tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
o presidente da câmara
O presidente da câmara não presta
declarações
nem sobre a outra legislatura
nem sobre esta
diz que está empenhado
e quando perguntado
se não lhe chega o ordenado
diz que ordenado não foi
por se ter casado
antes de acabar o seminário
diz que o empenho não é desses
diz que está empenhado
mas é em mostrar serviço
para ganhar outras eleições
o salafrário.
o medo
O medo, o medo, o medo.
O medo é cão raivoso.
O medo morde. O medo é interior.
Se o medo cresce é pavor.
O medo é arma do poderoso.
O medo é individual.
O medo contamina.
O medo a paralisar...
O medo instala-se no tutano.
De não importa que idade
Sacudir o medo, que tal?
Limpá-lo, juntar
Fulano, sicrano e beltrano
Quantos mais
Menos o medo domina
Medo? Jamais!!!
O medo é fantasma
Só no escuro se dá bem
Para sacudir o medo
Traz outro amigo também
Pra fazer a claridade...
o papa-figos
— É ele! Não há dúvida, Ludovino. — e passa os binóculos ao companheiro — Além ao lado da azinheira, no Serro do Cuco.
— Ele quem, António?
— O Papa-Figos. Quem havia de ser?
Ludovino Colaço pega nos binóculos, tira os óculos, ajusta a ocular, e confirma: é o Salvador Bento, conhecido por toda a gente por Papa-Figos.
— Salvador, porque é que te chamam Papa-Figos?
— Sei lá, moço. É coisa em que pouco pego. Às vezes, de manhã com a fresca passo ao pé duma figueira e como um ou dois. No tempo deles, passa dias e dias que não toco num. A malta é maluca. Então e porque é que chamam Sapo ao moço do Joaquim da Portela, esse que está na guarda da caça? A malta é maluca, Gregório.
— O teu amigo António! Olha que ele marafa-se se te ouve chamar-lhe Sapo. Descuida-te com ele que ele manda-te prender, Salvador. — e o Gregório desmancha-se a rir.
— Eu quero que ele vá mas é ter um menino, Gregório. Olha, apanho ali um pimento e um tomate para a salada.
— Apanha, sim. Leva também uma cebola.
Companheiros da fábrica da cortiça, dos tempos de antes da tropa. Antes de o Salvador fazer a jura de nunca mais trabalhar, quando não o aceitaram para a polícia.
“Salvador Correia Bento, filho de Marcolino Bento e de Senhorinha Correia, nascido em 18 de Março de 1930, na freguesia de Vila Ruiva, concelho de Vila Ruiva. Reprovado.” dizia no papel afixado no posto.
— Não sirvo para a polícia, também não sirvo para trabalhar. Podem ter a certeza, moços.
A vida dele era andar pela ribeira, pelos barrancos, pela serra, a pescar e principalmente a apanhar passarinhos, que vendia às casas ricas, às tabernas e aos poucos restaurantes da vila. Actividade proibida que lhe valia de vez em quando uns tempos na cadeia, de que conhecia bem o carcereiro.
Conta-se que um juiz, em tempos, pediu passarinhos no restaurante do Afonso Mestre. Este disse, com ar pesaroso que não tinha. O juiz chama-o ao perto e diz-lhe ao ouvido:
— Eu sei. Dei-lhe três meses, não podia dar menos.
O Ludovino fica uns instantes calado. Não lhe está apetecendo nada meter-se à serra com este calor, atrás do Papa-Figos. Os quarenta e oito anos já lhe pesam nas pernas. O António está com vinte e sete, tem idade para ser seu filho, e olha para ele à espera de ordens. Bem te entendo, se não for, vais ficar com esta para me atirar à cara. Quando eu tinha a tua idade também dava um pontapé numa estrela. Cheguei a calcorrear léguas a subir e a descer serros atrás de outros Papa-Figos. Nas serras de Cachopo, essas serras não conheces tu, Sapo, como te chamam lá na tua aldeia, ou pensas que eu não sei?, essas serras são muito piores que aqui. Um homem anda mais ou menos pelos pontais, mas assim que desce um bocadinho, o terreno mergulha a pique direito aos barrancos, só consegue andar de lado, sempre de lado. Que é uma serra nova, disse-me um dia um engenheiro que encontrei por lá, dizia ele que estas serras são geradas pelos deslocamentos da terra, assim uma espécie de enrugamento. Lá, os serros ainda não arredondaram tanto com a erosão das águas, porque são mais novos que aqui, milhões de anos. Seja como for, aquilo lá era muito pior, a idade é que era outra.
— Vamos lá! — e meteram-se a caminho.
— Achas que ele já nos viu?
— António, um macaco daqueles deve ter-nos visto muito antes de nós o vermos a ele, era capaz de apostar.
— Ludovino, tu parece que tens simpatia por aquele pilho.
— Eu? Simpatia não tenho nenhuma, mas olha que ódio também não. A vida dá muitas voltas...
O Sapo olhou o companheiro de lado.
— Eu, para mim isto é uma missão, nem ao meu pai perdoo.
O Ludovino não disse nada.
António Martins dos Santos começou a aprender com o pai o ofício de carpinteiro aos doze anos, mas a habilidade nunca foi muita. Contrariamente ao irmão, de quem dava gosto ver sair as peças da mão, como por magia. António tinha uma inveja surda. Seria incapaz de confessar que detestava o ofício, e detestava-o mais ainda se o irmão estivesse por perto. Este bem lhe mostrava como devia fazer, mas as mãos não obedeciam. Quando regressou da tropa, em 59, um major de quem tinha sido impedido arranjou-lhe aquele emprego de guarda da caça. Se alguém sabia onde ele foi buscar o anexim de “Sapo” não o dizia, mas o certo é que o anexim lhe estava tão colado à pele que alguns na aldeia nem sabiam o seu nome. Mas também ninguém se atrevia a tratá-lo por “Sapo” na cara.
O Papa-Figos desapareceu da vista quando eles se aproximaram pelo vertente, a uns duzentos metros, menos. Mas era lesto o Papa-Figos, quando eles chegaram ao alto do serro do Cuco e pararam para descansar à sombra da azinheira, demoraram um bom bocado a avistá-lo já na chapada em frente, meio disfarçado atrás duma medronheira. O Ludovino estranhou ele ter ficado lá parado e meio a mostrar-se, mas não disse nada.
Quando Ludovino Colaço saiu da tropa já nada o prendia à terra natal, uma pequena vila alentejana. As irmãs já tinham saído, com os maridos, que foram ganhar a vida para longe. No breve período em que serviu a pátria num quartel da capital, o pai morreu atingido por uma pedra na pedreira em que trabalhava, o irmão morreu de tuberculose e a mãe de tristeza.
Ficou por Lisboa. Foi, primeiro, ajudante de pedreiros e depois empregado de mesa num restaurante de galegos. Foi lá que um coronel o desafiou para guarda da caça.
— Você, nota-se que é um homem do campo e que vive aqui em Lisboa contrariado. O seu lugar é no campo, homem. — e ria-se. — Eu reconheço isso à légua, sofro do mesmo mal. Quem me dera alguma vez pudesse resolver esse problema de voltar ao campo.
Depois de descansarem um pouco, lá partiram pelo vertente abaixo. Andaram à procura de sítio para atravessar o barranco sem deixarem a roupa e a pele agarradas às silvas. O que só conseguiram em parte.
Sobem a chapada na direcção de onde tinham visto o Papa-Figos junto à medronheira. Olham para trás e já ele está à sombra da azinheira no serro do Cuco. Ficam mesmo irritados, até o Ludovino já estava capaz de o estrafegar se o apanhasse ali.
Voltam para trás, atravessam o barranco, sobem a encosta. Vão direito à azinheira. O Papa-Figos desta vez está sentado numa pedra a gozar a sombra, e não mostra tenções de fugir.
Aproximam-se, ele levanta os olhos:
— O que é que vocês andam aqui a fazer, moços. Com um calor destes?
Só então percebem que não têm por onde lhe pegar.
não há bruxas
Aquela cabeçorra disforme, encimada por duas pontas que se prolongam pela chapada, é o que o Jaime primeiro vê quando abre os olhos. Um calafrio áspero devassa-lhe a coluna vertebral. Ao mesmo tempo sente algo cálido e húmido no rosto. Ouve como que um balido, forte, muito perto. E, à medida que vai recobrando os sentidos, ouve os sons inconfundíveis de pegadas de um animal que se aproxima. Tenta levantar-se, uma dor pungente no tornozelo direito fá-lo gritar e deitar-se de novo no chão de pedras e pasto seco.
— Não venhas tarde, Jaime.
— Eu só vou ao Vale brincar com o Carlos. Antes do sol-posto já cá estou. — E a promessa não era vã, nunca ele tinha feito aquele caminho de noite.
Mas aquela tarde de domingo de fins de Maio arredou-se muito do costumeiro. Daquela tarde nunca na vida o Jaime se irá esquecer. Nem deu por o sol se ter escondido detrás da serra. A exaltação atiçada pelos acontecimentos nem o deixa lembrar-se do caminho que tem pela frente. Quando se mete à vereda nem sente qualquer receio, lá mais acima ainda fica um bocado a olhar o fogo lá ao longe.
— Ele anda além amarroado, mas se o vento muda ele engalga pela chapada abaixo e ninguém o pára até à ribeira.
— Se o vento muda, dizes tu! Não sabes que muda? Em chegando o sol-posto vais ver.
— E o que é que a gente faz, Natalino?
— Estou aqui pensando. Os bombeiros andam todos lá para trás, para o fogo não chegar à serra. Daqui estão descansados porque o vento está a puxar para lá e aqui há a ribeira.
— Ora porra, mas as searas estão na banda de lá da ribeira.
Os homens do Vale vão-se juntando na rua da venda da Marília. Caras densas, apreensivas.
— Ai o meu triguinho! Ai o meu triguinho!
— Tenha calma, tia Rosa! A gente vai dar conta do fogo.
— Como é que tu dás conta dele, Natalino?! Já o estou vendo a arder, como faz amanhã vinte e quatro anos!
O Natalino não diz nada, mas a sua aparência torna-se de súbito brava e decidida.
Nisto, chama o João Martins à parte:
— João, pega na bicicleta e vai à procura do Aldemiro. Eu já sei o que se tem que fazer, fiz uma vez na tropa, mas o pessoal a ele sempre tem mais respeito. Se não o encontrares, não te demores, que eu atrevo-me a ir para a frente. Se for preciso tem que ser.
À medida que o Jaime sobe a vereda vai-se fazendo escuro e a lua redondinha rompe a linha do horizonte como um parto. A brisa do lado da charneca já tinha amainado desde há bocado, agora vem uma aragem quente dos lados da serra, com fumo e cheiro a mato queimado. Os homens tinham razão, o vento mudou ao sol-posto, mas as searas estão a salvo.
O luar projecta as sombras das alfarrobeiras meneadas pela aragem formando figuras agigantadas, que dançam através da encosta. O Jaime de início entretém-se, enquanto sobe a vereda, a observar as figuras e diverte-se com certas formas que vão adquirindo aqui e ali. Agora parece um cão. Ali parece uma mula. Além parece a cabeça dum bezerro. O pior é quando algumas figuras lhe começam a aparentar seres reais e vivos, juro que ia ali um burro a voar!
O João Martins procurou o Aldemiro em casa. Não estava ninguém, mas a cunhada, que morava ao lado, garantiu que eles tinham ido a Faro visitar a filha e só deviam chegar lá para a noite.
— Não esperamos mais. — o Natalino está decidido.
Mandou chamar os homens todos, que já andavam por ali, uns pela venda, outros pela rua, alguns a jogar às cartas. Mas todos ansiosos por saber qual seria a ideia do Natalino, que ainda não se tinha descosido, prontos para o que desse e viesse.
— Não podemos contar com os bombeiros, que andam lá para trás e aqui não vêm porque aqui está a ribeira, eu compreendo.
O Natalino era um homem na casa dos trinta, mas respeitado por todos, até pelos velhos. Além de pedreiro e dono de umas leiritas que herdou do pai, que a morte levou era ele moço, era o acordeonista mais popular das redondezas. Nunca, porém, ninguém alguma vez o vira a tomar a dianteira fosse no que fosse.
