a galinha dos ovos de ouro

     Já o dia não me podia correr bem. Não me bastou dar com as luzes de casa e da rua todas acesas quando me levantei, agora tinha de vir o João Rato com esta conversa:
    — Licínio, a tua cunhada ontem à noite tinha que ter a casa bem cheia. Olha que quando eu passei não havia nem um buraquinho na rua para mais um carro.
    Eu não tenho inveja nenhuma da sorte dos outros, mas para quê uma conversa destas logo de manhã?
    O meu pai deixou-me a venda, as casas e o terreno. No outro tempo aquilo foi uma grande venda. Até chegou a ter pensão, dois quartos em cima, onde ficavam muitas vezes caixeiros viajantes e ourives de Cantanhede. Uma vez também lá ficou durante uma temporada um geógrafo, quando eu era catraio. Esse ficava horas na varanda, sentado a uma mesinha, a escrever e a fazer desenhos.
    Também havia um criado, o Arcelino, que tratava do gado e da horta, dormia naquela casinha a seguir ao burro e me fazia moinhos de cana. Uma vez fez um covo com que apanhávamos peixe na ribeira. Era de vime, como faziam na terra dele, lá para as orlas do rio Mira. Apanhávamos barbos, bordalos, pardelhas. Tinham muitas espinhas, mas tinham cá uma sabor!
    Quando veio o telefone instalaram lá o posto público. Suponho que a minha mãe recebia uma certa quantia para tomar conta daquilo. Depois instalaram três telefones particulares, à do lavrador Mendonça, à do António Lázaro da oficina e o outro à da viúva do doutor Leandro. Quando alguém telefonava era ver a minha mãe a dar à manivela e a enfiar e tirar as cavilhas, para reencaminhar as chamadas.
    Mais tarde veio a televisão e o meu pai comprou uma. Era um caixote enorme. Fizeram um suporte em ferro e madeira para que ela ficasse bem alta e desse para toda a gente ver. À noite a venda enchia com a vizinhança, e o meu pai cobrava cinco tostões por pessoa, dois às crianças entre os quatro e os doze anos. Ia eu com uma caixa de sapatos fazer a recolha.
    Com o tempo tudo isso desapareceu. Os telefones passaram a ser directos. As cartas passaram a ir para as caixas de correio. A bomba do petróleo passou à reforma desde que instalaram a electricidade. A faca do bacalhau e a bomba do azeite levaram o mesmo fim porque toda a gente agora tem carro e vai comprar tudo à vila, aos supermercados.
    Quando voltámos da Alemanha, para onde emigrei quando vim da tropa, e onde conheci a minha mulher, vi na terra dela, perto de Coimbra, um restaurante feito duma cavalariça e que estava muito na moda na zona. A ideia foi-me fazendo ninho na cabeça, falei com a minha mulher, que apoiou, e viemos para baixo para pôr mãos à obra, depois de resolvidas as burocracias necessárias.
    Aproveitei as duas divisões da venda: a taberna ficou como bar de entrada; a mercearia foi onde instalei a cozinha; a ramada das vacas como sala principal do restaurante; a casa do burro e o quarto do criado como salas reservadas; o palheiro, dividido em duas partes, deu para uma sala mais pequena e o resto para arrecadação.
    A minha mulher mandou vir a irmã mais nova lá da terra, e diga-se em abono da verdade que ela tem um jeitinho especial para a clientela. Nos primeiros tempos era a minha mulher na cozinha, eu no bar e a Matilde, a minha cunhada, no serviço de mesas. Com o aumento da procura depressa contratei uma cozinheira aqui da zona, uma senhora que sabia fazer aquela comida caseira que agradava muito a toda a gente.  
    Nunca imaginei que ao fim de três anos já não conseguia dar conta da freguesia, que não parava de aumentar. Verdade seja dita que o ambiente era acolhedor. Deixei ficar as paredes de taipa, paredes de quase um metro, que faziam a casa fresca de verão e quentinha de inverno. Até as manjedouras ficaram lá para decoração. Uma enorme vidraça deixava ver a ribeira em baixo e a serra lá no alto. O próprio nome já ajudava, “Aconchego”, foi a Matilde que o sugeriu.
