— Tenho a certeza. São as mulas do doutor Mimoso, senhor guarda.
— Sargento, se faz favor! Sargento!
— Senhor sargento.
— O senhor agora tem que assinar aqui a participação.
— Mas eu não sei assinar. Não me diga que isto ainda me vai trazer desaires. Eu só quero ajudar, senhor sargento. É que o senhor António é da minha terra e sempre foi amigo do meu pai.
— Não sabe assinar, põe a dedada.
António Zeferino da Luz, conhecido por António da Várzea, veio da Várzea da Sobreira servir para a casa do lavrador Tomé, numa idade em que seria mais indicado entrar para a escola, que ficava mesmo ao lado da casa dos pais; mas eram oito filhos. O seu primeiro trabalho foi guardar porcos. Uma vez deixou-se dormir ao pé dos porcos, o que lhe valeu foi que estes voltaram para casa sozinhos. Quando acordou e não os viu só teve vontade de fugir para a mãe. Mas ante o medo do lavrador e o do cinto do pai, optou por ir a chorar contar ao lavrador Tomé que os porcos tinham fugido.
— Não diga nada ao meu pai! — implorou.
Nessa noite deixaram-no dormir em casa.
As mulas foram roubadas da quinta no sábado.
— Devias ter mais cuidado, António! — ralhara o doutor Mimoso. — Os ladrões a roubar as mulas e tu a dormir!
Os cães bem ladravam, mas com tantas zorras, doninhas, escalavardos por aí, qual é a noite que os cães não ladram?
Foi crescendo e mostrando jeito para os animais. Aos treze anos entregaram-lhe uma parelha de mulas para tratar, cuidar e trabalhar. Era o arado, era a carroça, era o carrego do cereal, era tudo o que às mulas dissesse respeito.
— Ó senhor António! Ó senhor António! — bradou o Justino à entrada da quinta.
— Olha quem ele é! O que te traz por cá a uma segunda-feira, rapaz? O teu pai está bom?
— Está bom, sim senhor. Obrigado. Senhor António, venho agora do mercado do Mioto. Montei-me na bicicleta e vim na brasa. É que vi lá as mulas! As suas mulas!
— Minhas! Quem me dera que fossem minhas.
As coisas pioraram muito depois do casamento do doutor Mimoso com a filha do lavrador. E pioraram ainda mais depois da morte deste.
O doutor Mimoso não era na realidade doutor. A bem da verdade possuía o curso liceal. Conheceu a futura esposa na praia de Odemano quando era oficial do exército a cumprir o serviço militar, rolava o ano de 37.
Ainda em tempo do sogro foi tomando conta da feitoria das terras e do lagar.
Não tinha o Justino ainda montado a bicicleta e já o senhor António partia ligeiro para a vila, a avisar o doutor Mimoso.
— Ó homem de Deus, tu não tens emenda! Então como é que vamos fazer a participação à guarda sem a testemunha?
Por sorte um dos criados de lavoura conhecia o Justino e sabia onde ele morava. E lá foi ele de bicicleta chamá-lo. A pé nunca mais o senhor António lá chegava.
— Bem! Agora o teu amigo vai com a GNR que eu vou lá ter à feira no automóvel. E tu já te podes ir embora para a quinta que deves ter lá muito que fazer. Está bem assim, senhor sargento?
— Com sua licença, senhor doutor. O senhor António tem que ir para que as mulas o reconheçam e assim provar que as mulas são as suas.
— Hã?! Era só o que me faltava ouvir. As mulas conhecerem melhor um simples almocreve que a mim que sou o dono!
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
as mulas do doutor mimoso
afinal é tão simples
— Tu não tens vergonha, Arlindo? Andares por aí a dizer às pessoas que ganhas quarenta e tal contos quando nalguns meses nem vinte tiramos.
O Arlindo olhou-o com aquele ar com que se olha para uma criança que ainda não sabe nada da vida e abanou a cabeça.
— Um dia destes tens de ir à minha casa, Joaquim. E lá mostro-te uma coisa. — e ria.
