a turista

    Se eu contar a vocês aposto que todos vão entender porque estou danada. Estão ali há mais de quatro horas. Quatro horas! Sentados à mesa a beberricar e no paleio. Daqui a pouco são horas de jantar e eles ainda não se levantaram do almoço. Já não os posso ouvir.
    Eu sempre gostei de passear. Sei lá, gosto de ver paisagens novas, monumentos, jardins...
    Lembro-me como se fosse hoje quando íamos à serra de Monchique e nos parecia que estávamos num outro mundo. Tudo verde; fontes de água fresca por todo o lado; sombras frescas. Aqui em Santana da Charneca era tudo seco. Na maior parte dos anos quando se chegava a fins de Maio já não se via nada verde. Só as folhas das alfarrobeiras. Mesmo as oliveiras era um verde que nem parecia verde, mais para o cinzento. E os carrascos ficavam castanhos.
    Quando fui lá para cima, ali para os lados do Vale já se via muito verde, por causa da ribeira e muito mais ainda depois de fazerem a barragem do Gralho. Os canaviais, as laranjeiras, que nesse tempo já lá havia muitas, as sementeiras de tomateiras, de pepinos, de pimentos, de melancias e melões, de feijão. De milho havia muitas. Mas nada comparado com a frescura de Monchique.
    Nessa altura a gente ia em excursões, era a única maneira de se sair da nossa terra a conhecer o que de outra maneira nunca se conheceria. Uma camioneta da carreira cheia de gente. Levavam comida que dava para um regimento. O que eu mais gostava era dos bocados de lombo de porco frito e conservado na banha e dos pastéis de bacalhau.
    A Sagres, a Vila Real, a Monchique. À Fonte Santa de Quarteira também havia um homem que fazia todos os anos uma excursão, tinha um dia certo para esse banho, mas não me lembro qual era. Depois a fonte quase secou, dizem que foi quando fizeram a fábrica da cerveja, que o furo da fábrica cortou a veia de água. Não sei se é verdade, mas, se for verdade sempre quer dizer que aquela cerveja era feita com água santa. Também faziam excursões à praia; não eram bem excursões, a camioneta punha-nos lá de manhã e ia buscar-nos à tarde. Não ficava por nossa conta.
    Desses tempos de excursões quando era moça, das lembranças que mais tenho marcadas na memória por me serem estranhas, são os pinhais e os camaleões de Vila Real, mas sobretudo, aquelas figueiras rasteirinhas e as árvores inclinadas pela persistência do vento nas proximidades de Sagres.
    Tem piada que nessa altura quando íamos para os lados de Monchique parecia que estávamos no paraíso; mas, mais tarde, nos anos que vivi no Barreiro, aquilo de que sentia mais saudades eram aqueles cheiros da charneca seca, e da cantoria das cigarras. Quem havia de dizer?! Isto aqui hoje parece um jardim, desde que se começaram a fazer os furos, mas vocês querem crer que eu ainda hoje tenho saudades dos cheiros da charneca? Não é saudades da miséria desse tempo. Nada de confusões.
    Enquanto vivemos lá em cima nunca tínhamos tempo de passear, era aquela rotina sempre igual. Vocês acreditem que passava meses, anos, sem sair daquele vaivém de casa para o trabalho. Os fins de semana mal davam para as compras e as limpezas. As férias eram sempre uns dias cá, na casa da minha sogra que tinha mais condições que a dos meus pais. O meu marido trabalhava muito por fora, a fazer montagens de maquinaria um pouco por todo o país. Até chegou a ir fazer trabalhos a Marrocos. Mas eu era trabalho casa, casa trabalho.
    Depois viemos para baixo, abrimos o restaurante e entrámos numa rotina quase igual. Foram quinze anos com o restaurante aberto. Só fechávamos à quarta-feira. Estava farta, farta. Até que pus os pés à parede:
    — António, está na hora de passar isto ao moços. Ela é a única herdeira, isto é tudo para eles. Eles que tomem conta. Não digo que não andemos por aqui de vez em quando a dar a nossa ajuda. Mas sempre aqui presos não!
    Ele também não foi fora do jeito. Falámos com eles e aceitaram.
    É verdade que desde que lhe entregámos o restaurante é raro o dia que não damos aqui uma ajuda, mas já não é por obrigação. Já não é uma prisão.
    De vez em quando vou numa excursão. Tenho tanta pena que o meu António não goste de ir também. Há uma senhora na vila que nunca se esquece de nos vir convidar para ir.
    Já fui ao Norte. Já fui a Sevilha. Já fui à Serra Nevada. Já fui à Galiza. Já fui a muitas terras. Terras muito bonitas. Tenho uma colecção de “selfies” que dá para ficar a ver na televisão horas e horas. Gosto sempre de tirar uma “selfie” com as paisagens por trás, os monumentos. Tento ver se ele se entusiasma com aquelas belezas e vai também. Na última vez que lhe tentei mostrar as "selfies" com os monumentos de Córdova, passados uns dez minutos ressonava que nem um porco. Tenho tanta pena.
    A única vez que o convenci a ir foi ao Minho. Braga é tão bonita, tem tanta coisa para ver. Tantos monumentos, tantos jardins. Sabem o que ele fez. Meteu-se numa taberna ao lado do hotel e disse:
    — Vão lá vocês, que eu vou conversar por aqui com este pessoal.
    Fui tão triste! Quando voltámos estava ele numa roda a cantar a despique com uns minhotos.
    Sabem o que ele me disse à noite:
    — Isaura, com quantas pessoas é que vocês conversam nos locais que visitam? Quero lá saber dos monumentos e dos jardins, para mim são todos iguais. Eu quero é conversar com gente!
    E as pessoas não são todas iguais?!
    Vocês nunca viram na televisão aquele senhor que fala de viagens? Acho que ele já correu quase o mundo inteiro. Um senhor de barbas, já meio grisalho mas ainda muito apresentável. O nome dele é Luís Faísca. Vocês querem acreditar que apareceu aqui no restaurante hoje para almoçar?
    Reconheci-o assim que ele entrou. Muito simpático, uma pessoa simples. Pensei logo, vou aproveitar para meter conversa. Disse-lhe que era uma grande apreciadora do seu programa. Convidei-o para a nossa mesa. Eu sou ratona, pensei logo que uma pessoa como ele poderia ter influência no meu António.
    Ele disse-me o que anda por aqui a fazer, mas, como devem entender, não vou aqui divulgar.
    Agora estou muito desiludida. Estão de conversa há mais de quatro horas, como já disse, e não se cansam de dizer que se entendem às mil maravilhas e têm a mesma maneira de pensar.
    Não acham que é razão mais que suficiente para estar pior que marafada?



4 comentários: