-me logo:
    — É o senhor que lhe chamam João Cuco? Desculpe lá, não sei se é nome se é anexim, mas como toda a gente por aí o chama assim, nós precisamos de saber de quem é que estão a falar.
    Deu-me cá uma rabiada.
    — O meu nome é João dos Santos Palhinha. Na minha terra conhecido por João Domingos, porque já o meu pai era conhecido por Manuel Domingos, mas isso não era o nome dele. Agora Cuco é que não, eles que vão para o raio que os parta com esse Cuco.
    E ele:
    — Não se zangue, senhor João, nós só queremos ter a certeza de a quem é que eles se referem quando dizem “João Cuco”, para não haver confusões.
    E ele a dar-lhe com o Cuco! Fiquei cá com uma arrelia ao homem que nunca mais o vi com bons olhos.
    Mais tarde, quando vieram fazer a reclamação, eu reclamei do que tinha a reclamar, não chegou a uma dúzia de reclamações, vocês sabem o que aquele moço do Joaquim do Vale, aquele Carlos, que nessa altura tinha começado a trabalhar com eles, um dia me disse:
    — Senhor João, você é um homem com azar. Veja lá que onde quer que você tem um bocadinho de terra lá tem um mau vizinho. É mesmo azar!
    Eu não conhecia o moço, trabalhei com o pai na fábrica da cortiça quando éramos moços e era uma jóia de homem, mas ao moço nunca mais lhe falei. Não lhes parece que ele estava querendo dizer que a culpa era minha?
    Agora tenho que estar aqui até terça-feira, que segunda é feriado e o tribunal está fechado. Só o trabalhador do campo é que tem que trabalhar todos os dias. Quem é que me paga estes três dias aqui preso. Corja! E o doutor Gomes ainda me vem dizer que se tenho o azar de o homem morrer, porque ele está muito mal, vou apanhar uns anitos. Como é que pode ser uma coisa destas se eu agi em legítima defesa. Queria ver se fosse com algum de vocês, verem vir um latagão daqueles a gritar e a esbracejar, parecia um toiro bravo. Um homem tem que se defender!


o quilómetro 25

    Quando rebentou a úlcera ao meu amigo Diamantino e teve que ser operado de emergência, eu só soube três dias depois. Claro que fui visitá-lo nesse mesmo dia.
 
    O Diamantino e eu fomos vizinhos e amigos de infância. Aquele arco que o avô lhe tinha dado, e que era do cubo da roda dum carro de besta, era o meu brinquedo preferido aí pelos meus dez, onze anos. Fiz um guiador com um ferro das obras e andava muito mais com ele do que o Diamantino.
 
    Quando eu nasci, os pais do Diamantino moravam pertinho dos meus, no outro lado da ribeira. Diziam eles a rir que se invejaram e arranjaram o Diamantino. Foi assim que ele nasceu um ano depois de mim. Depois foram morar para mais longe e só nos voltámos a reunir tinha eu nove anos.
    Por esses tempos, costumávamos ser nós que íamos para a estrada esperar os peixeiros que vinham de Odemano com as suas motorizadas carregadas de sardinhas, carapaus brancos e negrões, cavalas, besugos, fanecas, e uma ou outra novidade de tarde em tarde. Costumávamos esperar por volta do marco de quilómetro 25, umas vezes mais abaixo, outras mais acima, conforme a brincadeira nos levava. Eles, ao sair da ponte de São Cristóvão costumavam buzinar apertando aquelas pêras de borracha que usavam para o efeito, e nós vínhamos a correr para a estrada quando andávamos mais longe.
 
    Quando o visitei no hospital, para o que nos havia de dar, para rememorar episódios, hilariantes uns, dramáticos outros, que presenciámos, juntos ou individualmente por volta desse quilómetro 25. Dramáticos como o daquele senhor que ficou entalado debaixo do tractor do Armando Correia, com o óleo quente a escorrer por cima das pernas. Esse felizmente acabou por escapar. Já aquele rapaz da Alcaria, que o pai lhe tinha comprado uma Zündapp Perfecta, não teve tanta sorte. Atrapalhou-se na curva, com a estrada molhada de fresco fez pião, e foi colhido por trás por um carro, por acaso de um senhor que era seu vizinho lá na Alcaria. Depressa abandonámos os episódios dramáticos que nos faziam pele de galinha.
 