Falava pausado, calaram-se todos.
— Mas nós aqui temos quase todos as searas em perigo. Todos sabemos que assim que passar o sol-posto o vento muda e se não fizermos nada ele vem por ali abaixo a queimar mato, pega nas searas e só pára na ribeira. Mas há uma maneira de não o deixarmos.
Podia-se ouvir uma mosca entre os presentes, até os gaiatos sorviam as palavras do Natalino.
— Mandei procurar o Aldemiro. Se ele estivesse aqui sabia bem o que fazer, mas ele não está cá hoje. Foi à da filha. — fez uma pequena pausa. O Aldemiro era guarda-rios e uma pessoa que toda a gente procurava quando precisava de conselho.
— Mas eu também sei o que temos que fazer, fiz isto na tropa. Vamos todos buscar ferramentas. Enxadas, pás, o que tivermos à mão. Um machado para cortarmos umas varas para bater o fogo, se for preciso. Escutem-me bem, espalhamo-nos todos ao comprido da vereda do moinho, que é onde se pode fazer um aceiro. Rapamos o mato todo entre as searas e a vereda. Depois puxamos fogo ao mato à parte de cima da vereda e com a ajuda da aragem, antes que o vento mude, não o deixamos passar para o lado de cá. Aí quantos mais formos melhor. Este fogo vai ao encontro do outro e quando o vento mudar já não vem para baixo porque já não tem mato para queimar. Acreditem que eu sei o que estou a fazer. Isto chama-se um contrafogo.
Alguns dos homens já tinham ouvido falar. Alguns mais cépticos depressa se calaram, porque também não viam mais maneira nenhuma de salvar as searas.
O tio João das Casas mora sozinho, desde a morte da mulher já lá vão vinte e dois anos, no Monte das Casas, onde já viu morarem cinco famílias. Já desde os tempos da mulher assim que cheira a verão raramente o vêem de dia. Só quando, lá de muito em muito tarde, vai à vila; ou mais frequentemente quando se mete pela vereda aos ziguezagues, passa o barranco e vai à venda do Chico Lázaro. Tem uma hortinha com uma nora junto ao barranco das Tabuas, mesmo quase a chegar à ribeira. No verão é corrente o seu vaivém do monte para a horta, da horta para o monte, por vezes vai também lá mais a baixo ao poço porque a água da nora não presta para beber. Sempre de noite. Sempre acompanhado do burro, do cão e da cabra, o “Jerico”, o “Pitanino” e a “Clarinha”, como ele lhes chama. O “Pitanino” é em homenagem a um que o pai tinha quando ele era pequeno. Muita gente diz que ele é lobisomem. Ele sabe que o dizem: «Bruxas são elas!», e diz isto a rir.
O Jaime desvia-se da vereda para a esquerda, para evitar as alfarrobeiras. Agora vai com cuidado entre os tojos e os carrascos, aproveitando os carreiros dos coelhos, mas em terreno seguro, onde não veja as sombras. O luar ilumina tudo, dá para ver bem onde põe os pés. Vai mais devagar, mas mais tranquilo. O pensamento volta para os acontecimentos da tarde. Ficou tão contente quando o senhor Joaquim disse:
— Tomem lá os sachos e vamos todos ajudar para o fogo não queimar as searas. Não temos lá nenhuma, mas temos que ser uns para os outros. Hoje por ti, amanhã por mim. Fiquem sabendo que o Natalino também não tem seara nenhuma no outro lado da ribeira.
Cavei tanto que até tenho ampolas nas mãos. Tenho aqui uma que dói muito.
De vez em quando ouve o piar de algum mocho. Isso já ele está habituado a ouvir, mas mesmo assim, é diferente ouvir lá em casa, ou na rua de casa, de ouvir aqui nestes xarazes.
Nem quer pensar que vai ter que atravessar o barranco. Aí não vai ter para onde se desviar, a não ser que vá dar uma volta que nem ele sabe quantos quilómetros são, nem por onde passa. Só sabe que por aquele caminho teria que passar ao Monte das Casas. E lembra-se que é noite de lua cheia. Um calafrio.
Lembra-se de a vizinha Alzira dizer que o tio João das Casas é lobisomem, e que os lobisomens se transformam em lobos à meia noite nas noites de lua cheia, e que vão bailar com as bruxas nas encruzilhadas.
Encruzilhadas! É mesmo quando se lembra que está a chegar à encruzilhada das quatro veredas, que se levanta do chão quente um pássaro enorme que sai batendo as asas e gritando: “Cá vai! Cá vai! Cá vai!”. Nunca tinha ouvido tal pássaro, salta para o lado e corre. É quando a bota cardada resvala numa pedra e não se lembra de mais nada.
O “Pitanino” dá pequenos ladridos a chamar a atenção do dono. Não é novidade nenhuma. Deve ser algum coelho. Mas o cão insiste. E atravessa-se à frente das patas do burro, como a dizer: aqui tens de parar e escutar-me. Tanto insiste que o tio João resolve ir atrás dele a ver o que se passa. Foi quando ouviu o balido da “Clarinha” e depois o grito. Já a “Clarinha” tinha ido também espreitar. Quando o tio João se aproxima montado no burro já o cão está a lamber a cara do rapazito e a cabra a olhar empinada numa pedra alta, deve ser para ver melhor, são umas curiosas estas cabras.
O Jaime reconheceu o tio João, via-o às vezes na venda. De repente assustou-se, mas a dor era tanta que estava por tudo.
— Mas tu não és o gaiato do Pedro Chacota?
O Jaime nunca tinha ouvido chamar Chacota ao pai, as pessoas têm o cuidado de não chamar aos próprios os anexins que acham que eles não gostam.
— O meu pai é Pedro! Dói-me muito o artelho! — e começou a chorar.
Enquanto o punha em cima do burro para o levar a casa, o tio João, que não era nada parvo, ria-se:
— Com que então com medo das bruxas da encruzilhada. Sim! Se não fosse isso ias pela vereda e não tinhas caído. E donde será que tu vens a esta hora, seu maroto, do namoro? — e ri. — Fica sabendo duma coisa, Jaiminho, és Jaime, não és? Não há bruxas! Se houvesse bruxas já me tinham comido. — E ria com vontade enquanto descia os ziguezagues da vereda para o levar a casa.
a turista
Se eu contar a vocês aposto que todos vão entender porque estou danada. Estão ali há mais de quatro horas. Quatro horas! Sentados à mesa a beberricar e no paleio. Daqui a pouco são horas de jantar e eles ainda não se levantaram do almoço. Já não os posso ouvir.
Eu sempre gostei de passear. Sei lá, gosto de ver paisagens novas, monumentos, jardins...
Lembro-me como se fosse hoje quando íamos à serra de Monchique e nos parecia que estávamos num outro mundo. Tudo verde; fontes de água fresca por todo o lado; sombras frescas. Aqui em Santana da Charneca era tudo seco. Na maior parte dos anos quando se chegava a fins de Maio já não se via nada verde. Só as folhas das alfarrobeiras. Mesmo as oliveiras era um verde que nem parecia verde, mais para o cinzento. E os carrascos ficavam castanhos.
Quando fui lá para cima, ali para os lados do Vale já se via muito verde, por causa da ribeira e muito mais ainda depois de fazerem a barragem do Gralho. Os canaviais, as laranjeiras, que nesse tempo já lá havia muitas, as sementeiras de tomateiras, de pepinos, de pimentos, de melancias e melões, de feijão. De milho havia muitas. Mas nada comparado com a frescura de Monchique.
Nessa altura a gente ia em excursões, era a única maneira de se sair da nossa terra a conhecer o que de outra maneira nunca se conheceria. Uma camioneta da carreira cheia de gente. Levavam comida que dava para um regimento. O que eu mais gostava era dos bocados de lombo de porco frito e conservado na banha e dos pastéis de bacalhau.
A Sagres, a Vila Real, a Monchique. À Fonte Santa de Quarteira também havia um homem que fazia todos os anos uma excursão, tinha um dia certo para esse banho, mas não me lembro qual era. Depois a fonte quase secou, dizem que foi quando fizeram a fábrica da cerveja, que o furo da fábrica cortou a veia de água. Não sei se é verdade, mas, se for verdade sempre quer dizer que aquela cerveja era feita com água santa. Também faziam excursões à praia; não eram bem excursões, a camioneta punha-nos lá de manhã e ia buscar-nos à tarde. Não ficava por nossa conta.
Desses tempos de excursões quando era moça, das lembranças que mais tenho marcadas na memória por me serem estranhas, são os pinhais e os camaleões de Vila Real, mas sobretudo, aquelas figueiras rasteirinhas e as árvores inclinadas pela persistência do vento nas proximidades de Sagres.
Tem piada que nessa altura quando íamos para os lados de Monchique parecia que estávamos no paraíso; mas, mais tarde, nos anos que vivi no Barreiro, aquilo de que sentia mais saudades eram aqueles cheiros da charneca seca, e da cantoria das cigarras. Quem havia de dizer?! Isto aqui hoje parece um jardim, desde que se começaram a fazer os furos, mas vocês querem crer que eu ainda hoje tenho saudades dos cheiros da charneca? Não é saudades da miséria desse tempo. Nada de confusões.
Enquanto vivemos lá em cima nunca tínhamos tempo de passear, era aquela rotina sempre igual. Vocês acreditem que passava meses, anos, sem sair daquele vaivém de casa para o trabalho. Os fins de semana mal davam para as compras e as limpezas. As férias eram sempre uns dias cá, na casa da minha sogra que tinha mais condições que a dos meus pais. O meu marido trabalhava muito por fora, a fazer montagens de maquinaria um pouco por todo o país. Até chegou a ir fazer trabalhos a Marrocos. Mas eu era trabalho casa, casa trabalho.
Depois viemos para baixo, abrimos o restaurante e entrámos numa rotina quase igual. Foram quinze anos com o restaurante aberto. Só fechávamos à quarta-feira. Estava farta, farta. Até que pus os pés à parede:
— António, está na hora de passar isto ao moços. Ela é a única herdeira, isto é tudo para eles. Eles que tomem conta. Não digo que não andemos por aqui de vez em quando a dar a nossa ajuda. Mas sempre aqui presos não!
Ele também não foi fora do jeito. Falámos com eles e aceitaram.
É verdade que desde que lhe entregámos o restaurante é raro o dia que não damos aqui uma ajuda, mas já não é por obrigação. Já não é uma prisão.
De vez em quando vou numa excursão. Tenho tanta pena que o meu António não goste de ir também. Há uma senhora na vila que nunca se esquece de nos vir convidar para ir.
Já fui ao Norte. Já fui a Sevilha. Já fui à Serra Nevada. Já fui à Galiza. Já fui a muitas terras. Terras muito bonitas. Tenho uma colecção de “selfies” que dá para ficar a ver na televisão horas e horas. Gosto sempre de tirar uma “selfie” com as paisagens por trás, os monumentos. Tento ver se ele se entusiasma com aquelas belezas e vai também. Na última vez que lhe tentei mostrar as "selfies" com os monumentos de Córdova, passados uns dez minutos ressonava que nem um porco. Tenho tanta pena.
A única vez que o convenci a ir foi ao Minho. Braga é tão bonita, tem tanta coisa para ver. Tantos monumentos, tantos jardins. Sabem o que ele fez. Meteu-se numa taberna ao lado do hotel e disse:
— Vão lá vocês, que eu vou conversar por aqui com este pessoal.
Fui tão triste! Quando voltámos estava ele numa roda a cantar a despique com uns minhotos.
Sabem o que ele me disse à noite:
— Isaura, com quantas pessoas é que vocês conversam nos locais que visitam? Quero lá saber dos monumentos e dos jardins, para mim são todos iguais. Eu quero é conversar com gente!
E as pessoas não são todas iguais?!
Vocês nunca viram na televisão aquele senhor que fala de viagens? Acho que ele já correu quase o mundo inteiro. Um senhor de barbas, já meio grisalho mas ainda muito apresentável. O nome dele é Luís Faísca. Vocês querem acreditar que apareceu aqui no restaurante hoje para almoçar?
