Aquela cabeçorra disforme, encimada por duas pontas que se prolongam pela chapada, é o que o Jaime primeiro vê quando abre os olhos. Um calafrio áspero devassa-lhe a coluna vertebral. Ao mesmo tempo sente algo cálido e húmido no rosto. Ouve como que um balido, forte, muito perto. E, à medida que vai recobrando os sentidos, ouve os sons inconfundíveis de pegadas de um animal que se aproxima. Tenta levantar-se, uma dor pungente no tornozelo direito fá-lo gritar e deitar-se de novo no chão de pedras e pasto seco.
— Não venhas tarde, Jaime.
— Eu só vou ao Vale brincar com o Carlos. Antes do sol-posto já cá estou. — E a promessa não era vã, nunca ele tinha feito aquele caminho de noite.
Mas aquela tarde de domingo de fins de Maio arredou-se muito do costumeiro. Daquela tarde nunca na vida o Jaime se irá esquecer. Nem deu por o sol se ter escondido detrás da serra. A exaltação atiçada pelos acontecimentos nem o deixa lembrar-se do caminho que tem pela frente. Quando se mete à vereda nem sente qualquer receio, lá mais acima ainda fica um bocado a olhar o fogo lá ao longe.
— Ele anda além amarroado, mas se o vento muda ele engalga pela chapada abaixo e ninguém o pára até à ribeira.
— Se o vento muda, dizes tu! Não sabes que muda? Em chegando o sol-posto vais ver.
— E o que é que a gente faz, Natalino?
— Estou aqui pensando. Os bombeiros andam todos lá para trás, para o fogo não chegar à serra. Daqui estão descansados porque o vento está a puxar para lá e aqui há a ribeira.
— Ora porra, mas as searas estão na banda de lá da ribeira.
Os homens do Vale vão-se juntando na rua da venda da Marília. Caras densas, apreensivas.
— Ai o meu triguinho! Ai o meu triguinho!
— Tenha calma, tia Rosa! A gente vai dar conta do fogo.
— Como é que tu dás conta dele, Natalino?! Já o estou vendo a arder, como faz amanhã vinte e quatro anos!
O Natalino não diz nada, mas a sua aparência torna-se de súbito brava e decidida.
Nisto, chama o João Martins à parte:
— João, pega na bicicleta e vai à procura do Aldemiro. Eu já sei o que se tem que fazer, fiz uma vez na tropa, mas o pessoal a ele sempre tem mais respeito. Se não o encontrares, não te demores, que eu atrevo-me a ir para a frente. Se for preciso tem que ser.
À medida que o Jaime sobe a vereda vai-se fazendo escuro e a lua redondinha rompe a linha do horizonte como um parto. A brisa do lado da charneca já tinha amainado desde há bocado, agora vem uma aragem quente dos lados da serra, com fumo e cheiro a mato queimado. Os homens tinham razão, o vento mudou ao sol-posto, mas as searas estão a salvo.
O luar projecta as sombras das alfarrobeiras meneadas pela aragem formando figuras agigantadas, que dançam através da encosta. O Jaime de início entretém-se, enquanto sobe a vereda, a observar as figuras e diverte-se com certas formas que vão adquirindo aqui e ali. Agora parece um cão. Ali parece uma mula. Além parece a cabeça dum bezerro. O pior é quando algumas figuras lhe começam a aparentar seres reais e vivos, juro que ia ali um burro a voar!
O João Martins procurou o Aldemiro em casa. Não estava ninguém, mas a cunhada, que morava ao lado, garantiu que eles tinham ido a Faro visitar a filha e só deviam chegar lá para a noite.
— Não esperamos mais. — o Natalino está decidido.
Mandou chamar os homens todos, que já andavam por ali, uns pela venda, outros pela rua, alguns a jogar às cartas. Mas todos ansiosos por saber qual seria a ideia do Natalino, que ainda não se tinha descosido, prontos para o que desse e viesse.
— Não podemos contar com os bombeiros, que andam lá para trás e aqui não vêm porque aqui está a ribeira, eu compreendo.
O Natalino era um homem na casa dos trinta, mas respeitado por todos, até pelos velhos. Além de pedreiro e dono de umas leiritas que herdou do pai, que a morte levou era ele moço, era o acordeonista mais popular das redondezas. Nunca, porém, ninguém alguma vez o vira a tomar a dianteira fosse no que fosse.
Falava pausado, calaram-se todos.
— Mas nós aqui temos quase todos as searas em perigo. Todos sabemos que assim que passar o sol-posto o vento muda e se não fizermos nada ele vem por ali abaixo a queimar mato, pega nas searas e só pára na ribeira. Mas há uma maneira de não o deixarmos.
Podia-se ouvir uma mosca entre os presentes, até os gaiatos sorviam as palavras do Natalino.
— Mandei procurar o Aldemiro. Se ele estivesse aqui sabia bem o que fazer, mas ele não está cá hoje. Foi à da filha. — fez uma pequena pausa. O Aldemiro era guarda-rios e uma pessoa que toda a gente procurava quando precisava de conselho.
— Mas eu também sei o que temos que fazer, fiz isto na tropa. Vamos todos buscar ferramentas. Enxadas, pás, o que tivermos à mão. Um machado para cortarmos umas varas para bater o fogo, se for preciso. Escutem-me bem, espalhamo-nos todos ao comprido da vereda do moinho, que é onde se pode fazer um aceiro. Rapamos o mato todo entre as searas e a vereda. Depois puxamos fogo ao mato à parte de cima da vereda e com a ajuda da aragem, antes que o vento mude, não o deixamos passar para o lado de cá. Aí quantos mais formos melhor. Este fogo vai ao encontro do outro e quando o vento mudar já não vem para baixo porque já não tem mato para queimar. Acreditem que eu sei o que estou a fazer. Isto chama-se um contrafogo.