    — Carlos, lembras-te daquele carro que lhe saltou uma das rodas da frente na mesma curva do moço da Alcaria?
    Se me lembrava! Era um daqueles carros antigos, não me lembro da marca. Foi a roda direita que se soltou do carro, este guinou para a direita e assentou o cubo no chão A velocidade também não era muita, mas foi a suficiente para embalar a roda de tal maneira que passou rolando pela frente do carro, atravessou a estrada e galgou pela encosta abaixo. Andavam umas mulheres apanhando azeitonas perto do caminho que passa lá em baixo a uns trezentos metros da estrada. Eu e o Diamantino bem gritámos para elas se desviarem, mas o vento estava norte e elas não ouviam. Por sorte a roda passou entre elas sem tocar em nenhuma e foi tombar por falta de embalagem mesmo antes de chegar às piteiras que bardavam o caminho.
 
    — Diamantino, e aquele das moedas?
    E ele já se ria.
    Foi na outra curva, no princípio da subida. O carro ia cheio de gente. O chofer não se apercebeu a tempo que a curva era tão apertada e teve que travar e apertar com o volante já no meio. A porta do lado direito abriu-se e saiu de lá a voar um homem bem corpulento. Parecia que tinha sido atirado por uma catapulta. No ar ainda ia na posição de sentado. E sentado aterrou em cima da daroeira, que lhe serviu de almofada. Só ficou um pouco doído, nada de grave. A parte engraçada, e proveitosa para nós, é que passados quinze dias ainda lá encontrávamos moedas. Coitado! Devia levar os bolsos do casaco e das calças cheios.
 
    — Carlos! E lembras-te da Clementina?
    Ai não, que não me lembrava!
    Fui eu que primeiro ouvi o tiquetique espaçado dos saltos altos na estrada. Ambos soubemos imediatamente quem era. A Clementina já passava dos vinte. Era a mais nova de dez irmãos.
    — Ainda há outra mais nova, — corrige-me o Diamantino —  a Alice.
    — Pois há, não me estava lembrando da Alice. Essa moça foi lá para a França, nunca mais a vi.
    A Clementina, contra ventos e marés, decidiu ir para a escola secundária, já depois de crescida. Apesar de, ou por isso mesmo, a maior parte dos irmãos e irmãs já terem saído da casa dos pais, as posses não abundavam. Umas leiritas de terra muito minguadas. Uns pais já de idade avançada. Mas ela teimou. Ia a pé para a vila, dez quilómetros para lá, dez quilómetros para cá. Acontece que a Clementina não era moça de andar fora de moda: sapatos de salto altíssimo, saia travada e uma poupa digna da Rita Pavone. E lá ia ela em passo miudinho, tiquetique tiquetique pela estrada fora.
    Ambos nos escondemos atrás duma daroeira mesmo junto à estrada para a vermos bem de perto sem sermos vistos. Nem se nos ouvia a respiração.
    Foi quando o cabelo dela se soltou e algo caiu no chão...
 
    Parece que o riso é uma necessidade fisiológica. Quando estamos algum tempo impossibilitados de rir, a energia acumula-se e então é como os tremores de terra: quando se solta é uma força tremenda que chega a pontos insuspeitados do nosso corpo. Se não acreditam experimentem rir com vontade quando tiverem uma crise de gota a afectar um dedo do pé.
 
    A Clementina olhou para todos os lados. Fez uma ginástica digna de uma acrobata para se conseguir dobrar com a saia travada e apanhou do chão nada mais nada menos que um enorme rolo de palha-de-aço.
 
    E a enfermeira de serviço teve que me mandar embora antes que algum dos pontos do Diamantino rebentasse.


paralelo

    — Não! Está tudo okapa. Quando se entra na escada acende, quando se sai apaga. A descer faz o mesmo. O que não entendo é que a luz fica mortiça. Já experimentei as lâmpadas todas uma por uma. Todas okapa. — é para aí a trecentésima quinquagésima sétima vez que o Fábio explica isto ao telemóvel. Sem sucesso.
    O primo Chico, que mora um pouco mais acima, chega do trabalho, passa à porta, e lá está ele ao telemóvel.
    — Boa tarde, Fábio!
    E ele nem responde.
    