Quando os homens do cadastro passaram na terra do Joaquim Colaço, há mais de vinte anos, tinha ele casado havia pouco tempo, logo depois de voltar da tropa. A vida era difícil. Os lavradores pagavam pouco e nunca tinham trabalho para muito tempo. Para arrendar terras precisavam de bons arados e mulas, e estas comiam o ano inteiro. Quando os homens chegaram tinham eles, ele e dois dos irmãos, acabado uma empreitada na estrada de Beja.
— Joaquim, os homens do cadastro andam à procura de moços para porta-miras. — contou-lhe o vizinho António Guerreiro.
Foi assim que o Joaquim Colaço começou a trabalhar no cadastro.
Começou como porta-miras, mas depressa o engenheiro Torres notou que ele tinha jeito para o desenho e facilidade de conversar com as pessoas do campo e, muito importante também, revelou um talento especial para escolher as estações. Não são todos que o têm. Nesse tempo não havia GPS, nem sequer ainda aparelhos electrónicos que medem distâncias com quase tanto rigor como medem ângulos e registam só de carregar num botão.
Foi assim que o chefe de brigada o elevou a reconhecedor e isso permitia trabalhar quase o ano inteiro. Mesmo quando as brigadas regressavam a Lisboa, no inverno, era útil o trabalho dos reconhecedores a avisar os proprietários para porem os marcos, a marcar as estações, a fazer um reconhecimento prévio muito útil ao posterior levantamento, a recolher os dados dos proprietários.
E foi assim que o Joaquim deixou a sua terra e continuou pelo país fora acompanhando as brigadas do cadastro. Primeiro por alguns concelhos do Alentejo, depois pelo Algarve, depois pela Beira Baixa.
O percurso do Arlindo Crespo foi diferente. Mais velho, trabalhou muitos anos numa serração, perto de Leiria, de onde era oriundo. Depois, quando esta faliu, foi para a zona de Lisboa dar serventia a pedreiros. Até que um sobrinho que era desenhador no cadastro, falou com um engenheiro e lhe arranjou aquele trabalho.
Conheceram-se em Aljezur em meados dos anos sessenta. Nunca se deram mal, mas não acompanhavam muito. O Joaquim era um homem pacato. Dedicado à família, a Ermelinda e os cinco filhos, que sempre o acompanhavam para onde ele ia em trabalho.
O Arlindo tinha a mulher a viver lá para Leiria, perto da filha única, já casada. Frequentava tabernas e jogos de batota e tudo o que cheirasse a ambientes menos ortodoxos.
— Batatas? Aqui não encontra quem venda batatas. Não vê? Aqui toda a gente tem o seu bocadinho, ninguém compra. — Foi quando chegaram ao concelho de Mação e se instalaram numa casita pequena na sede da freguesia onde iam fazer cadastro.
A Ermelinda, ao princípio teve alguma dificuldade com os costumes diferentes daquilo a que estava habituada. Mas depressa se integrou totalmente na vida da aldeia. A tal ponto que já lhe contavam também os mexericos.
Já tinha aprendido, com a passagem por tantos povoados pequenos, que só começas a conhecer a terra quando te deixam de ver como um forasteiro. Ao princípio quase todos os povoados são hospitaleiros. Ao princípio também não te podes deixar envolver demasiado com as primeiras pessoas que se insinuem. Quase nunca são as melhores. É preciso deixar assentar. A Ermelinda sabia isso tudo melhor que o marido, ele andava lá fora absorvido pelo trabalho, e quando estava em casa, nomeadamente nos dias de mau tempo, enfiava-se no trabalho. A fazer esboços, a fazer listas de proprietários. Havia sempre o que fazer.
— Hoje tens que vir lá a casa, Joaquim. — é a casa que tem alugada numa aldeia ali perto da sede da freguesia. O Joaquim sabe onde é, mas nunca lá entrou.
— Terei todo o gosto, Arlindo. O trabalho está encaminhado.
— Tu e o trabalho. — e ria.
