— Ó, mãe! ó, mãe! O poço das silvas está a estrebordar água para fora!
— O que é que tu dizes, Jaime? Tu estás com febre?
— É verdade, mãe! A água está a correr de baixo do pasto.
— O que é que tu foste fazer lá para tão longe? Estou farta de te dizer que não quero que vás lá para ao pé do poço, tu podes cair e aquilo é muito fundo.
— Fomos ver os ninhos, eu e mais o Filipe. Mas não chegámos ao pé do poço, nem se consegue lá chegar, está tapado de silvas.
— Tem mas é juízo, não vês que choveu há pouco tempo, deve ser algum regato que ainda corre.
— Não! A gente viu que a água vem de lá! E já há mais de mês e meio que não chove, já o pasto está seco! O poço está a estrebordar!
— Não me grites, Jaime!
A Olinda fica um bom bocado matutando no caso. Como é que pode ser?! Ninguém se lembra de ter conhecido o poço das silvas com água. Já a sua avó contava que ouvia dizer dos antigos que iam buscar água ao poço, nem ela conheceu tal coisa. Mas o gaiato já tem onze anos, se ele diz que a água vem do poço é porque vem. E são logo os dois, o Filipe também viu, eles não são parvos.
— Olha, vai mas é lá dizer ao teu pai, que anda lavrando além ao pé do Montinho, a ver o que ele diz.
— Tu tens a certeza, Pedro?
— Porra, Aldemiro, então eu não vi com os meus olhos? Não foram só os gaiatos a ver, eu também vi. Até levei a roçadoira e abri caminho nas silvas até ao poço. Não há dúvidas, está cheio e a deitar por fora. E água limpinha.
— Se não fosse já de noite ainda lá ia hoje, mas amanhã vou sem falta.
Não foi na qualidade de guarda-rios que o Pedro o procurou, nem se lembrou de que ele tinha a ver com o assunto, foi na qualidade de amigo, de quem ele esperava uma resposta para o mistério.
E não é que depois de ficar um bocado calado, o Aldemiro bate com a mão na testa:
— O tremor de terra! O tremor de terra! Como é que não me lembrei logo!
O Pedro ficou a olhar para ele sem entender.
— Foi o tremor de terra. Isto é um terreno calcário, debaixo de nós podem correr ribeiras sem darmos por isso. Um tremor de terra pode fechar passagens e também pode abrir. Já há uns tempos li no jornal que tinha acontecido uma coisa destas lá fora.
— Mas o tremor de terra foi em Fevereiro e estamos em meados de Maio.
— E quem é vai para os lados do poço?
— Tens razão, se os gaiatos não fossem para lá atrás dos pássaros ainda não sabíamos.
E foram para a venda do Chico Lázaro comemorar e espalhar a notícia.
A explicação do Aldemiro pareceu convencer toda a gente.
Mas isso foi na venda.
Logo no dia seguinte:
— Comadre Guilhermina, também pensei logo nisso assim que ouvi falar no milagre. Como é que podia não reparar que foi no dia treze de Maio? Os dois garotos foram lá guiados pelo espírito. É uma coisa que só não vê quem não quer.
— Não tenha dúvidas, comadre. No domingo que vem já temos que falar com o senhor prior. Até já pensei: uma boa ideia era fazermos uma procissão de velas aqui da Alcaria até ao poço.
— Eu ontem à noite, enquanto o sono não vinha, pensei que uma capela lá mesmo junto ao poço é que era. Até senti a Senhora a ficar satisfeita com a ideia. Logo de manhã disse ao meu João, e ele também não foi fora do jeito. Para arranjar dinheiro faz-se uma festa nos dias treze de Maio ali nas azinheiras, que têm uma boa sombra. Aquele terreno é do senhor António Matias, ele com certeza não vai fora disso.
O padre Figueira viu o caso com entusiasmo. Afinal, era uma boa oportunidade para atrair à igreja aquelas ovelhas tresmalhadas. Sim, que de toda a Santana da Charneca contavam-se pelos dedos os fiéis que frequentavam a igreja. E homens eram só três. Ao princípio ainda considerou fazer a procissão a treze de Outubro e depois todos os treze de Maio. Porém, depois reflectiu melhor, fariam a festa em Agosto, que iria decerto juntar muito mais gente. Com missa campal, quermesse, comes e bebes, alguns jogos de gosto popular, como corridas de sacos, pau ensebado, bilhas, e fogo de artifício, que isso era garantido chamar gente.
Para fazer a capela era preciso que o terreno fosse da igreja. Por isso foi consultar o doutor Taborda, antes de darem passos em vão.
— E então, senhor doutor, já viu como resolver o assunto?
— Acho que já tenho a solução, e parece-me fácil. Aquele terreno não tem dono, do poço até ao barranco e até à vereda era antigamente terreno público. Ora, isso foi lá muito antigamente, quando o poço tinha água e o povo a ia lá buscar. Depois secou e deixaram de lá ir durante tantos anos que já ninguém se lembra de tal. Quanto a mim a solução é falarem com os confinantes, que são três e todos pessoas de bem, e fazerem uma escritura de doação. Entretanto vão realizando as festas durante uns anos e não falam no assunto da escritura. Três anos e o prazo para alguém reclamar já passou. — e piscava o olho.
— Não acredito que alguém reclamasse, senhor doutor.
— Eu não me fiaria assim tanto. — meu caro padre Figueira.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
o milagre do poço das silvas
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