    — Este ano não vamos à praia?
    — Carla, não vês que tenho que resolver isto?
    Ela amua. Já vai em dois dias. As férias são oito.
    
    — Deixa isso, filho, que eu ainda vejo bem. Aqui no campo até as estrelas alumiam.
    Queria iluminar a escada do terraço, para a avó não tropeçar nos degraus quando precisa de lá ir de noite.
    No meu tempo, e a avó deixa-se voar em pensamento, íamos por esses campos em noites sem lua e viam-se as pedrinhas todas das veredas. Chegávamos a ir daqui aos bailes ao Mioto. À Alcaria íamos quase sempre. Aqui na aldeia ainda se chegou a fazer mastros pelos santos populares. Era uma alegria. Quando se voltava, altas horas, às vezes depois da uma, balhávamos pelo caminho ainda com a música na cabeça. Ao Mioto chegou a vir tocar o Ceguinho da Luz. O teu avô dizia que não podia ser. Sabia lá ele, ele não era de cá.
    
    O primo Chico sai para o café, e lá está ele ao telemóvel.
    — Até logo, Fábio!
    E ele, nada.
    
    — Tu? Tu nem carta tens! — tinha-lhe uma vez, há muitos anos, respondido com ar de gozo aquele engenheiro lingrinhas quando o Francisco lhe tentou explicar que as porcas das rodas do carro se desenroscam para a esquerda e não para a direita.
    — Ok! Eu vou à boleia que deve passar ali na estrada um vizinho meu que trabalha na vila.
    O engenheiro nem lhe respondeu. Um servente de pedreiros e ainda para mais imberbe a querer ensinar!
    Bem dizia o meu tio Elias que nunca se deve ensinar a quem ganha mais que nós. Nunca mais se esqueceu da lição prática a confirmar a teoria do tio.
    
    Estava farta de ficar no quarto. A velha não tinha conversa que lhe interessasse. E o pior é que queria que eles comessem com ela. Nem pensar.
    — Carla, não gostas de arjamolho?
    Só de pensar em meter a colher na mesma tigela que a velha lhe dá vómitos.
    A minha mãe bem me diz:
    — Mas o que é que tu vês no Fábio. Por ter o curso de engenharia quase pronto? Isso agora é o que há mais.
    — Mami, mas eu gosto dele. Que me importa a família?

    O primo Chico a sair para o trabalho, e lá está ele ao telemóvel.
    Desta vez parece ser com um professor, pois ele desfaz-se em senhor engenheiro para cá, senhor engenheiro para lá.
    — Bom dia, Fábio!
    E ele, nada.

    Se não conseguir resolver o problema hoje terá que desistir. Já não consegue contrariar a insistência da Carla para ir à praia, e mesmo a mãe, no seu telefonema diário, já o repreendeu:
    — Trata-a mal, sim. Olha o exemplo do primo Chico. Vais querer acabar assim? Não haverá por aí alguém que te saiba ajudar. Olha, talvez o primo Chico. Ele ainda trabalhou com os electricistas.
    — Essa deve ser para rir. Nem o meu professor Soares dá com o mal, dava o Chico.
    — Amanhã sem falta temos que ir à praia. Se não formos não te perdoo.
    Batem à janela. O primo Chico vem com os copos e grita lá para dentro:
    — Em paralelo! Liga aquilo em paralelo!
    E ouvem-no resmungar aos trambolhões pela vereda acima.
    — O que é que ele disse?
    — Coitado, está mesmo mal de todo. Só dizia paralelo. Deve ser uma alucinação. Amanhã vamos à praia. À tarde desmonto o kit que não dou conta daquilo.