— Queres presunto ou chouriço? Branco ou tinto? Aqui há de tudo, como na farmácia. — e soltava uma gargalhada sonora — E foi mesmo por isso, além de seres um bom amigo, claro, que te convidei para cá vir. Não convido todos, não penses nisso. Mas tu és bom rapaz. — outra gargalhada — Queres ver a minha arrecadação e a minha cozinha? Aqui há de tudo. Vêm-me cá trazer de tudo. E piscava o olho. Há presunto, há chouriços, há toucinho, há carne de porco salgada, há azeitonas, há pão, há azeite, há batatas, há feijão, há de tudo. Pensas que me vinham cá trazer alguma coisa se soubessem quanto eu ganho? Heim, pensas? Estás muito verde. — e ria que nem um desalmado.
o meu tabaco não é para gandulos
O taca-taca, taca-taca, taca-taca ainda torna mais pesada a modorra. As raras casas que se avistam vêm e vão, lânguidas, cúmplices com o estado de espírito do António.
Tinha tentado dormir, para que o tempo custasse menos a passar, mas não se conseguia ajeitar a gosto no banco austero. Nem os ossos nem a carne já são os mesmos do tempo da tropa, em que dormia até sentado numa pedra sem encosto para as costas. Acreditem que é verdade.
Entre estações e apeadeiros tinham parado oito vezes quando o inglês embarcou. Uma mochila, uma viola, cabelo pelos ombros.
O sargento Dias havia de dar conta dele, se lá o tivesse apanhado.
— Isto aqui não é lugar para meninas! Máquina zero! — havia ele de berrar.
Mas estes tempos são outros. Muita falta fazia a esta malta, para aprenderem como é a vida.
Dedilha as cordas da viola, displicente, enquanto olha, distraído, a planície.
Não há instrumento como o acordeão. Isso é que é alma. Não me venham cá com violas, nem com pianos, nem aqueles, que parece que estão a serrar, e servem para dar sono. Isso não é música. Na casa do meu pai assim que tocava música dessa mudava-se logo de posto.
— António, tu devias ir aprender a tocar acordeão com o Isidro.
Ainda tinha comprado um, em segunda mão, mas depressa desistiu. Os dedos calejados do ferro não obedeciam. Gostava de assobiar. Não eram todos que assobiavam como ele.
Os dedos do inglês eram delgados e compridos e moviam-se com muita facilidade. Devia dar um bom tocador de acordeão. É pena que se perca com violas. Mas eles lá nem devem conhecer o acordeão. Dá Deus nozes a quem não tem dentes. De certeza que o inglês não deve trabalhar no duro; se ele tivesse que trabalhar a dobrar e armar ferro; às vezes com geada, às vezes com o sol a queimar; não ia ter dedos para tocar.
Nem sempre trabalhou no ferro. Começou a dar serventia a pedreiros como quase todos. Às vezes era uma brincadeira, mas quando tocava a fazer e carregar massa para assentar tijolo ou encher chão, era duro. E ninguém quer ficar como servente. Calhou o mestre Olindo tê-lo convidado para trabalhar com ele, e nunca mais deixou o ferro. Até ao acidente.
Só não trabalhou no ferro enquanto esteve na tropa.
O inglês agora começou a cantar, primeiro baixinho.
— Olha-me este material, inglês. — e apontava para uma moça roliça que passava à procura de lugar, arrastando dois cestos.
O inglês olhou para ele e sorriu.
Não deve ter percebido, ou se calhar não gosta. Com aquele cabelo, hm...
— Não estou a ver como vamos resolver isto, a não ser que os pais da moça aceitem a indemnização e desistam da queixa. — o advogado, arranjado pelo tio, que era polícia, foi categórico.
Ela foi ganhando confiança lá em casa, ficava por lá muito tempo. Naquela noite estava uma invernia das antigas. Chuva e vento, escuro e lama. Foi ficando. A meio da noite foi ter com ele à cama. Muitos anos mais tarde veio a desconfiar que a gravidez não era dele. Mas na altura resolveu-se com um desmancho e uma indemnização de trinta contos. O pai soprava, mas pagou. O António tinha quinze anos; a Idalina, dezassete.
Para onde irá o inglês? Luxo de gente fina, deve ter paizinho rico, para andar por aí a passear de viola às costas.