Reconheci-o assim que ele entrou. Muito simpático, uma pessoa simples. Pensei logo, vou aproveitar para meter conversa. Disse-lhe que era uma grande apreciadora do seu programa. Convidei-o para a nossa mesa. Eu sou ratona, pensei logo que uma pessoa como ele poderia ter influência no meu António.
Ele disse-me o que anda por aqui a fazer, mas, como devem entender, não vou aqui divulgar.
Agora estou muito desiludida. Estão de conversa há mais de quatro horas, como já disse, e não se cansam de dizer que se entendem às mil maravilhas e têm a mesma maneira de pensar.
Não acham que é razão mais que suficiente para estar pior que marafada?
a estrela alerta
Acorda, meu amor
já amanhece
não vês aquela estrela?
que se despede
e desvanece
com o alvor.
Sabes porquê?
o porquê da despedida
não é o que parece
os homens acreditam
que ela não é capaz
de com o Sol competir
e ela tem que ir
mas não
não é nada disso.
Ela não se despede
apenas se retira
porque agora não faz falta
agora vem o dia
mas ela está alerta
e
sempre que escurecer
como uma janela aberta
ela virá
para ti.
um achigã com brinde
Os olhos azuis, as bochechas rosadas, o cabelo loiro, em finos caracóis. É tal e qual, tal e qual. O pensamento do Frederico voa para longe, vinte e três anos lá atrás.
Os olhos da Ivone seguem-lhe o olhar, quem será aquela lambisgóia?
— Fred, estou a falar contigo. Onde tens a cabeça? Eu vou escolher o cabrito, e tu?
— O que há?
— Estás a ver? Não estás cá. Tens a lista na tua frente.
— Eu vou... eu vou... no cozido. Com este ambiente acolhedor apetece-me cozido. Que é que queres beber? Mandamos vir uma garrafa de tinto de reserva? Hoje é um dia especial.
Ele disse “um dia especial”? Que será que tem na manga?
O Frederico não resiste a olhar de novo.
Num impulso maquinal os olhos da Ivone visam a mesma direcção. O quê? A lambisgóia já lá não está?! Então para onde é que ele olha? Só pode ser para esta que está com a família. Sim, senhor! Bonito serviço, uma mulher casada, um marido por sinal com muito bom aspecto, uma filha tão linda; resumindo: uma família perfeita. Deve ter sido alguma namorada. Mas ela é muito discreta, nem dá sinal de nada. São as piores.
É que é mesmo tal e qual. O pensamento do Frederico não se consegue descolar daquela madrugada de Outubro de 73; involuntariamente desliza até às profundezas dos dias, semanas, que se lhe seguiram.
— Fred! Acorda!
E o que o Frederico ouve é “Pim!”
Alguns minutos depois: “Pim!”
Com uma regularidade de relógio: “Pim!”
Tentou contar os segundos entre os “pins”. Contou seiscentos e trinta e sete de uma vez. De outra contou seiscentos e quarenta e nove, de outra contou seiscentos e trinta. O barulho da pequena gota de água no fundo do lavatório atinge proporções gigantescas que parece quererem rebentar-lhe as meninges. Nunca soube se a torneira foi deixada assim de propósito. Talvez não, em qualquer caso o melhor era não dizer nada para não dar ideias aos esbirros.
Dantes a PIDE batia a torto e a direito; arrancavam dentes, arrancavam unhas, torciam testículos, apagavam cigarros na pele… Depois foram aprendendo que à dor física é mais fácil resistir. A tortura do sono agora é rainha; ao fim de alguns dias começas a delirar, vês monstros, vês aranhas, chegas a senti-las. Mas este “Pim!” do pingo da torneira mal vedada consegue ultrapassar tudo o que se possa imaginar.
— Fred! Estou a falar contigo! — outra vez o “Pim!”, não sabe quantos segundos se passaram, não contou.
Até o sorriso é igual, e o “Olá!” quando passaram ao seu lado dirigindo-se à saída. Aquele sorriso e aquele “Olá!” daquela manhã em que a PIDE o levava pelas escadas do prédio suburbano ficou-lhe gravado para sempre, e serviu-lhe tantas vezes de âncora nos momentos mais difíceis. Sempre que a dúvida se tentava matreiramente instalar, sempre que tentava assomar a pergunta: ‘Valerá a pena?’, aquele sorriso, aquele “Olá!” estavam presentes a garantir que vale a pena. Que há de mais precioso que as crianças?
Quando tocaram à campainha teve um sobressalto; pegou na Browning, e a primeira espreitadela foi pela janela; não se enganava, estava cercado. Lembrou-se do que o “Velho” dizia sempre na sua voz branda e pausada enquanto cofiava o bigode:
— Nunca se esqueçam de usar a cabeça. Resistir só quando há hipóteses. Uma prisão é só mais uma, uma vida só temos esta e faz muita falta à causa. Aqui estou eu com os meus cinquenta e um e já nem me lembro quantas vezes fui dentro.
Voltou a colocar a Browning debaixo da almofada e foi abrir a porta. Ainda lhe veio à ideia gritar para a vizinhança que o estavam levando, mas as ordens eram só apelar à massa na rua ou em aglomerações, de preferência de operários. Nesses casos poderia até acontecer que tivesse sorte e eles conseguissem dominar a PIDE. Chegou a acontecer, mas de há muitos anos para cá eles já não se deixam cair em situações dessas. Fazê-lo num prédio de habitação só poderia servir para criar problemas aos moradores. Seguiu calado. Foi quando a menina, levada pela mão da mãe, sorriu para ele e disse:
— Olá! — enquanto a mãe a puxava e mandava calar.
Ao olhar da Ivone, sempre atento a todos os movimentos dos olhos do Frederico, não escapou que o motivo do interesse dos olhos dele afinal era a criança. Por esta é que eu não esperava. O caso é mais grave do que eu pensava.
— Fred???!!! — e o “Pim!” quase lhe dilacerou o cérebro.
Olhou para a Ivone e pareceu-lhe ver a cara do pide José Silveiro, louro, sardento, cínico até ao tutano, por má sorte também algarvio. Estás a ver? E apontava com o queixo o retrato do Che colado na parede do seu gabinete, esse era um herói. Tem uma grande qualidade: está morto!, e ria com o seu riso de hiena. Pensas que nós não sabemos que isto não dura muito? Sabemos melhor do que tu, mas enquanto dura somos nós que mandamos. E mudava de repente do riso de hiena para um ataque de furiosa raiva e recomeçava aos murros e pontapés.
Mas ele sabia que a porrada só servia para espicaçar a resistência dos presos. Mandava levarem-no e ficava sozinho, em crise de desespero. Mais um triunfo. Gostava que o “Velho” visse a cara de derrotado do Silveiro.
— Fred! Quero uma explicação! — “Pim!”
— Vou à casa de banho.
— Não te esqueças que quero uma explicação. — “Pim!”
— Não! Fica descansada que não me vou esquecer nunca.
Uma vez no corredor, chamou o empregado, deixou-lhe uma nota que daria para pagar três almoços e saiu para a rua. Pegou no carro e saiu direito ao rio. Estacionou e dirigiu-se à ponte medieval.
Em cima do passeio, apoiado na guarda, tirou do bolso o embrulho, que desfez, e abriu a caixinha; olhou por um bom bocado o anel de noivado que tinha comprado para oferecer à namorada no fim do almoço. Viviam juntos havia ano e meio. Estava, tinha estado, apaixonado por ela até esta tarde, até ao momento em que os seus olhares e interrogatórios de controlo contínuos se misturaram com o “Pim!” do pingo de água da torneira mal vedada e a sua cara com a do Silveiro. Estendeu a mão e deixou cair o anel na água límpida do rio. À medida que o anel percorria os escassos metros que o separavam da água invadiu-o uma leveza só comparável à que tinha sentido no dia 26 de Abril de 74, ao transpor os portões do forte de Caxias.
Mas o que é aquilo?! Um achigã enorme abocanhou o anel antes que este chegasse ao fundo. Não tinha contado com esta. Pensou que o anel iria ficar no fundo entre os limos até que a corrente no inverno o levasse para o mar.
Chegou um pescador, maltrapilho, não o conhecia, mas devia ser pessoa que pescava para equilibrar a vida, a avaliar pela aparência.
— Boa tarde, amigo! — dirigiu-se ao pescador — Vai pescar aqui ao achigã?
— Boa tarde! Venho com essa intenção. Há problema?
— Nenhum, amigo. Mas se me permite dou-lhe um conselho, se apanhar um assim grande — e assinalava com o dedo da mão esquerda sobre o pulso direito e de mão esticada, — não o venda nem dê a ninguém, leve-o para casa e prepare-o com cuidado. — e foi-se embora piscando o olho.
Mais à frente ainda se voltou para trás:
— Não se esqueça, não o venda nem o dê.
O pescador ficou por um bom bocado a vê-lo afastar-se. Isto é que aparece cada maluco!
cuidado com a valeta
Tinha logo de me calhar a mim! A mim, que nunca tive ambições desmedidas. Nunca fui como aquelas pessoas que vivem dependuradas da esperança de que lhes saia o euromilhões. De vez em quando jogo, mas sempre com um intuito na ideia; vocês podem não acreditar, mas se um dia me sair ajudo muita gente. Já pensei em matar uma ou duas vacas, mais uns quantos porcos, leitões, perus, comprar muito peixe fresco, para quem preferir, e fazer um churrasco gigantesco na minha aldeia. Convido toda a gente, os que gostam de mim e os que não gostam, e no fim dou um envelope bem recheado a cada um, todos por igual, assim sem avisar. Dizem que quem dá de mão beijada não ajuda, mas quem sou eu para fazer o julgamento antecipado de como irá cada um gastar o dinheiro?
Confesso que já algumas vezes me passou pela cabeça comprar antes uma arma a cada um dos desempregados todos que puder e eles que façam o que quiserem com ela. Mas isso é quando estou zangado, passa-me depressa. Não acredito na força do ódio. O ódio é breve, o amor é eterno. Conheci alguns que se tornaram revolucionários por ódio, já não resta nenhum. Por outro lado, os que conheço e se tornaram revolucionários por amor restam todos; mesmo que alguns de vez em quando pareça que se vão abaixo, acabam sempre por ultrapassar a fase baixa. Algumas vezes digo que tenho medo de que me saia o euromilhões, porque não vou saber como gerir o dinheiro; e pior ainda, porque daí para a frente já não irei arranjar amigos, todos os que se aproximem pode ser por interesse. A minha família, os meus amigos, os camaradas da oficina são unânimes:
— Tu és mas é parvo, Alberto. Ele que me saia a mim a ver se eu não o sei gastar. Ai não, que não sei! — é o que dizem.
Acho que não deixava o trabalho. A minha vida sempre foi trabalhar, acho que não saberia como passar o tempo. Há dias em que dou o trabalho ao diabo e sou capaz de jurar que se um dia me saísse o prémio nunca mais punha os pés no trabalho. Mas no dia seguinte já me esqueci do que pensei.
A minha Idalina tinha ido passar uns dias à da mãe, que estava adoentada, coisas da idade avançada, já são setenta e dois. Quando vi a chave na televisão conferi três vezes. Não queria acreditar. Ainda fui confirmar os números à internet. Não fiquei aos gritos nem aos saltos como se poderia esperar. Sentia-me a pairar nas nuvens. Confesso que tive medo de que me desse alguma coisinha ruim com a emoção contida e eu ali sozinho. Eu pareço muito expansivo, mas quando a emoção é forte fecha-me. Também sou assim quando morre alguém querido, não consigo extravasar. Não costumo beber sozinho, mas fui abrir uma garrafa de uísque que tenho em casa há mais de vinte anos. Não foi tanto para festejar, foi mais para acalmar, tenho ouvido dizer que é muito bom para o coração. É verdade que caiu cá dentro e levantou-se um calor reconfortante como nunca tinha sentido.