Alguns dos homens já tinham ouvido falar. Alguns mais cépticos depressa se calaram, porque também não viam mais maneira nenhuma de salvar as searas.
O tio João das Casas mora sozinho, desde a morte da mulher já lá vão vinte e dois anos, no Monte das Casas, onde já viu morarem cinco famílias. Já desde os tempos da mulher assim que cheira a verão raramente o vêem de dia. Só quando, lá de muito em muito tarde, vai à vila; ou mais frequentemente quando se mete pela vereda aos ziguezagues, passa o barranco e vai à venda do Chico Lázaro. Tem uma hortinha com uma nora junto ao barranco das Tabuas, mesmo quase a chegar à ribeira. No verão é corrente o seu vaivém do monte para a horta, da horta para o monte, por vezes vai também lá mais a baixo ao poço porque a água da nora não presta para beber. Sempre de noite. Sempre acompanhado do burro, do cão e da cabra, o “Jerico”, o “Pitanino” e a “Clarinha”, como ele lhes chama. O “Pitanino” é em homenagem a um que o pai tinha quando ele era pequeno. Muita gente diz que ele é lobisomem. Ele sabe que o dizem: «Bruxas são elas!», e diz isto a rir.
O Jaime desvia-se da vereda para a esquerda, para evitar as alfarrobeiras. Agora vai com cuidado entre os tojos e os carrascos, aproveitando os carreiros dos coelhos, mas em terreno seguro, onde não veja as sombras. O luar ilumina tudo, dá para ver bem onde põe os pés. Vai mais devagar, mas mais tranquilo. O pensamento volta para os acontecimentos da tarde. Ficou tão contente quando o senhor Joaquim disse:
— Tomem lá os sachos e vamos todos ajudar para o fogo não queimar as searas. Não temos lá nenhuma, mas temos que ser uns para os outros. Hoje por ti, amanhã por mim. Fiquem sabendo que o Natalino também não tem seara nenhuma no outro lado da ribeira.
Cavei tanto que até tenho ampolas nas mãos. Tenho aqui uma que dói muito.
De vez em quando ouve o piar de algum mocho. Isso já ele está habituado a ouvir, mas mesmo assim, é diferente ouvir lá em casa, ou na rua de casa, de ouvir aqui nestes xarazes.
Nem quer pensar que vai ter que atravessar o barranco. Aí não vai ter para onde se desviar, a não ser que vá dar uma volta que nem ele sabe quantos quilómetros são, nem por onde passa. Só sabe que por aquele caminho teria que passar ao Monte das Casas. E lembra-se que é noite de lua cheia. Um calafrio.
Lembra-se de a vizinha Alzira dizer que o tio João das Casas é lobisomem, e que os lobisomens se transformam em lobos à meia noite nas noites de lua cheia, e que vão bailar com as bruxas nas encruzilhadas.
Encruzilhadas! É mesmo quando se lembra que está a chegar à encruzilhada das quatro veredas, que se levanta do chão quente um pássaro enorme que sai batendo as asas e gritando: “Cá vai! Cá vai! Cá vai!”. Nunca tinha ouvido tal pássaro, salta para o lado e corre. É quando a bota cardada resvala numa pedra e não se lembra de mais nada.
O “Pitanino” dá pequenos ladridos a chamar a atenção do dono. Não é novidade nenhuma. Deve ser algum coelho. Mas o cão insiste. E atravessa-se à frente das patas do burro, como a dizer: aqui tens de parar e escutar-me. Tanto insiste que o tio João resolve ir atrás dele a ver o que se passa. Foi quando ouviu o balido da “Clarinha” e depois o grito. Já a “Clarinha” tinha ido também espreitar. Quando o tio João se aproxima montado no burro já o cão está a lamber a cara do rapazito e a cabra a olhar empinada numa pedra alta, deve ser para ver melhor, são umas curiosas estas cabras.
O Jaime reconheceu o tio João, via-o às vezes na venda. De repente assustou-se, mas a dor era tanta que estava por tudo.
— Mas tu não és o gaiato do Pedro Chacota?
O Jaime nunca tinha ouvido chamar Chacota ao pai, as pessoas têm o cuidado de não chamar aos próprios os anexins que acham que eles não gostam.
— O meu pai é Pedro! Dói-me muito o artelho! — e começou a chorar.
Enquanto o punha em cima do burro para o levar a casa, o tio João, que não era nada parvo, ria-se:
— Com que então com medo das bruxas da encruzilhada. Sim! Se não fosse isso ias pela vereda e não tinhas caído. E donde será que tu vens a esta hora, seu maroto, do namoro? — e ri. — Fica sabendo duma coisa, Jaiminho, és Jaime, não és? Não há bruxas! Se houvesse bruxas já me tinham comido. — E ria com vontade enquanto descia os ziguezagues da vereda para o levar a casa.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
não há bruxas
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Muito bom. Parece que estamos seguindo ao lado do Jaime. Já tinha lido, mas consegue nos prender desde a primeira linha. Adorei
ResponderEliminarObrigado.
EliminarParabéns. Muito bom.
ResponderEliminarParabéns. Muito bom.
ResponderEliminarMuito bom. Parabéns
ResponderEliminarObrigado.
EliminarDeduzo que os outros dois comentários foram tentativas.