Nem eu sei para onde vou; quer dizer, saber sei; mas qual vai ser o meu destino? O doutor Sabino disse que tenho poucas hipóteses de conseguir que o seguro me pague alguma coisa. Ele tinha dois no seguro, fomos três aleijados. O Mateus até nem foi má pessoa. A viúva do Manuel assim sempre recebe alguma coisa. E o Dimas está pior que eu, coitado. Azar sermos logo três. Mas coitado do Mateus, se fosse pagar seguro para todos não lhe sobrava nada, quinze homens.
O doutor Sabino diz que nem vale a pena meter o Mateus em tribunal, ele abriu falência da empresa e não tem nada em seu nome. Nem sequer o Mercedes 300 está em seu nome, quanto mais o resto. Nem eu seria capaz duma coisa dessas, sou amigo do Mateus desde moço.
O inglês parece que lhe leu os pensamentos. Será que pensou em voz alta? Mas mesmo que assim fosse, ele não ia perceber nada. O inglês continua a olhar para ele com ar de pena. Ele que vá mas é à merda. Que sabe ele da vida!
Dantes havia trabalho, muito trabalho. Pontes, muitas pontes o António fez. Quando teve o acidente havia muito trabalho. Agora já não há, mas mesmo que houvesse, o que é que ele poderia fazer sem a perna? Nem para segurança, que é o que há agora mais. Ainda há quem fale mal do Doutor Madeiro, no tempo dele havia trabalho para todos. E cursos, toda a gente fazia cursos.
O inglês agora canta alto. Uma grazinada.
— A vida é filha da puta, inglês. Disso não sabes tu nada. — o inglês não ouviu.
Bons tempos. Ganhava-se bem. Cheguei a ir à boate e pagar duas ou três garrafas de champanhe. Houve uma época que era quase todas as noites.
Foi mais ou menos por essa altura que se meteram na minha vida e me desmancharam o casamento. Gente invejosa. Já levávamos vinte anos de casados, sempre nos demos bem. Ninguém me tira da ideia que foi obra da minha santa sogra, que deu a volta à cabeça da filha.
E já se avista o rio. O inglês pousou a viola, sacou uma máquina fotográfica da mochila e agora tira fotografias.
Lá na Guiné também tive uma máquina fotográfica. Tirei muitas fotografias, estão lá para casa, três caixas de sapatos cheias. Nunca mais me apeteceu tirar fotografias. Que saberá o inglês do que é estar longe de casa por ser obrigado, e não de vontade; e ainda sujeito a levar um tiro nos cornos ou rebentar-lhe uma mina debaixo dos tomates?
Nunca vou voltar a ter uma máquina fotográfica. Com a reforma de merda que me arranjaram. Eu sei que não se recebe mais porque não se descontou tudo. Mas o Mateus pagava bem, se fosse pagar para a segurança social e para as finanças como eles queriam o que é que sobrava?
E nestes pensamentos chegam ao fim da linha. Sai para o cais suportado pelas canadianas. E só sentiu um encontrão, casual. Ouviu um rebuliço lá para trás. Alguém corria, pelo barulho seriam mais que um. Foi quando deu pela falta da carteira. Conseguiu avistar o inglês a correr veloz e pensou: 'Ah, Malandro! Já me roubou.'
Foi quando o inglês se atirou com um voo digno do Zé Gato, e derrubou um latagão que corria à sua frente. Imobilizou-o quase sem luta, devia ser perito em artes marciais, ai isso devia. De onde estava, o António não conseguia ver bem, porque entretanto tinha-se juntado gente. Mas não demorou muito e viu o latagão a afastar-se e a olhar para trás desconfiado.
Ainda o António não tinha entendido o que se passava, parado no cais, embasbacado sem saber o que fazer, quando sentiu um leve toque no ombro. Voltou-se. Era o inglês:
— Aqui tem a sua carteira, amigo. Até à vista e porte-se bem. — e afastou-se com um sorriso sacana direito a uma rapariga linda que estava ali perto à sua espera... e afinal era português.
Ainda estava ali parado quando veio direito a si nada mais nada menos que o Hilário. Companheiro de tropa, encontravam-se regularmente no almoço da companhia. Um par de abraços.
— Olha lá, ó António, agora também tens amigos gadelhudos?
— Eu? Que conversa é essa?
— Eu vi. Estavas mesmo agora a conversar com um. — e ria.