Tive o sangue frio suficiente para não correr a telefonar a toda a gente. Nem à Idalina, porque tive medo de que ela não se contivesse e começasse a espalhar a notícia, pelos pais, pelos filhos, pelas amigas. Tive medo até de que se a notícia se espalhasse alguém me pudesse vir assaltar. Tinha medo até de falar ao telefone no assunto, quem sabe se os telefones não têm escutas? Tinha de esperar até segunda-feira e rumar a Lisboa. Acho que há um número de telefone para nos aconselhar nestes casos, mas na altura nem me lembrei de tal possibilidade. Teria de arranjar uma desculpa para ir a Lisboa sem ninguém desconfiar.
Não preguei olho toda a noite. A cogitar em como iria proteger o dinheiro, congeminei que o melhor seria distribuí-lo por muitas contas em vários bancos diferentes, com isto de nunca se saber qual vai falir a seguir. Valeria a pena trocar por outras moedas? Mas como? Teria de me informar sem dar nas vistas. Tinha ouvido dizer que a maneira mais rentável de investir nestes tempos era comprar dívida pública, porque era a que dava melhores juros e com mais garantias. Até há quem diga que é por isso que há dívida pública, porque é o negócio do momento. Teria de me informar como isso se faz. Às seis e trinta e sete, já a aurora tentava romper, decidi que não me podia fiar em ninguém que viesse com conselhos de como investir.
Convenci a minha mulher de que tinha que ir a Lisboa fazer um acção de formação da oficina. Convenci o patrão de que tinha que ir a Lisboa com a minha sogra a uma consulta. Tinha consciência de que podia ser descoberto, mas não era muito provável, e não me ocorreram desculpas melhores. A cabeça já latejava de ter que tomar tantas decisões em tão pouco tempo.
Decidi ir de comboio. Não estava habituado a conduzir em Lisboa, e achei que com as noites quase sem dormir era mais seguro. Procurei na internet a morada da Santa Casa e algum sítio ali perto que daria como endereço ao taxista para este não desconfiar quando lhe dissesse que queria ir para a Santa Casa. Todo o cuidado é pouco para defender o que é nosso.
Uma vez lá na Santa Casa tudo se revelou mais fácil do que tinha cismado. Havia lá uma equipa de algumas cinco pessoas muito simpáticas e que se apresentaram como estando exclusivamente ao meu serviço para o que fosse necessário. Não entendi muito bem o que eram, acho que uma era psicóloga e um era economista. Todos me inspiraram confiança, reforçada por ter encontrado lá a trabalhar um rapaz que conhecia por ser filho de um casal que tem uma casa ali metida à serra a caminho do Mioto e vêm muitas vezes beber o café e conversar com o pessoal da terra à venda da minha cunhada Lurdes, quando vêm de férias no verão ou mesmo por outras alturas. É gente muito simpática e popular; não sabia que o filho trabalhava na Santa Casa, foi uma surpresa agradável. Tenho alguma convivência com eles e conheço bem o caminho e a casa porque fui algumas vezes por causa dos carros.
Resolvi que iria distribuir o dinheiro entre as quatro famílias, nós e os três filhos. Que cada um resolva como tratar dele. Nunca mais pensei no churrasco nem nos envelopes, afinal dividido pela família toda não era assim tanto dinheiro: só vinte e sete milhões.
Vinha já a atravessar a serra antes de começar a descer para o Mioto quando vi o carro parado e uma senhora a labutar às escuras com a roda e o macaco. Esqueci-me de dizer que tinha comprado um todo‑o‑terreno mesmo antes de a família saber da sorte que nos tinha tocado. Sempre desejei ter um todo‑o‑terreno, e entendi que merecia este prémio. Estava uma noite de chuva cerrada na serra e nem hesitei em parar para ajudar.
Só me lembro de ter acordado com o todo‑o‑terreno a circular acelerado pelas curvas da serra. Eu ia no banco de trás, com os olhos vendados e as mãos amarradas uma à outra. Tentei mexer-me e fui agarrado por braços fortes de ambos os lados. Todos em silêncio. Andámos muito tempo a circular pela serra, mais de uma hora, muito mais. Pela estrada alcatroada e por caminhos de terra.
Eu conheço a serra como as minhas mãos e a dada altura consegui localizar por onde íamos e notar que passámos várias vezes pelos mesmos sítios. Não disse nada, achei mais prudente. Quando íamos no caminho direito à casa do tal casal de que falei lá atrás fez-se-me luz. O motivo do rapto revelou-se-me claro. Como tinha podido ser tão ingénuo? Só me apetecia esbofetear-me. Mantive-me calado, achei mais seguro. Agora já sabia o motivo. O que iriam fazer? Iriam pedir resgate? Mas a quem, se a minha família nem ainda sabia de nada?
Foi quando percebi que o carro ia demasiado depressa para passar a valeta que eu sabia existir a menos de vinte metros. O cuidado com a minha pélvis, que fracturei há uns anos num acidente de mota, soou mais alto que o medo, e gritei em desespero:
— Cuidado com a valeta!
— E agora o que fazemos? — perguntou o do lugar do pendura com a voz a tremer, momentos depois de saltarmos com violência na valeta.
Começaram a discutir o que fazer comigo como se eu ali não estivesse. Agora que eu sabia onde estava, porque aquele caminho não ia para mais parte nenhuma; e que eles sabiam que eu sabia; e que eles já falavam abertamente sem disfarçar as vozes: presumi que tinha fortes razões para ter medo, muito medo.
Só vi o clarão, mesmo através da venda, seguido pelo enorme estrondo.
— Quando é que vão acabar com isto? Malditos festejos bárbaros! — gritei eu todo a tremer quando percebi que o estrondo do morteiro a inaugurar a festa dos Santos me tinha acordado.
Devo ter gritado bem alto porque a minha Idalina, que já estava na cozinha a fritar as fatias de ovos na enxúndia de galinha, e nem reparou no morteiro, veio ao quarto a correr ver o que se passava.
forças da natureza
Sinto-me mal, até tenho medo de que me possa dar alguma coisa má. Agora dava muito jeito que a minha mulher conduzisse, passava-lhe já o volante para as mãos. Mas ela nunca mais conduziu desde que tirou a carta, já lá vão, já lá vão uns quinze anos?
— Dezassete, Aurélio!
— Dezassete?! Como o tempo passa!
E com este escuro então nem pensar.
Há cinco anos que não punha os pés na casa do meu irmão. Nem estava com vontade nenhuma de lá ir, já sei que a conversa acaba sempre por descambar. Mas podia lá faltar ao baptizado! Afinal é meu irmão, e só tenho aquele. E é o seu primeiro neto.
Mas porque é que ele tem sempre de me fazer irritar? Não basta os azares da vida senão ele ainda me vem tornar as culpas.
Há mais de quinze anos que cá estou; pois claro, a Isaura já tirou cá a carta e ela diz que há dezassete que a tirou. E nunca a água tinha chegado sequer à rua do armazém.
Agora, vem de lá em mazarulho, arromba a porta de cima, abre o portão de baixo, e leva-me mais de duzentos contos em adubo e farinhas de ração. Para alimentar os peixinhos do mar e adubar as terras dos outros à borla? E vá lá que nessa noite tinha deixado a carrinha cá em cima na rua do café, só porque tinha ido levar uns sacos de farinha ao Inácio Matias e quando voltei já não tive vontade de ir guardá-la lá em baixo.
Uma pessoa queixa-se e o apoio que recebe do seu próprio sangue é:
— Quem te mandou fazer o armazém dentro da ribeira?
E ainda continua a remexer na ferida:
— Porque é que não tens as coisas no seguro?
Como se ele não soubesse que não posso fazer seguro porque estes ladrões não me dão a licença para o comércio do adubo e das farinhas. O armazém está como construção agrícola, senão como é que eu o ia conseguir legalizar? E onde é que eu ia guardar a mercadoria?
Mas quando ele me tirou mesmo do sério foi quando foi comparar a cheia com o que se passou lá com a África. O que é que uma coisa tem a ver com a outra?!
— Ó Aurélio, com essa de achares que a ribeira nunca havia de encher só porque nunca a tinhas visto cheia, fazes-me lembrar quando vocês tiveram que vir a toque de caixa lá da África. Só porque nunca tinham vindo não queria dizer que mais tarde ou mais cedo não tivessem que vir.
O meu irmão devia ter mais respeito. Sabe lá ele o que custa sermos roubados, depenados de tudo o que se acareou, tantas vezes com suor e lágrimas.
Foram tempos muito difíceis. Depenadinhos, completamente depenadinhos. Sabe lá o meu irmão o que isso é.
E mal recebidos cá. Ainda me lembro bem da maneira como todos nos olhavam quando viam passar o Anglia com o ZO na placa de matrícula. E a maneira como a minha mulher foi mal recebida na secretaria da escola. Falavam entre elas e quando ela entrava calavam-se. Foi muito duro para ela. Tratavam-nos como se fôssemos bichos raros. Não nos diziam na cara: “Vai-te embora retornado!”, mas sentíamos que era isso que pensavam.
— Deixa-te dessas lamúrias. — disse-me ele uma vez. — Este país foi capaz de recebê-los cá todos. Um país tão pequenino e cheio de dificuldades, mas couberam cá todos, não couberam?
Calei-me. De que adianta discutir com gente ignorante, gente que nunca daqui saiu, gente que não alargou horizontes, gente que vive aqui acomodada. Em nome dos laços de sangue, é o meu único irmão, calei-me. Mas se não tivesse sido o senhor Matos a fazer força lá em cima, nem a minha mulher tinha sido promovida a chefe da secretaria, nem eu tinha conseguido aquele lugar de chofer que tanto jeito me deu para a reforma. O senhor Matos estava sempre disposto a dar uma mãozinha. Ele dizia sempre: “Temos que ser uns para os outros!” Uma jóia de pessoa. Já lá está, mas não é por isso que digo isto. Nem por sermos compadres. É verdade que também o ajudámos muito naquela altura difícil.
— Compadre Aurélio, isto está muito difícil para mim. A mim têm-me debaixo de olho, mas a vocês ninguém vai revistar as bagagens. Preciso que me levem umas encomendas disfarçadas no meio das roupas. São três saquinhos pequenos, ponham um em cada mala, depois lá na metrópole logo mos dão.
Mais tarde vim a saber que eram umas pedrinhas muito valiosas, nem me atrevo a dizer o nome. Fosse como fosse, ele nunca nos falhou, alguma coisa corria mal, ia ali ao telefone e ele dava sempre um jeito lá em cima.
Quando comprei aqui o café e o terreno, pensei cá para mim que o negócio do adubo e das farinhas também devia dar. Tentei legalizar tudo, mas aí já ele tinha perdido alguma influência. Mesmo assim, em boa parte estou convencido que era por ele que fechavam os olhos.
O senhor Matos foi a pessoa com mais olho que já vi em toda a minha vida. Ele era polícia lá em Angola, não era dos que andavam fardados.
— Era da polícia internacional, Aurélio.
— Então, e eu não sei, mulher?
Ele sabia que já havia alguma tramóia, por isso é que se preveniu com as pedras.
Um dia, estávamos num churrasco, no jardim dele, e disse-me:
— Compadre Aurélio, isto não dura muito, temos que nos preparar. Isto é como as forças da natureza. — nunca mais me esqueci. O homem era um poço de sabedoria.
o ciúme
A mulher foi entrando. Um vulto, parecendo sair de uma daquelas lengalengas antigas que se contavam à lareira antes de ter sido inventada a telefonia, quanto mais a televisão. Toda ela era preto, menos a cara e as mãos, que eram um pouco mais claras. Pele curtida por muitos sóis e muitos ventos. Olhos inexpressivos.
Só deram por ela quando se fez escuro na cozinha devido à sua sombra.
— Quer ler a sina, senhora?
— Não! Aqui ninguém precisa de ler sinas. — atalha, brusco, o Teodoro.
Foi um erro fatal, a Lucrécia apurou as antenas:
— Não quer? Quem é que disse que não quer?
A cigana divisou de imediato a oportunidade:
— Sinto que há traição nesta casa.
Dizem que os moribundos lhes passa o filme da vida pela frente antes da morte. Pois não será só aos moribundos. Pela frente do Teodoro, nos breves segundos que se seguiram, passou um filme de pesadelo.
Uma cena:
— Pensas que eu sou cega? Que não vi a maneira como vocês trocavam olhares?
O Teodoro até tremia quando ela convidava amigas para ir lá a casa.