* Ligação em paralelo e ligação em série são duas maneiras de ligar várias lâmpadas, e explicam a razão porque as do Fábio ficavam mortiças. Ele tinha-as ligado em série.

metamorfose

     Parece-me que a estou a ver subir a vereda que nos trazia da casa onde ela nasceu e cresceu até à estrada nova.
    Não sei se alguma vez viram como as pessoas da serra vencem as subidas íngremes e prolongadas que, na serra, estão por todo o lado. Dão passos curtos em cadência lenta e constante, assentam a sola do pé por inteiro de uma vez só no chão e balançam ambos os braços ao mesmo tempo, para a frente e para trás, para dar o máximo impulso ao corpo. Assim vencem quilómetros de subida sem parar e sem mostrar sinais de cansaço. Quando vão à vila ou mesmo lá abaixo ao Algarve, como se diz na serra, mantêm amiúde o mesmo estilo no andar. Nas subidas, então, é quase certo que o façam. Quando subíamos ambos a ladeira eu tinha sempre que descansar pelo menos duas vezes. Sentava-me numa pedra a recuperar o fôlego, ela ficava de pé a olhar para mim e a rir.
    Conheci-a no restaurante da Julieta Dias onde ela trabalhou quase desde que acabou a escola primária. Quando voltei da tropa e fui trabalhar para a oficina do Mariano Duarte, íamos sempre lá beber o café depois do almoço. Confesso que simpatizei com ela na primeira vez que a vi, tinha ela dezasseis anos; tenho mais sete. Para mim as bochechas rosadas dela eram pétalas duma flor mimosa. Comecei a passar lá muito tempo, cada vez mais. Não havia tarde que não me demorasse por lá. Ficávamos de conversa sempre que o serviço dela permitia. Um dia enchi-me de coragem e pedi-lhe namoro. Ela olhou-me de viés e disse com aquele ar meloso que me derretia:
    — E eu pensando que já namorávamos!
    Para encurtar a história direi que casámos tinha ela dezanove anos. Viemos morar para Odemano. Eu tinha arranjado trabalho na oficina de alumínios e ferro do meu primo Aníbal. Sempre gostei mais do ferro forjado que da mecânica de automóveis, que era o que fazia na oficina do Mariano. Acho que tenho veia de artista, e o ferro forjado dá-me a possibilidade de criar obras de arte. Tivemos um casalinho logo nos primeiros três anos de casados; para dizer a verdade a primeira nasceu cinco meses depois do casamento. A Rogélia, assim se chama, arranjou trabalho numa padaria, a vender pão.
    Desde ainda antes do namoro tinha percebido que ela gostava de ter estudado mais. Eu andei na escola até ao terceiro ano. Comecei a trabalhar nas oficinas aos quinze. Felizmente não foi porque os meus pais não pudessem, eu é que não tinha paciência para a escola. Eu sei que faz falta, mas a escola não foi feita para mim. E também porque assim já ganhava alguma coisa para os meus gastos sem estar às tenças dos velhos. Eu queria ter uma motorizada, nunca teria coragem de a pedir ao meu pai. Quando a miúda fez dez anos eu disse:
    — Olha lá, Rogélia, tenho pensado muito nisto. Já desde os primeiros tempos que te conheci que sei que tu gostavas de ter estudado. Porque não vais para a escola de noite? A miúda já está crescidinha, já me ajuda a cuidar do irmão. Tu vais à escola e a gente desenrasca-se cá em casa.
    Notei que ela ficou muito sensibilizada com a minha ideia. Levou algum tempo a aceitar porque achava que eu não seria capaz de dar conta do recado. Tanto insisti que ela acabou por se ir matricular. A escola nem era longe de casa. Dava para ir e voltar a pé.