— Ah, isso foi um que me veio pedir tabaco. Respondi-lhe logo que o meu tabaco não é para gandulos.
um cheque truculento
Quando a tia Deolinda chegou à da sobrinha Beatriz teve a impressão de que mais cinco minutos e já os quatro se teriam agredido a sério.
— Alicinha, o que se passa aqui? Estão todos malucos? Se a minha mana cá voltasse acho que morria outra vez com o desgosto.
— Tá vendo? Até a tia… — e a Beatriz rebenta em pranto.
Beatriz nunca entendeu porque é que a irmã era Alicinha e ela era só Beatriz. Como nunca entendeu porque é que estando as duas juntas se dirigiam sempre à Alicinha. Dizem que os filhos mais novos são sempre os preferidos. Realmente nos largos anos de viuvez foi sempre com ela que a mãe viveu. Visitava a Alice com frequência, mas nunca lá dormia. Claro que nunca abordou o assunto com ela, não fosse pensar que a queria ver pelas costas.
— Não metas cocos na cabeça, mulher. — bem lhe dizia a tia Deolinda.
Mas então porque puxava sempre para a Alicinha, sempre a Alicinha. Sempre roupa em segunda mão. Sempre os livros em segunda mão. Até as bonecas em segunda mão, quando era pequena. Isso até ela entendia, a irmã não tinha culpa de ser mais velha. Mas o que a tirava mesmo dos eixos era o “Alicinha”. Até a doação daquele talhão para fazer a casa foi para a “Alicinha”.
— Ó, mulher, que culpa teve a tua mãe de o teu nome ser Beatriz? Não vês que naquele tempo eram as madrinhas que punham o nome? E uma santa madrinha que tu tiveste.
— Eu sei, tia Deolinda, mas é mais forte do que eu.
O tribunal deu razão à Beatriz no que toca às tornas. Bem, o advogado pediu mil e quinhentos contos, e o juiz sentenciou mil e duzentos. Mas pronto, assim já está bem.
— Aqui está o cheque. — o Marcolino estende o cheque para o cunhado, já na sala. — Nós somos ricos, o nosso trabalho não custa. — resmunga.
— Olha lá! Porque não disseste isso ao juiz, heim? Ou queres agora voltar tudo ao princípio?
E continuaram a esgrimir argumentos cada vez mais acalorados.
Por seu lado a Alice sempre se achou preterida. Como qualquer irmã mais velha, no caso dela eram seis anos, sentia-se roubada nos afectos. Porque é que a mãe só vivia na casa da Beatriz? Só ela é que era filha? Também ela precisou de ajuda, principalmente quando o Jorginho era mais pequeno. E onde estava a mãe? Sempre na casa da Beatriz. A sogra também nunca lá ficava. Sim, sei que às vezes posso ser muito exigente, quero as coisas à minha maneira. Mas a casa não é minha? Toda a gente quer as coisas à sua maneira. Não é andarem por casa com o calçado que usam na rua. Provarem a comida e voltarem a meter a colher no tacho, isso é que não. Se quero receber as minhas amigas da igreja gosto de estar à vontade, não gosto que me façam caras de censura. A casa é minha!
Mas o pior estava para vir, quando deram porque nem um nem o outro tinha o cheque.
— Querem lá ver que fui eu que comi o cheque? — e o Fernando soprava.
— Pois! Tu não foste, mas fui eu, que não sou tão sério como tu!
— O que é que queres dizer com isso?
Quando o Fernando trabalhava nas finanças teve uma vez um processo disciplinar por uns fundos que não apareciam. Veio-se a provar que se tratava de um erro do sistema e que ele estava completamente inocente. Mas o surgir da suspeita é fácil, o limpar da imagem é impossível. Toda a gente sabe.
— Vocês não me vão dizer que deram fim ao cheque. Fui eu que o assinei, não me vão dizer que não existe? — Alice voltava-se para o cunhado.
— Se calhar foi como os cheques do Eduardo e do Diniz… — a Beatriz, que ainda não se tinha metido na conversa.
Quando a crise começou a apertar e o Marcolino teve que despedir os dois carpinteiros, diz-se que os primeiros cheques da indemnização que lhes passou não tinham cobertura.