Outra cena:
Ela deitada no chão, a deixar-se cair quando ele a levantava, e ele, parvo, a falar com a senhora do 115. Esta devia estar habituada a casos com os mesmos contornos, pois não se comoveu nada.
— Dê-lhe tempo que ela vai acalmar, vai ver...
Outra:
— Porque é que a foste beijar?
— Era só o que me faltava agora não poder cumprimentar uma amiga de infância.
Ainda outra:
— Tinhas que lhe dar passagem?
— Estás esquecida que quando viemos dali também dependemos de nos darem passagem, senão nunca mais entramos?
— Pois, engana-me que eu gosto.
E mais umas quantas:
— Não foste simpático com a minha amiga? Deves ter alguma coisa para esconder.
— Tantas simpatias com a minha amiga? Até parece que és um homem sem compromisso.
— Que pouca vergonha, nem os maridos respeitam, mesmo na frente do marido a fazer-te olhinhos.
— Porque é que tens que olhar as mulheres nos olhos? Que pouca vergonha!
E ainda:
— Porque é que ias pela rua abaixo sempre a olhar para trás?
— Para ver se já vinhas aí e vires comigo ao pé do rio comer um gelado. E como é que sabias que eu ia a olhar para trás. Onde estavas?
— Estava atrás da montra da Clarisse...
— Bonito! Agora já tens ciúmes até de ti própria?
E para culminar:
— Que é isto?!
— Isto o quê, Lucrécia?
— Não te faças de parvo! — e mostrava um saquinho de plástico apanhado do tapete do carro. — Ainda não sabes o que é? — e já gritava.
— Pois não, não sei o que é. Deve ser a embalagem de algum retentor ou coisa do género que o mecânico deixou esquecida durante a revisão. Deixa ver melhor.
— Não deixo nada! Demais sabes tu o que é. Queres atirar-me areia para os olhos?
O Teodoro calou-se.
Ela tinha acabado de chegar da casa da mãe. Quinze dias fora. Foi buscá-la à estação. Ainda antes de pôr os pés em casa já recomeçava a guerra.
— Então? Agora calas-te? Acho melhor, sabes bem que tenho razão...
Voltando à cigana:
— Eu posso fazer uma magia para acabar com todas as traições no casal. — a cigana toma o comando. — Custa é dinheiro.
E lá vamos nós. A ver se a Lucrécia não se lembra dos quarenta contos da venda da mota, quase que rezava o Teodoro. Sabia que não podia recusar, senão para ela seria a prova da traição. Traição que só existia na cabeça da mulher, mas que estava firme de pedra e cal.
— Só temos duzentos escudos.
A cigana espiou a indignação nos olhos da Lucrécia.
— Isso não é nada. Assim vou-me embora. Não faço aqui falta.
— Espere! O meu marido vendeu a mota que era do pai e ele não usava.
E foi buscar os quarenta contos...
a morte de porco
O que eu mais gosto no dia da morte de porco é quando vou levar uns pedacinhos de carne fresca aos vizinhos. Não sei, lembro-me de quando somos nós a receber. No dia da morte de porco, e nos dias a seguir, até as chouriças estarem enxutas, bem como me enjoa a carne, aquele cheiro que está por todo o lado. Mas quando já passou esse cheiro e somos nós quem recebe, ui!, como sabe bem!
A parte do porco de que mais gosto é o presunto. Em fresco é da cachola. Da cachola e do sangue, quando fica com muitos buraquinhos. Os bofes não consigo comer, acho mole, parece borracha. O rim bem como me amarga. Os torresmos só consigo comê-los dois ou três dias depois de fritos, e quando ficam muito torrados também não aprecio. O meu pai gosta muito dos de riçol, lá em casa só ele gosta. A mim bem como me sabem a tripas.
Levantei-me muito cedo, ainda de noite. Gosto de ver o meu pai acender o lume para dar fogo aos tojos. Os homens foram chegando ainda não se via. Foram-se juntando à volta do lume. Esfregam as mãos e passam-nas de vez em quando por cima das lavaredas.
— Moços, aqueçam bem as mãos antes de pegar no bicho, que com esta geada qualquer descuido faz logo um arrepelão na pele. — avisava o meu pai.
O senhor Aldemiro foi o último a chegar. Ele mora no Vale, de lá aqui a Santana da Charneca, pela estrada nova, ainda são bem uns quatro quilómetros. Veio na bicicleta a motor, uma Zündapp de três. Foi encostá-la à parede do eirado da cisterna e eu fui atrás para a ver bem.
— Jaime, tem que se ter muito cuidado com as faúlhas. Aqui já fica à abrigada. Quando o teu pai te comprar uma mota já sabes que gasolina e fogo não se dão bem. Sempre lá longe. — ele gosta muito de se meter comigo, e eu gosto muito dele. Ele diz coisas que mais ninguém diz, e gosta de me ensinar, mesmo na brincadeira ensina.
Ele esteve na tropa com o meu pai. É guarda-rios, mas não usa farda, anda sempre vestido como os outros homens. Nem sei o que é que ele guarda, a ribeira precisa de ser guardada? Um dia destes pergunto-lhe.
Desatou uma saca de serapilheira daquelas que usam para ensacar as alfarrobas, e trazia atada com um baraço ao lado do selim da bicicleta, e foi ter com os outros ao pé do fogo. Fiquei a ver a bicicleta, mas o meu pai chamou-me logo.
— Jaime, traz lá a garrafa e o prato dos bolos.
Lá fui eu à cozinha buscar a garrafa da aguardente e um copinho pequenino, e um prato com bocadinhos de costa de rolão, que a minha mãe fez ontem junto à cozedura.
Quando eu era pequeno não conseguia comer o pão mole, enrolava-se-me na boca e não o conseguia engolir, só uns dois dias depois. Uma vez a minha mãe descuidou-se e deixou a massa muito tempo a levedar, essa cozedura custámos a comê-la, ninguém gostava nem do cheiro. Na costa de rolão a minha mãe põe um tiquinho de açúcar, muito pouco, mas se não ficar bem cozida também não a consigo comer.
O senhor Aldemiro desembrulhou as facas que trazia na saca e pôs-se a experimentá-las. Primeiro desembainha de um invólucro de cortiça uma comprida e pontiaguda. Experimenta a ponta e os dois gumes, passando a palma da mão e uma unha. Depois desata as outras duas, que vinham atadas uma à outra, ambas com os gumes enterrados num bocado de cortiça, uma de um lado e a outra do outro, e que ele diz que foram feitas de facas de corticeiro. Uma maior, que vai servir para talhar a papada, os toucinhos, as barrigas, os presuntos e as manetas, e a outra mais pequena para abrir, desmanchar, descarnar, etc. Experimenta os gumes de ambas. Tira da saca uma pedra de areia vermelha e dá um afiamento fino a cada uma.
— Aldemiro, não matas o bicho?
— Foi para isso que cá vim. — e ri-se com o trocadilho.
— Deixa-te de piadas. — o meu pai também ri.
— Venha de lá o copo.
Bebe a aguardente de um sorvo e recusa o prato da costa.
O meu pai abre a porta do pocilgo e chama o porco, que não vem.
— Dez arrobas. — palpita o Constantino.
— Eu aposto nove. — discorda o Aldemiro. — E tu, Pedro, quantas achas?
— Eu queria que ele fosse às dez, mas o sacana amarroou. Debotou os figos, esteve aí quase uma semana a perder peso. Talvez umas nove e meia.
E assim continuaram com os palpites enquanto o cevão não se decidia a deixar a pensão.
Há porcos que saem bem, mas há outros que são uma carga de trabalhos para sair. Este não parecia para aí virado. O meu pai foi dentro do pocilgo com uma varinha de trovisco.
— Não lhe batas com força senão ficam os vergões no presunto. Dá-lhe só uma pancadinha e dá-lhe um grito assim de repente.
Agarraram-no cá fora e atiraram-no ao chão. O senhor Aldemiro atou-lhe um baraço ao focinho para evitar que ele mordesse. E levaram-no em peso, segurando pelas pernas, para cima da salgadeira de madeira, que, emborcada ao contrário, servia de bancada.
— Jaime, vai dizer à tua mãe para trazer os tachos para aparar o sangue! Tu gostas de sangue, sacana!
A minha mãe traz os dois tachos. Um com vinagre para não coalhar, que é para as chouriças. O outro é para cozer para o almoço.
— Vizinha Almerinda, pegue aqui neste para as chouriças, que eu pego no outro.
— Está bem, quando chegar diga.
— Já chega para as chouriças. Vá, que eu ponho este.
— Mexe bem, Olinda, para não ficar encortiçado.
— Mexa bem, mãe! — atrevi-me eu.
— Já a formiga tem catarro? — e riram-se todos. — Eu sei muito bem, o sangue para cozer tem que ser bem mexido, para ficar com buraquinhos.
Confesso que não entendi aquela da formiga tem catarro, mas agora não é altura de perguntar.
— Vamos deitá-lo para chamuscar. Vá, upa! — e tiram o porco a peso de cima da bancada improvisada e estendem-no no chão, para chamuscar.
O meu pai vai pegando nos tojos com a forquilha, passa-os pelo lume, e vai passando o fogo sobre o porco, enquanto o Chico Joina vai raspando a pele com a parte mais áspera de um bocado de cortiça e o senhor Aldemiro com uma faca nas partes mais difíceis.
— Acala bem aqui nas unhas da frente, Pedro! — quando acha que já é suficiente manda o meu pai afastar o tojo e torce cada uma das unhas à mão até ela descolar.
— Faça bem a barba da sua papada, Chico! — o senhor Aldemiro fazia sempre estes trocadilhos. Era a sua papada, as suas orelhas, as suas patas.
— Pedro, vê lá se queres mais fogo. Tu é que sabes como é que queres. — e o meu pai vem dar mais um pouco de fogo sobre a pele dos presuntos, do toucinho, da papada, das manetas, ele é que decide quando acha que é suficiente.
Quando o meu pai achou que já estava bem chamuscado levantaram-no a peso para o pôr outra vez em cima da salgadeira e começaram a lavagem. Aí já me calhou a mim ajudar. O meu pai mergulhou o bombinho todo na cisterna, depois tapou a ponta com um rolha de cortiça, puxou a ponta do bombinho até junto do porco, tirou a rolha e a água subia da cisterna pelo tubo e escorria.
— Vá, Jaime, faz alguma coisa para ganhares o almoço. Tapa aqui a ponta com o dedo para não estares sempre a pôr e a tirar a rolha e à medida que te pedirem vai deitando água.
Fiquei todo concho com o meu trabalho. Era a primeira vez que o meu pai me confiava aquela tarefa. De vez em quando a minha mãe ou a vizinha Almerinda vinham com um tacho para encher do bombinho.
Quando o meu pai deu por terminada a lavação, pegou ele no bombinho e lavou muito bem as tábuas da salgadeira, enrolhou o bombinho, e disse-me que já não era preciso mais água. Senti-me um bocadinho diminuído no meu orgulho, pois eu sabia muito bem que já não era preciso mais água. Nunca tinha feito aquilo mas todos os anos via fazerem. Normalmente era o Chico Joina que fazia, era trabalho de homem.
Puseram uns bocados de tijolo de cada lado do porco para este se manter de costas, e o senhor Aldemiro começou a abri-lo. Começou por marcar um ponto no peito do porco com a faca de matar. Depois, de uma vez só, com a outra faca, abriu um golpe não muito profundo até à veia da urina, depois outro até ao fim da barriga. A seguir abriu outro do peito para a frente.
— Senhor Aldemiro, este ano gostava de experimentar a desmanchar a parte da frente.
— Ó, Chico, pois está bem, mas primeiro deixa-me fazer a moela.
Quando o senhor Aldemiro cortou o véu que deixa as tripas à mostra eu tive que me afastar, não é por nada, é que não aguento o cheiro. Fui ver a Zündapp, estive lá um bom bocado, só voltei quando eles já estavam a talhar os presuntos e as manetas, com o meu pai a dar o risco. O meu pai é muito cioso com os presuntos e as manetas.
