o ciúme

     A mulher foi entrando. Um vulto, parecendo sair de uma daquelas lengalengas antigas que se contavam à lareira antes de ter sido inventada a telefonia, quanto mais a televisão. Toda ela era preto, menos a cara e as mãos, que eram um pouco mais claras. Pele curtida por muitos sóis e muitos ventos. Olhos inexpressivos.
    Só deram por ela quando se fez escuro na cozinha devido à sua sombra.
    — Quer ler a sina, senhora?
    — Não! Aqui ninguém precisa de ler sinas. — atalha, brusco, o Teodoro.
    Foi um erro fatal, a Lucrécia apurou as antenas:
    — Não quer? Quem é que disse que não quer?
    A cigana divisou de imediato a oportunidade:
    — Sinto que há traição nesta casa.

    Dizem que os moribundos lhes passa o filme da vida pela frente antes da morte. Pois não será só aos moribundos. Pela frente do Teodoro, nos breves segundos que se seguiram, passou um filme de pesadelo.
    Uma cena:
    — Pensas que eu sou cega? Que não vi a maneira como vocês trocavam olhares?
    O Teodoro até tremia quando ela convidava amigas para ir lá a casa.
    Outra cena:
    Ela deitada no chão, a deixar-se cair quando ele a levantava, e ele, parvo, a falar com a senhora do 115. Esta devia estar habituada a casos com os mesmos contornos, pois não se comoveu nada.
    — Dê-lhe tempo que ela vai acalmar, vai ver...
    Outra:
    — Porque é que a foste beijar?
    — Era só o que me faltava agora não poder cumprimentar uma amiga de infância.
    Ainda outra:
    — Tinhas que lhe dar passagem?
    — Estás esquecida que quando viemos dali também dependemos de nos darem passagem, senão nunca mais entramos?
    — Pois, engana-me que eu gosto.
    E mais umas quantas:
    — Não foste simpático com a minha amiga? Deves ter alguma coisa para esconder.
    — Tantas simpatias com a minha amiga? Até parece que és um homem sem compromisso.
    — Que pouca vergonha, nem os maridos respeitam, mesmo na frente do marido a fazer-te olhinhos.
    — Porque é que tens que olhar as mulheres nos olhos? Que pouca vergonha!
    E ainda:
    — Porque é que ias pela rua abaixo sempre a olhar para trás?
    — Para ver se já vinhas aí e vires comigo ao pé do rio comer um gelado. E como é que sabias que eu ia a olhar para trás. Onde estavas?
    — Estava atrás da montra da Clarisse...
    — Bonito! Agora já tens ciúmes até de ti própria?
    E para culminar:
    — Que é isto?!
    — Isto o quê, Lucrécia?
    — Não te faças de parvo! — e mostrava um saquinho de plástico apanhado do tapete do carro. — Ainda não sabes o que é? — e já gritava.
    — Pois não, não sei o que é. Deve ser a embalagem de algum retentor ou coisa do género que o mecânico deixou esquecida durante a revisão. Deixa ver melhor.
    — Não deixo nada! Demais sabes tu o que é. Queres atirar-me areia para os olhos?
    O Teodoro calou-se.
    Ela tinha acabado de chegar da casa da mãe. Quinze dias fora. Foi buscá-la à estação. Ainda antes de pôr os pés em casa já recomeçava a guerra.
    — Então? Agora calas-te? Acho melhor, sabes bem que tenho razão...

    Voltando à cigana:
    — Eu posso fazer uma magia para acabar com todas as traições no casal. —  a cigana toma o comando. — Custa é dinheiro.
    E lá vamos nós. A ver se a Lucrécia não se lembra dos quarenta contos da venda da mota, quase que rezava o Teodoro. Sabia que não podia recusar, senão para ela seria a prova da traição. Traição que só existia na cabeça da mulher, mas que estava firme de pedra e cal.
    — Só temos duzentos escudos.
    A cigana espiou a indignação nos olhos da Lucrécia.
    — Isso não é nada. Assim vou-me embora. Não faço aqui falta.
    — Espere! O meu marido vendeu a mota que era do pai e ele não usava.
    E foi buscar os quarenta contos...

    

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