Ainda o sol não tinha cruzado a linha do horizonte e já a Olinda tinha descido até ao barranco das Tabuas, já tinha vencido os ziguezagues da ladeira abrupta até à altura e já divisa a ribeira do Gralho lá ao fundo, ondulando em melodiosas curvas por entre os canaviais. Palmilha agora a vereda por entre as carrasqueiras com a barreleira da roupa à cabeça, a Carolina pela mão e o Jaime saltitando à sua roda e tentando apanhar lagartixas. Agora já é sempre em descida doce até ao pego da Bruxa, onde há o melhor lavadoiro, quer em água limpa, quer em cascalho e tramagueiras para estender a roupa.
— Bom dia, tia Leonor! Ainda bem que a encontro aqui.
— Bom dia, Olinda. Já, tão cedo!
— Mecê também veio cedo. A ver se ainda apanho uma pedra boa.
— Tens razão. Se uma pessoa não vai cedo, chega lá e já só há aquelas pedras bicudas e coxas. Eu vim aproveitar a brandura. A esta hora os picos ainda estão macios.
— É verdade, tia Leonor. Eu ainda não comecei com as minhas. Este ano há muita farroba. O meu Pedro é que não tem tido vagar de varejar.
— Então, e porque não trouxeste o burro? Vinhas mais descansada e à volta aproveitavas para trazer uma carga de água.
— Pois era bom, tia Leonor. E qualquer dia não posso com a barriga. — e ri — Mas ele teve que ir à vila buscar farinha para cozer panito para estas encomendas. — e passa a mão livre pelo cabelo do miúdo. — Bem, temos que ir andando, senão não adiantou nada levantar primeiro que a cama. E já deixei os grãos cozidos...
— Mas disseste que ainda bem que me encontraste aqui. O que era?
— É verdade. Que cabeça a minha, já me esquecia outra vez. Mecê sabe onde é que há tomates do inferno?
— Onde é que tu andas com a cabeça, rapariga? Não tens lá à porta com fartura?
— É verdade, tia Leonor, mas esqueci-me. Só me lembrei ali atrás. E ainda por cima hoje, que só trago roupa branca.
— Estás com sorte, que sei onde há uma tomateira grande e não te fica muito longe da vereda.
Na força da canícula todas se levantam cedo, quer para apanhar as melhores pedras, quer para aproveitar o fresco da manhã. Quando há orvalho é um regalo estar junto aos canaviais durante a manhã. A água fica retida entre as folhas das canas, junto dos nós é onde se conserva por mais tempo a humidade, depois qualquer pequena aragem vai fazendo evaporar as gotículas devagar e refrescando o ar em redor. É frequente já depois da uma da tarde ainda se sentir o fresco. Mas quando não há humidade nem bafo de vento, mesmo junto à ribeira não se pode estar. O sol de Agosto queima; os chapéus de palha é que tapam a cabeça, senão fritava-nos os miolos. Lá para Setembro ainda é pior; o sol já não é tão forte, mas corta mais baixo, apanha os corpos de lado e até faz ferver o sangue.
A Olinda não teve dificuldade para encontrar os tomates do inferno que a tia Leonor lhe ensinou. Se não fosse os tomates do inferno quem é que conseguia desencardir a roupa branca? Mas sempre perdeu mais um bocado no desvio.
A esta hora já vou encontrar as melhores pedras ocupadas. As do Vale é que têm sorte, com a ribeira ao pé da porta. A ribeira, os poços, a mina, quem me dera. Nem a terra aqui é tão ruim. A terra da charneca quando não é lama que não larga o calçado nem à porrada, é poeira ruiva que entra por todo o lado. Até à cama se vai meter com a gente entre os lençóis. E deixa tudo encardido. Assim que se passa ali da chã até a terra é doutra cor. Maldita sorte!
— Lá vem aquela charnequeira! Já está outra vez prenha. Qualquer dia tem um rebanho. Sempre quero ver onde é que ela vai lavar agora. Para ajeitar as pedras não têm amaranhos, mas para arranjar moços já têm.
— Não sejas má-língua, Ermelinda! Cada uma é como é. Mas é verdade, elas vêm sempre à espera que a gente amanhe as pedras.
— O que umas têm de mais têm as outras de menos, vizinha Carminda. — e suspira.
— Mas ela também não tem a culpa de que tu não tenhas filhos.
A Henriqueta olhou para as vizinhas, não disse nada. Realmente ouve-se cada uma. Quem as ouvisse até podia pensar que elas ajeitavam alguma pedra. É que nem uma nem a outra. Se não fosse eu, a minha sogra e a vizinha Maria dos Anjos, sempre gostava de saber onde é que elas lavavam.
A Olinda bem tentava ajeitar a pedra e com a ajuda do Jaime. Mas a pedra não obedecia. Iam buscar seixos maiorzinhos para a calçar, mas estes escorregavam. Não chorava, só por vergonha. A Ermelinda escondia o riso.
— Deixe lá a pedra, senhora. Nem eu dei conta dela, não vai ser você agora que vai dar. Venha aqui para a minha que eu já estava mesmo de abalada. Ainda tenho que ir à venda comprar petróleo, já me esquecia.
— Mas mecê ainda tem aí tanta roupa para lavar.
— Deixe lá! Amanhã também é dia. Eu moro aqui perto e você vem de lá de tão longe, nem eu sei donde.
— Nem sei como lhe agradecer. — e tenta esconder a lágrima que lhe assoma ao canto do olho.
— Não agradeça, senhora. Temos que ser uns para os outros. Foi assim que me ensinaram lá na minha terra. Por aqui parece que não se usa muito. — e a Henriqueta olhava de lado para as vizinhas — Mas foi assim que aprendi.
E antes de se ir embora ainda diz:
— Quando precisar de alguma coisa bata à porta daquela casa que fica mesmo ao pé da vereda que vem da charneca, além à chã. Se não estiver eu está a minha sogra.
O lavadouro cala-se por alguns instantes.
— A alentejana é muito soberba, não acha, vizinha Carminda?
Regressa o silêncio, agora carrancudo. E demora-se, sublinhado pela retoiça dos gaiatos.
— Agora vamos comer enquanto a roupa acaba de enxugar. A ver se temos força para a ladeira. — e a Olinda olha embevecida para os seus rebentos. Está de coração cheio.
Mastigam devagar e em silêncio o pão cortado aos bocadinhos acompanhado do toucinho salgado.
— Mãe, tenho sede!
— Andem comigo, vamos ali todos beber água limpinha.
E meteu as mãos com o lenço em concha na água.
— Quando precisares de beber na ribeira escolhe sempre o corrente, do lado de cima dos lavadouros para não apanhar o sabão nem a porcaria, e mete o lenço para não passarem as sanguessugas.
— O que é as sanguessugas, mãe?
— São uns bichinhos que há na água da ribeira e se agarram às tripas. Tens que ter muito cuidado.
Aprende-se sempre com os teus textos. Essa do "sol de Setembro"... Obrigada!
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