Já sabia que a minha mãe me ia mandar levar uns bocadinhos de carne àquelas vizinhas de sempre, entretive-me a brincar com o borralho que tinha sobrado da fogueira. Peguei na varinha de trovisco que o meu pai tinha cortado para açoitar o porco e comecei a bater com ela nas brasas. Saltavam faúlhas, parecia os fogos que faziam na altura da festa das azinheiras. Tanto bati, que uma brasa saltou-me para dentro da bota esquerda. Agarrou-se ao peúgo de nylon de tal maneira que, enquanto não consegui descalçar a bota, queimou-me que até vi estrelas. E não queria era que ninguém desse por isso.
Andava com todo o cuidado para não notarem que eu coxeava, de cada vez que a queimadura roçava no peúgo doía que se fartava. Como vi a vizinha Almerinda uma vez pôr azeite numa queimadura, fui à casa de despejo, pus-me em cima duma cadeira para alcançar o pote, tirei o púcaro com cuidado e pus azeite. Melhorou, mas mesmo assim doía muito.
Quando acabaram de desmanchar o porco ainda era cedo para o almoço. Costumava ser nesta altura que a minha mãe me mandava ir levar os taleigos com as tigelas de carne à vizinhança. Embora eu estivesse desejando que ela não me mandasse, porque a queimadura ainda me doía muito, como sabia que não havia maneira de me escapar, resolvi ir perguntar-lhe se os taleigos já estavam prontos.
— Hoje quem vai é a Carolina! — até pensei que fosse milagre de Deus, embora eu não fosse muito de rezas.
Para disfarçar ainda protestei:
— Mas a Carolina ainda é pequena, ela não pode com os taleigos.
E ela:
— De pequenino é que se torce o pepino. Ela já tem seis anos. Não leva tudo de uma vez leva em duas ou três.
Mas o pior estava para vir:
— Para ti tenho outro frete. — fiquei com receio. — Lembras-te daquela senhora que no verão passado ofereceu a vez à mãe na pedra do lavadouro? — aqui fiquei mesmo aflito.
— Já sei. A senhora Henriqueta. A mãe do Carlos.
— Essa mesmo. Sabes ir ter à casa dela?
Tive vontade de dizer que não, mas a casa era tão fácil de encontrar. A vereda que nós levávamos quando a minha mãe ia lavar à ribeira passava mesmo na rua dela. Resolvi aguentar firme.
— Depois do almoço vais lá levar-lhe um taleigo que eu ainda vou arranjar.
E eu timidamente:
— E sabe-se lá se está alguém em casa?
E ela implacável:
— Está lá sempre alguém, se não estiver ela está a velhota, a sogra, que essa nunca de lá sai.
Foi o meu pior almoço de morte de porco. O pé doía. Por breves momentos ainda me passou pela cabeça dizer-lhe, ela, se calhar, nem me batia, mas eu sou muito orgulhoso.
A dor no pé a pouco e pouco foi adormecendo, não sei se foi do azeite. Eles a comerem todos animados e eu a comer calado, sem apetite.
— Jaiminho, estás tão calado, homem, estás doente ou estás a pensar na namorada? — o senhor Aldemiro sempre a meter-se comigo. Fingi que me ria.
Depois, à medida que a dor no pé ia amainando, fui-me lembrando das coisas que às vezes ouvia eles contarem quando se ficava à noite ao pé do fogo. Do tempo da guerra, em que uma sardinha dava para três. Dos meses e meses a comer papas de milho. Das idas à ceifa ao Alentejo, em que ceifavam de sol a sol e comiam sopas ao almoço e ao jantar.
O meu orgulho de homem foi crescendo, à medida que amornecia a dor no pé.
Quando a minha mãe me deu o taleigo peguei na mota, que era uma cana que eu pegava com uma mão numa ponta e a outra na outra a fingir de guiador de bicicleta a motor. Até tinha um punho que rodava para acelerar, e as manetes como se fossem o travão e a embraiagem. Segurei o taleigo junto ao punho esquerdo para deixar a mão direita livre para acelerar e saí correndo pela vereda abaixo, a meter mudanças com o barulho que fazia a imitar o motor. Direito ao barranco das Tabuas, donde havia de subir em ziguezague até à altura donde já se havia de avistar a ribeira do Gralho lá ao longe entre os canaviais e a casa da senhora Henriqueta uns trezentos metros mais acima.
— Tem cuidado! Não partas a tigela! — ainda ouvi a minha mãe gritar. Mas já não lhe respondi.
a olinda vai lavar à ribeira
Ainda o sol não tinha cruzado a linha do horizonte e já a Olinda tinha descido até ao barranco das Tabuas, já tinha vencido os ziguezagues da ladeira abrupta até à altura e já divisa a ribeira do Gralho lá ao fundo, ondulando em melodiosas curvas por entre os canaviais. Palmilha agora a vereda por entre as carrasqueiras com a barreleira da roupa à cabeça, a Carolina pela mão e o Jaime saltitando à sua roda e tentando apanhar lagartixas. Agora já é sempre em descida doce até ao pego da Bruxa, onde há o melhor lavadoiro, quer em água limpa, quer em cascalho e tramagueiras para estender a roupa.
— Bom dia, tia Leonor! Ainda bem que a encontro aqui.
— Bom dia, Olinda. Já, tão cedo!
— Mecê também veio cedo. A ver se ainda apanho uma pedra boa.
— Tens razão. Se uma pessoa não vai cedo, chega lá e já só há aquelas pedras bicudas e coxas. Eu vim aproveitar a brandura. A esta hora os picos ainda estão macios.
— É verdade, tia Leonor. Eu ainda não comecei com as minhas. Este ano há muita farroba. O meu Pedro é que não tem tido vagar de varejar.
— Então, e porque não trouxeste o burro? Vinhas mais descansada e à volta aproveitavas para trazer uma carga de água.
— Pois era bom, tia Leonor. E qualquer dia não posso com a barriga. — e ri — Mas ele teve que ir à vila buscar farinha para cozer panito para estas encomendas. — e passa a mão livre pelo cabelo do miúdo. — Bem, temos que ir andando, senão não adiantou nada levantar primeiro que a cama. E já deixei os grãos cozidos...
— Mas disseste que ainda bem que me encontraste aqui. O que era?
— É verdade. Que cabeça a minha, já me esquecia outra vez. Mecê sabe onde é que há tomates do inferno?
— Onde é que tu andas com a cabeça, rapariga? Não tens lá à porta com fartura?
— É verdade, tia Leonor, mas esqueci-me. Só me lembrei ali atrás. E ainda por cima hoje, que só trago roupa branca.
— Estás com sorte, que sei onde há uma tomateira grande e não te fica muito longe da vereda.
Na força da canícula todas se levantam cedo, quer para apanhar as melhores pedras, quer para aproveitar o fresco da manhã. Quando há orvalho é um regalo estar junto aos canaviais durante a manhã. A água fica retida entre as folhas das canas, junto dos nós é onde se conserva por mais tempo a humidade, depois qualquer pequena aragem vai fazendo evaporar as gotículas devagar e refrescando o ar em redor. É frequente já depois da uma da tarde ainda se sentir o fresco. Mas quando não há humidade nem bafo de vento, mesmo junto à ribeira não se pode estar. O sol de Agosto queima; os chapéus de palha é que tapam a cabeça, senão fritava-nos os miolos. Lá para Setembro ainda é pior; o sol já não é tão forte, mas corta mais baixo, apanha os corpos de lado e até faz ferver o sangue.
A Olinda não teve dificuldade para encontrar os tomates do inferno que a tia Leonor lhe ensinou. Se não fosse os tomates do inferno quem é que conseguia desencardir a roupa branca? Mas sempre perdeu mais um bocado no desvio.
A esta hora já vou encontrar as melhores pedras ocupadas. As do Vale é que têm sorte, com a ribeira ao pé da porta. A ribeira, os poços, a mina, quem me dera. Nem a terra aqui é tão ruim. A terra da charneca quando não é lama que não larga o calçado nem à porrada, é poeira ruiva que entra por todo o lado. Até à cama se vai meter com a gente entre os lençóis. E deixa tudo encardido. Assim que se passa ali da chã até a terra é doutra cor. Maldita sorte!
— Lá vem aquela charnequeira! Já está outra vez prenha. Qualquer dia tem um rebanho. Sempre quero ver onde é que ela vai lavar agora. Para ajeitar as pedras não têm amaranhos, mas para arranjar moços já têm.
— Não sejas má-língua, Ermelinda! Cada uma é como é. Mas é verdade, elas vêm sempre à espera que a gente amanhe as pedras.
— O que umas têm de mais têm as outras de menos, vizinha Carminda. — e suspira.
— Mas ela também não tem a culpa de que tu não tenhas filhos.
A Henriqueta olhou para as vizinhas, não disse nada. Realmente ouve-se cada uma. Quem as ouvisse até podia pensar que elas ajeitavam alguma pedra. É que nem uma nem a outra. Se não fosse eu, a minha sogra e a vizinha Maria dos Anjos, sempre gostava de saber onde é que elas lavavam.
A Olinda bem tentava ajeitar a pedra e com a ajuda do Jaime. Mas a pedra não obedecia. Iam buscar seixos maiorzinhos para a calçar, mas estes escorregavam. Não chorava, só por vergonha. A Ermelinda escondia o riso.
— Deixe lá a pedra, senhora. Nem eu dei conta dela, não vai ser você agora que vai dar. Venha aqui para a minha que eu já estava mesmo de abalada. Ainda tenho que ir à venda comprar petróleo, já me esquecia.
— Mas mecê ainda tem aí tanta roupa para lavar.
— Deixe lá! Amanhã também é dia. Eu moro aqui perto e você vem de lá de tão longe, nem eu sei donde.
— Nem sei como lhe agradecer. — e tenta esconder a lágrima que lhe assoma ao canto do olho.
— Não agradeça, senhora. Temos que ser uns para os outros. Foi assim que me ensinaram lá na minha terra. Por aqui parece que não se usa muito. — e a Henriqueta olhava de lado para as vizinhas — Mas foi assim que aprendi.
E antes de se ir embora ainda diz:
— Quando precisar de alguma coisa bata à porta daquela casa que fica mesmo ao pé da vereda que vem da charneca, além à chã. Se não estiver eu está a minha sogra.
O lavadouro cala-se por alguns instantes.
— A alentejana é muito soberba, não acha, vizinha Carminda?
Regressa o silêncio, agora carrancudo. E demora-se, sublinhado pela retoiça dos gaiatos.
— Agora vamos comer enquanto a roupa acaba de enxugar. A ver se temos força para a ladeira. — e a Olinda olha embevecida para os seus rebentos. Está de coração cheio.
Mastigam devagar e em silêncio o pão cortado aos bocadinhos acompanhado do toucinho salgado.
— Mãe, tenho sede!
— Andem comigo, vamos ali todos beber água limpinha.
E meteu as mãos com o lenço em concha na água.
— Quando precisares de beber na ribeira escolhe sempre o corrente, do lado de cima dos lavadouros para não apanhar o sabão nem a porcaria, e mete o lenço para não passarem as sanguessugas.
— O que é as sanguessugas, mãe?
— São uns bichinhos que há na água da ribeira e se agarram às tripas. Tens que ter muito cuidado.
o empresário
Não entendo o que esta gente quer. Uma pessoa trabalha, trabalha, e quando vai para a cama vai a pensar como é que amanhã vai conseguir pagar aos colaboradores. E eles vão-se embora para casa dormir descansados sem preocupações. E depois o que se recebe é ingratidão.
A minha mãe diz-me para ter calma. Que os trabalhadores, se andarem satisfeitos, trabalham mais e melhor. Eu até acredito nisso, não pensem que sou um mau empregador. Nada disso! Mas há dias em que perco a paciência.
No tempo em que a minha mãe abriu o restaurante acho que era mais fácil, sei lá, acho que as pessoas tinham mais respeito, eram mais agradecidas. Lembro-me bem da dona Gracinha, sempre metida na cozinha, às voltas com os tachos, as panelas, as frigideiras. Quando eu era pequeno, vinha do jardim-escola e a minha mãe tinha que servir às mesas, aí eu ficava a brincar na parte de dentro do balcão. A dona Gracinha ficava com um olho nos tachos e outro em mim.