    Eu bem dizia que ela tinha vocação para a escola. Imaginem que em três anos deu conta de cinco anos de escola. Não sei quando é que ela estudava, o que sei é que cinco anos depois tinha o sétimo ano, ou equivalente, não entendo nada disso. Diziam que ela sabia sempre tudo quando era chamada ao quadro. Eu estava orgulhoso da minha Rogélia.
    O meu trabalho não faltava. Havia muitas encomendas e o meu primo era daqueles que sabem reconhecer o valor de quem trabalha. Foi assim que quando ela disse:
    — Arménio, agora tenho que procurar um trabalho em que ganhe mais. Gosto muito do trabalho na padaria, mas para isso não precisava de ter estudado.
Eu respondi-lhe:
    — Não, Rogélia! Tu agora vais para a universidade. Os moços já ajudam mais do que empatam. Fazemos o sacrifício. Já falei com o Aníbal, o trabalho não falta, posso fazer horas extraordinárias que não dou conta.
    Ela começou por resistir. Que isso não tinha jeito nenhum. Uma mulher casada e com filhos fora de casa a semana inteira. Não! Isso não! Mas eu insistia. A Mariana já estava com quase dezasseis anos e também me ajudou a convencê-la:
    — Ó mãe, nós damos muito bem conta da casa. Vais a ver que vale a pena, doutora Rogélia. — e ria.
    Para dizer a verdade não foi nada fácil. O Pedro estava numa idade difícil, o meu braço direito foi a Mariana. Mas confesso que chegava aos fins de semana meio derreado. O que mais custou foi o último ano, a Mariana entretanto arranjou um namorico, por sinal um rapazinho atinado, gosto muito dele. Mas a Rogélia tinha cada vez mais trabalho lá no curso e ficava em Lisboa muitos fins de semana. Uma vez ficou dois meses de seguida.
    — Agora tenho que fazer estágio para conseguir a aprovação na ordem. Vai ser pelo menos mais ano e meio. Gostava de ficar aí ao pé de vocês, mas já fui convidada para fazer o estágio no escritório de um professor meu. Acho que o melhor é aproveitar.
    Eu aceitei, um ano e meio passa depressa.
    Quando conseguiu a admissão na ordem, o que lhe permitia ser advogada de corpo inteiro, fizeram-lhe uma festa num restaurante de luxo em Lisboa. Lá fomos nós os dois, os moços não quiseram ir. Sentia-me muito deslocado.
    — Não sejas parvo, era o que faltava o marido da homenageada não estar presente.
    Era tanta gente a cumprimentá-la, a felicitá-la. Eu não entendia metade do que aquela gente dizia.
    A certa altura sentei-me num sofá a descansar. Ia passando os olhos pela sala fixando este ou aquele pormenor.
    Aproximou-se de mim uma senhora, diria antes uma fulana, gorda, tresandando a tabaco, chegou o rosto junto ao meu, pegou-me no nó da gravata:
    — Seu maroto! O senhor deve ter algum encanto escondido para a doutora Rogélia se interessar por si. Ela que é tão exigente com os homens. Não me importava de tirar isso a limpo, seu maroto. — e afastou-se bamboleando as ancas.
    Vi duas mulheres, que pareciam ter-se escapado dum filme de Hollywood. A mais alta falava olhando para mim e dizia:
    — Não sei o que a doutora Rogélia viu naquele homem. Com tantos homens interessantes por aí. Já viste as mãos dele? E aquela gravata, vê-se logo que não está habituado a usar gravata. Também, como é que alguém se pode chamar Rogélia? — e riam-se. Eu virei a cara para o lado e senti o rubor no rosto, envergonhado como alguém que é apanhado a escutar atrás duma porta.
    O pior foi quando a Rogélia estava a conversar com o doutor Vargas, o tal advogado no escritório de quem ela tinha estagiado. Olhavam ambos para mim. Diz ele:
    — Já lhe disseste?
    — Ainda não, não quero estragar a festa ao pobre.