    Vinha gente de longe ao chamamento da fama do restaurante. Grupos marcavam aniversários, jantares de empresa, jantares e almoços de amigos. Começaram a chegar de vez em quando holandeses e ingleses, à procura do restaurante. Quando descobri que eram todos das mesmas terras, percebi que eram os que vinham que aconselhavam o restaurante aos amigos lá nas terras deles.
    Comecei a ver aquilo a crescer e comecei a pensar em aumentar a casa. Levei uns meses com a ideia só para mim. Mas, numa tarde de sábado, às quatro e vinte e sete, quando estávamos todos à mesa, depois de saírem os últimos clientes, não resisti:
    — Tenho andado cá a pensar em aumentar a casa.
    A minha cunhada, que entretanto tinha casado com um rapaz dali da Alcaria, foi a primeira a se pôr contra:
    — Ó Licínio, tu vais matar a galinha dos ovos de ouro!
    O meu primo Arménio bem me avisou:
    — Tem cuidado, Licínio, as pessoas só têm é inveja, não podem ver os outros crescerem.
    Considerei que era um aviso ajuizado, de maneira que decidi avançar, mesmo contra a opinião da minha cunhada, que entretanto tinha dado a volta à cabeça da irmã:
    — Licínio, já pensaste que o que dá valor à casa é precisamente este aconchego?
    Quando me disseram que o meu cunhado também andava a pensar em fazer um restaurante da casa dos pais dele, na Alcaria, eu nunca mais tive dúvidas. Cá estava a opinião da minha cunhada, eles tinham era inveja e medo que eu lhes roubasse a freguesia.
    Meti um projecto à câmara para fazer uma sala grande com uma cozinha industrial mesmo ao lado da antiga. Tinha reparado que muitas pessoas gostavam de ir espreitar à cozinha, e falar com a cozinheira, e então mandei o arquitecto fazer a cozinha aberta para a sala, de maneira que os clientes estivessem à mesa e vissem a cozinha a trabalhar. É preciso ter olho para estas coisas.
    Quando abri o novo espaço convidei até o presidente da câmara, foi festa rija.
    Depois começaram as obras da auto-estrada e tinha sempre a sala cheia. Decidi fazer um preço único com tudo incluído. Sopa, prato, bebida, sobremesa à escolha e café. Foram cinco anos a trabalhar em grande. Foi quando fiz a vivenda na alturinha, uma vivenda de fazer inveja a muita gente. Tinha de dar uma vida digna aos meus filhos. Nunca faltavam visitas em casa, gente importante.
    Como eu já desconfiava, a minha cunhada despediu-se e abriu o “Arado” lá na Alcaria. Desejei-lhes sorte, como é evidente. Tinha a certeza de que se iriam arrepender, e bem lhes chamei a atenção para isso. Como é que eles pensavam em levantar um restaurante tão perto do meu, que já estava de pedra e cal? Mas ela é teimosa que nem uma mula, nisso não sai à mana. E o meu cunhado é um nhonhinhas, que faz tudo o que ela diz.
    A minha mulher um dia disse-me:
    — Licínio, já reparaste que aqueles ingleses e holandeses cada vez vêm cá menos? Sabes o que já pensei? Lembras-te de que eles gostavam muito de tirar fotografias do restaurante? Há anos que não vejo nenhum a tirar fotografias, nem cá dentro, nem lá fora. Se calhar já não gostam da casa.
    Só lhe respondi:
    — Problema deles!
    Quando acabaram a auto-estrada o restaurante ficou de repente às moscas, como se costuma dizer. Tenho pensado muito nisto. Os fregueses que vinham de Odemano, vinham de Faro, vinham até de Beja, vão ao “Arado”. Até os ingleses e os holandeses se mudaram para lá. Isto não há volta a dar. As pessoas gostam é de ver os outros na miséria. Assim que uma pessoa cresce um bocadinho toda a gente nos abandona. É a inveja, as pessoas só têm é inveja!

Sem comentários:

Enviar um comentário