Uma vez apanhei-a distraída um bocadinho, quis ver o que estava num alguidar em cima da mesa e cheirava tão bem. O alguidar escorregou, não tive força para o segurar, caiu no chão e partiu-se. Além de se partir espalhou a lebre em vinha-d’alhos pelo chão. Uma lebre que, soube depois, era para um grupo de empregados do banco que tinham mesa reservada para a noite. Acho que um deles fazia anos. A minha mãe apanhou aquilo tudo do chão, limpou o chão, e atirou tudo para o lixo. A minha mãe era daquelas pessoas antigas. Nesse tempo ainda não havia a malfadada ASAE, nunca entendi porque é que ela não aproveitou a lebre, depois de bem lavadinha alguém ia notar alguma coisa? Não me lembro como é que ela fez para resolver o jantar dos bancários, porque até tenho uma vaga ideia de que a lebre tinham eles trazido.
A dona Gracinha desfazia-se em desculpas por não ter tomado conta de mim como deve ser. Até chorou. E a minha mãe deu-me umas chineladas, a mim!, que era pequenino e irresponsável.
O meu pai trabalhou na Lisnave. Quando recebeu a indemnização venderam a casa da Cova da Piedade e viemos para baixo. Acho que ele recebeu uma indemnização boa, não por me lembrar, mas porque tenho ouvido dizer que nessa altura o estado assumiu as indemnizações às pessoas despedidas, o que acho muito bem. Eu era muito pequenino, tenho poucas lembranças desses tempos. Depois veio o divórcio. Quando abriram o restaurante acho que já as coisas corriam mal entre eles. Ele depois saiu de casa para se juntar com a actual mulher, que também tinha, e tem, um restaurante, mas em Almadrava, mesmo à beira-mar. No Verão dá muito.
Acho que a dona Gracinha trabalhou no nosso restaurante desde o início. Desde que me lembro eram as duas: ela na cozinha, que ficava na parte de dentro do balcão e a minha mãe nas mesas, e quando podia dava-lhe uma ajuda na cozinha e no serviço de copa que era tudo junto.
Depois a casa foi ganhando clientes, a dona Gracinha cozinhava muito bem, foram admitindo mais colaboradoras, nesse tempo diziam empregadas, e tiveram que aumentar a cozinha. Por sorte o dono da mercearia ao lado vendeu-a à minha mãe, aquilo também estava sempre às moscas. As grandes superfícies rebentaram com tudo o que era pequeno comércio. Para nós até deu jeito. Juntaram as duas casas e é assim que está até hoje. A casa está muito bem situada, perto dos bancos, da câmara municipal, das finanças e do tribunal. O nosso serviço de almoços é mais virado para essas pessoas. À noite trabalhamos com outro tipo de clientes, menos refeições, mas mais caras. Não temos parque de estacionamento mas também não sentimos a falta.
Quando a minha mãe teve o AVC, que não a matou, mas a deixou com sérias dificuldades quer nos movimentos dos membros do lado direito, quer na fala, eu como filho único, deixei o meu emprego nas finanças, pedi uma licença sem vencimento e dediquei-me a tomar conta do restaurante.
Comecei a fazer contas e tive que despedir duas colaboradoras. A minha mãe não tinha mão nelas. Aquilo era chegar à hora e iam-se embora sem dizer água vai, não importava que faltasse limpar a casa, arrumar tudo, preparar as coisas para o dia seguinte. Não, era ala que se faz tarde. E tive que ser eu a pagar as indemnizações, porque o tribunal de trabalho me obrigou. Como é que querem que o país vá para a frente? Uma pessoa paga os nossos impostos, paga a segurança social, paga seguros, paga tudo e não sobra nada.
É uma roubalheira, este estado. Imaginem que pago de IMI da minha vivenda mais de mil euros. Não sei o que eles fazem ao dinheiro. Ainda nem consegui pagar o Mercedes 300, é um sufoco constante.
Mas o que mais irrita é uma pessoa arranjar-lhes trabalho e depois ainda parece que nós é que lhes devemos. Imaginem que agora deram-lhes para pedir aumento. Ora, eu já pago acima do ordenado mínimo, seiscentos euros cada uma, a cozinheira é que leva setecentos, mas é uma excelente cozinheira. Imaginem que até a pindérica que vem do IEFP como estagiária acha que tem direito a aumento.
Desde há seis anos, quando tomei conta do restaurante, costumo ter cá sempre uma pessoa que vem do IEFP, e já passaram cá por casa pessoas muito capazes. Mas como esta nunca tinha acontecido. Ainda hoje vou ao IEFP e devolvo-a, ai isso é que devolvo.
a senhora aurora
Não gosto nada de ouvir as pessoas dizerem dona Maria, dona Guilhermina, dona Albertina. E quando dizem dona Aurora então chega-me a mostarda ao nariz. Eu não sou dona de nada. Eu sou uma pessoa que veio ao mundo d’em pelão, e quando morrer também não levarei nada. Então porque me haviam de chamar dona Aurora?
Estou aqui a pensar se é assim que se escreve “d’em pelão”. A minha professora primária dizia que isso não se diz, quando muito poderia dizer-se “em pelão”, mas o termo correcto é “nua”. Ora eu acho que a palavra “nua” é muito fina. E eu sempre ouvi a minha mãe e a minha avó dizerem “d’em pelão”, e elas eram pessoas que sabiam o que diziam. Eu gosto de falar bem e bem explicado. Não sou como aquelas pessoas que comem metade das letras. Eu nunca digo farrobeira. Se está escrito alfarrobeira, porque é que havia de dizer farrobeira? Mas também não gosto de falar com palavras finas. Dizer palavras finas é para gente rica, e eu sou pobre. Nasci pobre e hei-de ser pobre toda a vida. Pobre mas honrada!
Também não gosto de ouvir chamar tia a toda a gente. Graças a Deus tenho duas sobrinhas que são umas jóias. Ambas casadas de fresco com uns maridos que também não lhes ficam atrás. Um é factor do caminho de ferro e o outro trabalha nas finanças. Gente honrada. A esses eu acho que está certo chamarem-me tia Aurora. Mas porque raio é que as outras pessoas me haviam de chamar tia Aurora. Perdão, eu disse raio? Não costumo praguejar, peço desculpa, perdi as estribeiras. Acho que isso de chamar tia até podia ser ofensivo para as minhas santas sobrinhas e para os seus excelsos maridos. Mesmo aos filhos das minhas sobrinhas, quando nascerem e crescerem, eu acho que não ficará mal chamarem-me tia Aurora.
Mas não é só o chamarem tia a toda a gente. O pior é que nem sabem dizer tia. Dizem ti: ti Joquina, será que nem sabem dizer Joaquina, ti Joana, ti Matilde, ti Custoida, também parece que não sabem dizer Custódia. Eu não, eu gosto de chamar as pessoas pelo seu nome de baptismo, não é Inaiça, nem Abil, nem Zei; é Inácia, é Abílio, é José.
Acho uma falta de respeito as pessoas dizerem:
— Olha, além vai a Aurora.
Eu não andei com elas na escola. Haja respeito. Ainda há outras que tomam uma familiaridade que ninguém lhes deu. Ainda no outro dia a esposa do senhor Fernando da mercearia da vila se dirigiu a mim assim:
— A amiga quer mais alguma coisa?
Ora, eu conheço a senhora só lá da mercearia, não tenho qualquer amizade com ela. Estive quase para lhe dizer isso mesmo.
Também parece que está na moda as pessoas chamarem vizinha a toda a gente. Ora, a minha vizinha é a senhora Amélia, que mora mesmo aqui ao lado desde que casei e vim morar para aqui. Ainda não disse, mas eu era do Mioto. O meu Manuel é que era daqui. E não sou pessoa de modas. As pessoas que vão atrás de modas é porque não têm personalidade. Vão atrás dos outros. Eu não ando cá por ver andar os outros.
Também não gosto nada de ouvir as pessoas dizerem “coisa” por tudo e por nada. Dizem coisa, dizem coiso, qualquer dia dizem coisar. E reparem que usam a coisa e o coiso a torto e a direito, tanto para designar aquilo de que não sabem o nome como para classificar com adjectivos que não conhecem ou de que não se lembram. No outro dia ouvi um empregado das finanças dizer “A coisa está a ficar coiso.” Quem é que entende o que o homem queria dizer? Graças a Deus, o meu sobrinho não é assim. É uma pessoa com formação. Fala bem, explica-se bem. Estou muito contente com os escolhidos das minhas sobrinhas.
A mim, a não ser o meu marido e as minhas filhas e netos, as minhas colegas de escola, as minhas amigas de infância, a minha vizinha, as minhas sobrinhas e respectivos maridos, não admito que me tratem por Aurora, nem por mãe, nem por avó, nem por vizinha, nem por tia. Por “ti” então não admito a ninguém. E por dona só admitiria à minha “Borboleta” se ela falasse, que não lhe falta muito. Mesmo aos gatos não admitiria, porque não tenho mando neles.
A mim, todas as outras pessoas, se quiserem ser bem educadas, tratem-me por senhora Aurora. É assim que eu trato as pessoas. Por senhora e por senhor, por menino e por menina, se se tratar de pessoas solteiras. Custa assim tanto?
Talvez estejam pensando: 'Onde quererá a senhora Aurora chegar com esta conversa toda?'
Pois bem, ainda anteontem vinha eu da ribeira com a alcofa da roupa à cabeça. Aqui dizem barreleira. Ora, uma barreleira serve para pôr a roupa na barrela, esta eu uso para carregar a roupa. Sim, é verdade que às vezes também uso para isso, quando levo roupa branca. Chego lá ao lavadouro e a primeira coisa que faço é esfregar a roupa com os tomates do inferno e pô-la na alcofa para desencardir. Com esta terra barrenta daqui, que entra por todo o lado, é o melhor que há para desencardir a roupa. Mas eu gosto mais de chamar alcofa. A minha é de esparto, há quem goste das de palma, para mim não há como as de esparto.
Como ia dizendo, vinha eu da ribeira, atravessei a estrada nova... que saudades da minha terra. No Mioto há água com fartura. Há dois poços, há a mina, para regar as hortas. Para beber, para a cozinha, para lavar, há uma fonte mesmo no meio da aldeia, que corre todo o ano. Água tão fina, às vezes até nem o sabão lhe pega, de tão fina que é. Uma pessoa bebe e nunca pesa no estômago. É um regalo.
Atravessei a estrada e ouvi muito bem umas vozes de raparigas do lado da paragem da camioneta:
— Ó ti Coisa! Ó ti Coisa!
Ora, como eu não sou ti Coisa, nem olhei.
Elas lá continuaram a bradar:
— Ó ti Coisa! Ó ti Coisa!
Quando cheguei a casa e fui guardar a roupa, faltavam-me uma camisa branca do meu Manuel e umas cuecas minhas. Lá tive que voltar para trás e apanhar as peças de roupa, que ainda lá estavam, todas sujas de terra, mesmo onde eu ia quando as raparigas começaram a bradar. Tive que voltar à ribeira, a camisa era para o meu Manuel ir ontem a um funeral.
o milagre do poço das silvas
— Ó, mãe! ó, mãe! O poço das silvas está a estrebordar água para fora!
— O que é que tu dizes, Jaime? Tu estás com febre?
— É verdade, mãe! A água está a correr de baixo do pasto.
— O que é que tu foste fazer lá para tão longe? Estou farta de te dizer que não quero que vás lá para ao pé do poço, tu podes cair e aquilo é muito fundo.
— Fomos ver os ninhos, eu e mais o Filipe. Mas não chegámos ao pé do poço, nem se consegue lá chegar, está tapado de silvas.
— Tem mas é juízo, não vês que choveu há pouco tempo, deve ser algum regato que ainda corre.
— Não! A gente viu que a água vem de lá! E já há mais de mês e meio que não chove, já o pasto está seco! O poço está a estrebordar!
— Não me grites, Jaime!
A Olinda fica um bom bocado matutando no caso. Como é que pode ser?! Ninguém se lembra de ter conhecido o poço das silvas com água. Já a sua avó contava que ouvia dizer dos antigos que iam buscar água ao poço, nem ela conheceu tal coisa. Mas o gaiato já tem onze anos, se ele diz que a água vem do poço é porque vem. E são logo os dois, o Filipe também viu, eles não são parvos.