Foi no preciso momento em que a Alice ia explodir por causa da insinuação da irmã que chegou a tia Deolinda.
— Já vocês se deram ao trabalho de procurar bem a ver se encontram o cheque? Às vezes as coisas escapam-nos das mãos sem darmos por isso. Já me tem acontecido. E às vezes metem-se em sítios que não lembraria ao diabo.
Alice benze-se.
Todos contrariados lá começaram à procura do cheque. Vasculharam tudo o que lhes veio à ideia, e nada.
— O melhor é ir mandar encomendar o cheque à tia Belarmina. — opina a tia Deolinda.
— Oh, tia, isso não é coisa de Deus. — a Alicinha até ficou ofendida.
— Olhem, eu não passo mais cheque nenhum e passem bem. — e o Marcolino pega no braço da Alicinha — Vamos embora.
Foi como azeite no lume. Recomeçaram os gritos e as acusações mútuas...
Até que...
— Vamos mas é ter juízo que o Paulinho está a chegar e não quero que o meu filho veja cenas destas. — o Fernando vê a carrinha da cooperativa de ensino especial a fazer a curva da ponte.
Mas não adianta terem-se calado.
— Porque estão com essas caras? — ainda antes de cumprimentar já o Paulinho inquiria.
— Quais caras?
— Não vale a pena quererem enganar-me.
— Está bem. Um cheque desapareceu das nossas mãos aqui dentro da sala, com tudo fechado, e não o conseguimos encontrar. — explica a Beatriz. Ninguém o conhece melhor que a mãe.
Paulinho faz um gesto com a mão a indicar que não precisa saber mais nada. Fecha os olhos por breves segundos, e começa na busca. Sobe a uma cadeira de maneira a avistar o topos de todos os móveis. Depois espreita por baixo dos mesmos, onde lhe é possível. Verifica todas as ranhuras, incluindo por baixo de portas e gavetas.
— Só falta ver debaixo da estante. Têm que me ajudar a desviá-la.
— Tu estás maluco, Paulinho? — opina o tio Marcolino. — A estante está colada ao chão. Lá é que não pode mesmo estar.
— Voilà! Procurar sempre onde os outros sabem que não pode estar! — e o Paulinho já festeja vitória.
Lá se convenceram a desviar a pesada estante cheia de livros com encadernações de luxo, quase todos só lidos pelo Paulinho, e perante o espanto de todos, lá está o cheque.
faces da crise
Toca o telemóvel:
— Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
— ...
— Ah, sim, sim. Faço trabalhos especializados de limpeza de casas.
— ...
— Depende muito. Há certas casas, onde viveram pessoas com energias muitos negativas durante várias gerações, e se tornam muito complicadas. Já tive uma que tive que queimar três velas, em duas sessões. Por vezes são fáceis. Só posso fazer orçamento caso a caso.
— ...
— Então fica combinado. Até amanhã.
Dona Lucinda tem dificuldade em lidar com o tempo, agora que os miúdos já não são miúdos.
— Cindinha, também já não me faltam muitos anos para a reforma e depois já estamos ambos livres para nos fazermos companhia.
— Não?! Pelo menos sete!
O marido calou-se. Contra factos...
Ela reformou-se cedo, do banco.
— Ora vamos lá a mais uma sessão. Ponha-se à vontade, Dona Lucinda, já sabe como é. Com estas sessões a senhora já se vai sentindo mais relaxada. Mas o grande problema é a Lua em Saturno, que acho que não vai lá só com massagens. Se não der resultado teremos que fazer umas três ou quatro sessões de hipnose regressiva.
— E onde é que vou fazer essas sessões de hipnose, menina?
Cidália não responde de imediato. Concentra-se uns bons minutos massajando os glúteos ainda firmes, apesar dos cinquenta e quatro.
— Faz aqui mesmo. Eu mesma faço, dona Lucinda.
Dona Lucinda voltou ligeiramente o rosto da almofada para mirá-la com ar avaliador. Passou na avaliação.
Toca o telemóvel.
— Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
— ...
— Sim, tenha a gentileza de passar por cá na segunda-feira para analisarmos o seu caso.