    Ainda não falei do meu tio Armando. O meu tio Armando esteve na tropa na Índia. Apanhou lá uma doença, hoje suponho que tenha sido alguma virose, na altura não se me pôs essa questão, podia ter-lhe perguntado mas agora já é tarde. Bem, ele esteve muito mal e perdeu por completo a audição e a fala. Teve que reaprender, creio que em Alcoitão, a falar e a ler os lábios. Morava mesmo ao meu lado quando eu era pequenito. Eu gostava muito dele, e ele de mim. Passávamos muitas horas juntos. Parece que estou a ouvir a sua voz monocórdica e pausada. Ensinou-me que tinha que falar com ele pronunciando bem as palavras e olhando-o de frente. Como eu era muito curioso, ele também me explicou como me entendia. E foi-me ensinando a ler os lábios. Divertíamo-nos muito a brincar com isso. Ele morreu novo, de um aneurisma, tinha trinta e nove anos.
    Nunca mais tinha praticado, nem me lembrava de tal coisa. Mas quando vi os lábios carnudos e bem vermelhos daquela mulher a moverem-se comecei a soletrar e aos poucos fui decifrando até que já entendia perfeitamente. Se calhar é como andar de bicicleta.


brio

    O filho levantou-se primeiro que o pai. Tinham tido a sorte de rebolar por cima do monte de areia já meio espalhada das obras da casa do Natalino, onde a Sachs de três velocidades ficou presa. O gaiato tinha ido parar em cima dos mentrastos do barranco. O Amadeu foi poisar em cima do burro do Tio José Rato que estava a pastar no barranco, preso pela arreata à oliveira velha, e o sacudiu aos coices.
    — Ah, malandro! Que me queres matar o burro! — praguejava o Tio Rato.
Era Domingo Gordo. À tarde, quando o Amadeu desceu a ladeira que vem da Alcaria, com o filho sentado à sua frente em cima do depósito de gasolina, entrou na estrada nova, e tentou fazer a curva, a rua da venda da Marília estava cheia de gente. A grande maioria homens, mais velhos, mais novos, juventude, gaiatos, tudo.
    Três mascarinhas iam a chegar quando ele não conseguiu fazer a curva, e tiveram que fugir do trajecto da motorizada para não serem apanhadas. A última, quando viu que não conseguia fugir com a saia apertada, teve que recorrer a um voo para o barranco.
    — Raios me partam se aquele não é o Marcelino! —  e era. Era o melhor guarda-redes da aldeia. O voo denunciou-o.

    — Malvado! Onde vais com a criança?
    — Vamos à batalha das flores, não vamos, filho?
    — Era bem feito que a guarda te multasse.
    — Cala-te, maluca. Tu não queres vir, não venhas. Aposto que o Luís vai gostar.
    — Era só o que me faltava, andar por aí a brincar ao carnaval. Coisa mais parva. Por amor de Deus, tem cuidado com a criança.

    O Amadeu tinha andado quase toda a noite com a malta a fazerem partes de carnaval pela aldeia e arredores.
    O António do Cerro, puseram-lhe os fardos de palha do vizinho Jorge arrumados à porta. Falta dizer que eles estavam zangados que não se podiam ver, por causa de umas teimas com a estrema lá ao pé da ribeira.
    O António Semedo, levaram-lhe o carro de besta e foram metê-lo no alpendre do forno da Carminda. Falta dizer que eles não se davam desde que o António foi apanhado a espreitar à janela da Carminda quando o marido desta estava na França.
    E nisto andaram até já passava das três da manhã. A última foi o clássico batuque com a aldraba da porta do Joaquim Caçapo. Usavam um fio de guita com mais de cem metros, ligado à aldraba por um fio de lã que funcionava como um fusível das instalações eléctricas, quando ele tentasse agarrar no fio eles puxavam para não perderem o fio de guita, porque o de lã era mais fraco e se partia. O Joaquim saía de casa e corria atrás deles à pata descalça pelo restolho. Eles espalhavam-se pela chapada. De vez em quando ele dizia bem alto:
    — Já te apanhei, malandro!
    Era a ver se os outros vinham acudir, mas eles sabiam que era bazófia.
 
    O Amadeu levantou a Sachs, esteve um bocado a ver se estava tudo em bom estado. Pegou no gaiato, que chorava baba e ranho, meteu-o em cima da bicicleta e arrancou rumo à Alcaria.
    Quando já todos pensavam que ele tinha voltado para entregar o gaiato à mãe, o Amadeu deu a volta na estrada velha, acelerou pela ladeira abaixo, entrou na estrada nova à laia de roleta russa, sem olhar a ver se vinha alguém, fez a curva com o patim esquerdo a faiscar no alcatrão e saiu disparado pela estrada fora, olhando para trás para a multidão, que batia palmas, ou assobiava, ou ria, ou abanava a cabeça.

    E o Amadeu lá vai todo lampeiro para a batalha das flores. Que é que eles pensavam? Que ele não conseguia fazer a curva como deve ser?
    O Luís já não chora, agora vai atrás, bem agarrado ao pai.