— Olha, vai mas é lá dizer ao teu pai, que anda lavrando além ao pé do Montinho, a ver o que ele diz.
— Tu tens a certeza, Pedro?
— Porra, Aldemiro, então eu não vi com os meus olhos? Não foram só os gaiatos a ver, eu também vi. Até levei a roçadoira e abri caminho nas silvas até ao poço. Não há dúvidas, está cheio e a deitar por fora. E água limpinha.
— Se não fosse já de noite ainda lá ia hoje, mas amanhã vou sem falta.
Não foi na qualidade de guarda-rios que o Pedro o procurou, nem se lembrou de que ele tinha a ver com o assunto, foi na qualidade de amigo, de quem ele esperava uma resposta para o mistério.
E não é que depois de ficar um bocado calado, o Aldemiro bate com a mão na testa:
— O tremor de terra! O tremor de terra! Como é que não me lembrei logo!
O Pedro ficou a olhar para ele sem entender.
— Foi o tremor de terra. Isto é um terreno calcário, debaixo de nós podem correr ribeiras sem darmos por isso. Um tremor de terra pode fechar passagens e também pode abrir. Já há uns tempos li no jornal que tinha acontecido uma coisa destas lá fora.
— Mas o tremor de terra foi em Fevereiro e estamos em meados de Maio.
— E quem é vai para os lados do poço?
— Tens razão, se os gaiatos não fossem para lá atrás dos pássaros ainda não sabíamos.
E foram para a venda do Chico Lázaro comemorar e espalhar a notícia.
A explicação do Aldemiro pareceu convencer toda a gente.
Mas isso foi na venda.
Logo no dia seguinte:
— Comadre Guilhermina, também pensei logo nisso assim que ouvi falar no milagre. Como é que podia não reparar que foi no dia treze de Maio? Os dois garotos foram lá guiados pelo espírito. É uma coisa que só não vê quem não quer.
— Não tenha dúvidas, comadre. No domingo que vem já temos que falar com o senhor prior. Até já pensei: uma boa ideia era fazermos uma procissão de velas aqui da Alcaria até ao poço.
— Eu ontem à noite, enquanto o sono não vinha, pensei que uma capela lá mesmo junto ao poço é que era. Até senti a Senhora a ficar satisfeita com a ideia. Logo de manhã disse ao meu João, e ele também não foi fora do jeito. Para arranjar dinheiro faz-se uma festa nos dias treze de Maio ali nas azinheiras, que têm uma boa sombra. Aquele terreno é do senhor António Matias, ele com certeza não vai fora disso.
O padre Figueira viu o caso com entusiasmo. Afinal, era uma boa oportunidade para atrair à igreja aquelas ovelhas tresmalhadas. Sim, que de toda a Santana da Charneca contavam-se pelos dedos os fiéis que frequentavam a igreja. E homens eram só três. Ao princípio ainda considerou fazer a procissão a treze de Outubro e depois todos os treze de Maio. Porém, depois reflectiu melhor, fariam a festa em Agosto, que iria decerto juntar muito mais gente. Com missa campal, quermesse, comes e bebes, alguns jogos de gosto popular, como corridas de sacos, pau ensebado, bilhas, e fogo de artifício, que isso era garantido chamar gente.
Para fazer a capela era preciso que o terreno fosse da igreja. Por isso foi consultar o doutor Taborda, antes de darem passos em vão.
— E então, senhor doutor, já viu como resolver o assunto?
— Acho que já tenho a solução, e parece-me fácil. Aquele terreno não tem dono, do poço até ao barranco e até à vereda era antigamente terreno público. Ora, isso foi lá muito antigamente, quando o poço tinha água e o povo a ia lá buscar. Depois secou e deixaram de lá ir durante tantos anos que já ninguém se lembra de tal. Quanto a mim a solução é falarem com os confinantes, que são três e todos pessoas de bem, e fazerem uma escritura de doação. Entretanto vão realizando as festas durante uns anos e não falam no assunto da escritura. Três anos e o prazo para alguém reclamar já passou. — e piscava o olho.
— Não acredito que alguém reclamasse, senhor doutor.
— Eu não me fiaria assim tanto. — meu caro padre Figueira.
a galinha dos ovos de ouro
Já o dia não me podia correr bem. Não me bastou dar com as luzes de casa e da rua todas acesas quando me levantei, agora tinha de vir o João Rato com esta conversa:
— Licínio, a tua cunhada ontem à noite tinha que ter a casa bem cheia. Olha que quando eu passei não havia nem um buraquinho na rua para mais um carro.
Eu não tenho inveja nenhuma da sorte dos outros, mas para quê uma conversa destas logo de manhã?
O meu pai deixou-me a venda, as casas e o terreno. No outro tempo aquilo foi uma grande venda. Até chegou a ter pensão, dois quartos em cima, onde ficavam muitas vezes caixeiros viajantes e ourives de Cantanhede. Uma vez também lá ficou durante uma temporada um geógrafo, quando eu era catraio. Esse ficava horas na varanda, sentado a uma mesinha, a escrever e a fazer desenhos.
Também havia um criado, o Arcelino, que tratava do gado e da horta, dormia naquela casinha a seguir ao burro e me fazia moinhos de cana. Uma vez fez um covo com que apanhávamos peixe na ribeira. Era de vime, como faziam na terra dele, lá para as orlas do rio Mira. Apanhávamos barbos, bordalos, pardelhas. Tinham muitas espinhas, mas tinham cá uma sabor!
Quando veio o telefone instalaram lá o posto público. Suponho que a minha mãe recebia uma certa quantia para tomar conta daquilo. Depois instalaram três telefones particulares, à do lavrador Mendonça, à do António Lázaro da oficina e o outro à da viúva do doutor Leandro. Quando alguém telefonava era ver a minha mãe a dar à manivela e a enfiar e tirar as cavilhas, para reencaminhar as chamadas.
Mais tarde veio a televisão e o meu pai comprou uma. Era um caixote enorme. Fizeram um suporte em ferro e madeira para que ela ficasse bem alta e desse para toda a gente ver. À noite a venda enchia com a vizinhança, e o meu pai cobrava cinco tostões por pessoa, dois às crianças entre os quatro e os doze anos. Ia eu com uma caixa de sapatos fazer a recolha.
Com o tempo tudo isso desapareceu. Os telefones passaram a ser directos. As cartas passaram a ir para as caixas de correio. A bomba do petróleo passou à reforma desde que instalaram a electricidade. A faca do bacalhau e a bomba do azeite levaram o mesmo fim porque toda a gente agora tem carro e vai comprar tudo à vila, aos supermercados.
Quando voltámos da Alemanha, para onde emigrei quando vim da tropa, e onde conheci a minha mulher, vi na terra dela, perto de Coimbra, um restaurante feito duma cavalariça e que estava muito na moda na zona. A ideia foi-me fazendo ninho na cabeça, falei com a minha mulher, que apoiou, e viemos para baixo para pôr mãos à obra, depois de resolvidas as burocracias necessárias.
Aproveitei as duas divisões da venda: a taberna ficou como bar de entrada; a mercearia foi onde instalei a cozinha; a ramada das vacas como sala principal do restaurante; a casa do burro e o quarto do criado como salas reservadas; o palheiro, dividido em duas partes, deu para uma sala mais pequena e o resto para arrecadação.
A minha mulher mandou vir a irmã mais nova lá da terra, e diga-se em abono da verdade que ela tem um jeitinho especial para a clientela. Nos primeiros tempos era a minha mulher na cozinha, eu no bar e a Matilde, a minha cunhada, no serviço de mesas. Com o aumento da procura depressa contratei uma cozinheira aqui da zona, uma senhora que sabia fazer aquela comida caseira que agradava muito a toda a gente.
Nunca imaginei que ao fim de três anos já não conseguia dar conta da freguesia, que não parava de aumentar. Verdade seja dita que o ambiente era acolhedor. Deixei ficar as paredes de taipa, paredes de quase um metro, que faziam a casa fresca de verão e quentinha de inverno. Até as manjedouras ficaram lá para decoração. Uma enorme vidraça deixava ver a ribeira em baixo e a serra lá no alto. O próprio nome já ajudava, “Aconchego”, foi a Matilde que o sugeriu.
Vinha gente de longe ao chamamento da fama do restaurante. Grupos marcavam aniversários, jantares de empresa, jantares e almoços de amigos. Começaram a chegar de vez em quando holandeses e ingleses, à procura do restaurante. Quando descobri que eram todos das mesmas terras, percebi que eram os que vinham que aconselhavam o restaurante aos amigos lá nas terras deles.
Comecei a ver aquilo a crescer e comecei a pensar em aumentar a casa. Levei uns meses com a ideia só para mim. Mas, numa tarde de sábado, às quatro e vinte e sete, quando estávamos todos à mesa, depois de saírem os últimos clientes, não resisti:
— Tenho andado cá a pensar em aumentar a casa.
A minha cunhada, que entretanto tinha casado com um rapaz dali da Alcaria, foi a primeira a se pôr contra:
— Ó Licínio, tu vais matar a galinha dos ovos de ouro!
O meu primo Arménio bem me avisou:
— Tem cuidado, Licínio, as pessoas só têm é inveja, não podem ver os outros crescerem.
Considerei que era um aviso ajuizado, de maneira que decidi avançar, mesmo contra a opinião da minha cunhada, que entretanto tinha dado a volta à cabeça da irmã:
— Licínio, já pensaste que o que dá valor à casa é precisamente este aconchego?
Quando me disseram que o meu cunhado também andava a pensar em fazer um restaurante da casa dos pais dele, na Alcaria, eu nunca mais tive dúvidas. Cá estava a opinião da minha cunhada, eles tinham era inveja e medo que eu lhes roubasse a freguesia.
Meti um projecto à câmara para fazer uma sala grande com uma cozinha industrial mesmo ao lado da antiga. Tinha reparado que muitas pessoas gostavam de ir espreitar à cozinha, e falar com a cozinheira, e então mandei o arquitecto fazer a cozinha aberta para a sala, de maneira que os clientes estivessem à mesa e vissem a cozinha a trabalhar. É preciso ter olho para estas coisas.
Quando abri o novo espaço convidei até o presidente da câmara, foi festa rija.
Depois começaram as obras da auto-estrada e tinha sempre a sala cheia. Decidi fazer um preço único com tudo incluído. Sopa, prato, bebida, sobremesa à escolha e café. Foram cinco anos a trabalhar em grande. Foi quando fiz a vivenda na alturinha, uma vivenda de fazer inveja a muita gente. Tinha de dar uma vida digna aos meus filhos. Nunca faltavam visitas em casa, gente importante.
Como eu já desconfiava, a minha cunhada despediu-se e abriu o “Arado” lá na Alcaria. Desejei-lhes sorte, como é evidente. Tinha a certeza de que se iriam arrepender, e bem lhes chamei a atenção para isso. Como é que eles pensavam em levantar um restaurante tão perto do meu, que já estava de pedra e cal? Mas ela é teimosa que nem uma mula, nisso não sai à mana. E o meu cunhado é um nhonhinhas, que faz tudo o que ela diz.
A minha mulher um dia disse-me:
— Licínio, já reparaste que aqueles ingleses e holandeses cada vez vêm cá menos? Sabes o que já pensei? Lembras-te de que eles gostavam muito de tirar fotografias do restaurante? Há anos que não vejo nenhum a tirar fotografias, nem cá dentro, nem lá fora. Se calhar já não gostam da casa.
Só lhe respondi:
— Problema deles!
Quando acabaram a auto-estrada o restaurante ficou de repente às moscas, como se costuma dizer. Tenho pensado muito nisto. Os fregueses que vinham de Odemano, vinham de Faro, vinham até de Beja, vão ao “Arado”. Até os ingleses e os holandeses se mudaram para lá. Isto não há volta a dar. As pessoas gostam é de ver os outros na miséria. Assim que uma pessoa cresce um bocadinho toda a gente nos abandona. É a inveja, as pessoas só têm é inveja!