E Cidália explica a Dona Lucinda:
— Na minha profissão tenho que subir ou baixar o nível da conversa conforme com quem falo.
Com a concentração do comércio nas grandes superfícies, inevitavelmente aquele comércio personalizado, mercearias, drogarias, lojas de roupas, sentiu-se e muito. O patrão da Cidália Pires não foi excepção. Começou por reduzir o pessoal, mas mesmo assim não aguentou, e teve que encerrar a loja de pronto-a-vestir de Odemano. Para agravar a situação, também o marido da Cidália passou de uma situação em que nunca lhe faltava trabalho na cofragem, para ter que andar quase a implorar a amigos por uns biscates aqui ou além. Os miúdos a crescer e a crescerem as despesas proporcionalmente.
Mas a Cidália nunca foi mulher de se render. Investiu a indemnização quase toda em cursos que lhe pudessem render alguma coisa. Começou pela manicura, mas a competição era enorme. Depressa saltou para a cartomancia, a numerologia, e por aí fora. Aprendeu que em tempos complicados as pessoas recorrem a tudo para tentar enganar a sorte, só é preciso agarrar essa oportunidade.
— Ponha-se à vontade, dona Lucinda. Afrouxe a roupa, tire os sapatos, estenda-se neste divã e relaxe ao som das taças tibetanas. A hipnose vai com certeza resolver o problema.
Como habitualmente, lá vem o toque do telemóvel:
— Fala a Cidália Pires, terapeuta. Em que posso ser útil?
— ...
— Sim! Posso tentar, nem sempre consigo, mas posso tentar. Já curei um caso de hérnia indignal. Dessas ainda não, mas posso tentar.
— ...
Dona Lucinda abotoou-se, calçou-se, pegou na carteira e saiu sorrateiramente sem a Cidália dar por isso. Quando chegou à rua correu, correu, quase até lhe faltar o ar.
À noite, de cada vez que começava a deixar-se ir no sono mergulhava num pesadelo. Era um espaço infinito em todas as direcções. E de todas as direcções surgiam faces humanas deformadas que cresciam à medida que se aproximavam e aumentava a intensidade dos gritos mais ou menos estridentes, sempre repetindo as mesmas palavras, numa berraria muito pior que insuportável:
«HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL HÉRNIA INDIGNAL ...»
Cindinha acordava banhada em suor e tremia, e tremia…
mel e limão
Oito horas de uma noite de inverno. Carlos bem acena aos táxis, que tratam de acelerar ao verem os dois homens corpulentos de braço dado. O mais velho parece ter uma daquelas bebedeiras como há muitos anos não apanha uma.
Carlos lembra-se duma vez em que ele se demorou mais que a conta. Moravam na quinta. A mãe saiu com eles pela mão. Devia ter uns oito anos e a Carolina uns cinco.
— Mãe, onde é que vamos à procura do pai?
Que saberia ela? Só sabia que já não conseguia estar em casa. Que um escuro pesado e sufocante descia sobre tudo e a obrigava a sair. Pelo menos na rua havia estrelas no céu. Seguiram pela estrada nova. O "Quatro-Olhos" acompanhava e sempre dava ousio. Chamavam-lhe "Quatro-Olhos" por ter uma pinta branca acima de cada olho, a contrastar com o castanho escuro do resto do pêlo. Ao longe, no outro lado da ribeira viam-se as luzes amareladas e mortiças da Alcaria Nova, onde já havia luz eléctrica. Não passava vivalma na estrada. Ouviam-se as rãs lá em baixo na ribeira. Um ou outro mocho piava de vez em quando. Não fazia lua, mas via-se bem a estrada com o brilho das estrelas.
Mesmo ao começar da descida para a ponte de São Cristóvão apareceu um carro na curva.
— Cuidado! Desviem-se para a berma!
O carro parou um pouco depois de passar por eles. Era o pai, o Aldemiro, grande amigo, foram tropa juntos, e o chofer, que o Carlos não conhecia, mas devia ser amigo também. O pai quis apear-se, mas não se equilibrava. E ria, ria.
Agora está tal e qual, ri, e ri. E tem o Carlos de o levar pelo braço, que não se equilibra. Por mais que tente não consegue que nenhum táxi pare. Consegue a custo fazê-lo subir para o autocarro. Depois outro autocarro. Depois o barco. No barco toldou-se ainda mais. Atrasa e adianta o relógio ao acaso e teima com os outros passageiros por causa das horas. Carlos piscava o olho aos outros e eles deviam entender que era bebedeira. Que adiantaria estar a explicar? Depois o comboio. Aí já foi mais calmo. Finalmente adormeceu aconchegado na samarra.
Falta de lembrança de ter pedido à senhora do consultório para chamar um táxi. Mas como é que ia prever o efeito retardado da anestesia, se o pai estava tão lúcido e equilibrado mesmo já um bocado depois de sair do consultório. Ainda pensou em voltar para trás a ver se havia alguém no consultório, mas lembrou-se de que a senhora já estava a vestir o casaco quando se despediram e o médico já tinha saído. A consulta até foi rápida, mas ele bem se queixava de que doía. Pudera, a anestesia ainda não tinha feito efeito.
— Ó Carlos, já reparaste que o teu pai está sempre tossindo?
Não era bem tossir, era mais um pigarrear constante. E toda a gente já tinha reparado.
— Ele não devia fumar tanto. — era opinião generalizada.
Convenceram-no a consultar o doutor Castro, um reputado otorrinolaringologista de Odemano.
De facto, foi a primeira coisa que lhe tirou, o tabaco. Ninguém acreditava que o Joaquim do Vale fosse capaz de deixar de fumar, mas foi.
Dantes, quando jogava à sueca, estava sempre de cigarro na boca. Agora implicava com os outros, que lhe incomodava o tabaco. Engordou muito, chegou a pesar mais de cento e vinte quilos.
— Tu fumas muito, Carlos!
— Diz o roto ao nu. — e o Carlos ria.
— Eu nunca fumei como tu fumas.
— Pois...
Mas o pigarro não desapareceu.
— Senhor Joaquim, não tenha medo, isto é só para ficarmos descansados. Mas vou-lhe marcar uma biópsia para um colega meu em Lisboa...
— O que é isso, senhor doutor?
— Ele vai tirar um bocadinho de carne aí da garganta, assim do tamanho dum bago de arroz. Não vai doer nada.
Passaram alguns anos depois de o resultado da biópsia não ter acusado nada de cuidado. O que não passou foi o pigarro. O doutor Castro bem receitou xaropes, comprimidos, até injecções, mas o pigarro resistia mais que as ervas daninhas da horta.
— Estanazar?
— Não! Salazar!
— Ah, Estanazar. Nunca tinha ouvido tal nome!
O pai do Joaquim do Vale era de tal maneira surdo que nunca chegou a saber como se chamava o Salazar. O Joaquim, embora mais tardio, começou a acusar o peso dos genes. Já o doutor Castro tinha morrido sem dar conta do pigarro resistente. Foi preciso consultar outro otorrino. Aconselharam-no a consultar um médico jovem, da idade do Carlos, que tinha acabado de montar consultório em Almadrava, mas já estava a ganhar fama.
— Olhe lá, senhor Joaquim, está constipado?
— Não, senhor doutor. Esta tosse anda comigo há anos.
— E nunca consultou nenhum médico?
— Oh, se consultei! Anos e anos com o doutor Castro, não sei se o senhor doutor conheceu. Morreu o ano passado.
— Há dois anos. Conheci muito bem. Um grande médico, amigo do meu pai e meu amigo. Aprendi muito com ele. E ele não deu com o mal?
— Não! Até a Lisboa fui, fazer uma biópsia.
— Ah, e não acusou nada?
— Nada!
— E está a tomar alguma coisa que ele tenha receitado?
— Já não! Ele mesmo desistiu. Que não conseguia encontrar nada que acabasse com isto. Tomo é todos os dias de manhã e à noite mel com limão.
— Hm, há muitos anos?
— Uns quinze, talvez, antes de consultar o doutor Castro já tomava.
— Pois vai deixar de tomar. E daqui a três meses quando cá voltar por causa dos ouvidos logo me conta.
E era uma vez um pigarro.
Explicou o doutor novo que o limão servia para irritar a garganta e o mel para o fixar.