o padre vermelho

    — Sabes bem que não gosto de comprar pão fatiado. Seca num instante.    
    — Sim! Mas este pão do Vale do Pato é o melhor. Até havia lá muito, mas todo fatiado.  
    Não é a primeira vez que o Jaime repara que o pão fatiado é o que mais sobra. Porque será que insistem em fatiar o pão se ninguém lhe pega?  
 
    O Manuel sempre foi um personagem apagado. Já na escola primária nunca se oferecia para responder. Nem na escola, nem na tropa, nem no trabalho, em nenhum dos vários trabalhos que teve, nunca se oferece para nada.  
 
    — Quem não aproveita as oportunidades nunca passa da cepa torta, e olha que elas passam na nossa frente uma só vez. — O Jaime tem sempre presente este conselho do velhote. É verdade que acabou afogado em dívidas, mas como é que ele podia prever que a construção iria sofrer uma crise como esta? Não foi culpa dele, que foi sempre um empresário com olho.  
    Como daquela vez que comprou aquele terreno que não valia nada e olha depois com a aprovação do PDM como conseguiu que ficasse incluído na zona industrial. É preciso cultivar as amizades certas.
    — Certas e bem oleadas. — como ele dizia, com uma piscadela de olho. O Jaime acha que tem que ter alguma ideia assim brilhante. O jornal local, que dirige, está com dificuldades.  
 
    O Manuel não tem amigos, não por ser má pessoa, mas porque não frequenta cafés, não vai à bola, nunca teve jeito nenhum para o sexo oposto, não vai à missa, não é bombeiro. Antigamente ia à pesca, passava todo o tempo livre na pesca, mas desinteressou-se desde que o peixe sabe a esgoto.  
    De há uns anos para cá gasta o tempo livre a passear pelas ruas, sem destino. Foi nesses passeios que notou tanta gente a remexer no lixo. Ao princípio era gente que lhe parecia porca, suja, demente. Mas nos últimos anos aparece gente limpa, gente com roupa lavada, gente que disfarça quando ele se aproxima. Ganhou o hábito de ir assobiando, coisa de que só se lembra de fazer quando era  moço. Mas assim deixa que dêem pela sua aproximação e não se sintam humilhados.    
 
    — Jaime! E se tu voltasses a dar explicações. Não precisavas de deixar o jornal e sempre era mais esse que entrava. — lá vinha a mulher com a conversa, cada vez mais frequente.    
    — Espera mais algum tempo. O que eu preciso é de algum furo que projecte o jornal. O meu pai dizia que de repente pode aparecer-nos na frente a oportunidade, temos que estar atentos. — Ela olhava-o, a princípio com admiração, mas cada vez mais com algum desdém, embora fizesse tudo por disfarçar.  
 
    O Manuel aproximou-se timidamente da senhora que saía da instituição com ar apressado.    
    — Precisam aqui de voluntários para ajudar?
    Foi assim que passou a ajudar os sem-abrigo. Uns sem abrigo por todo o corpo e outros apenas sem abrigo por baixo da pele. Muita fome há por aí escondida.  
 
    O Jaime, sem saber porquê, volta a pensar no pão fatiado. Passa pelo hipermercado e lá está, nove da noite e as prateleiras cheias de pão fatiado. Do inteiro nicles. Estes gajos não sabem trabalhar, pensa. Mas, sem dar por isso, volta lá, e torna a voltar.  

    O Manuel nunca dá nas vistas e inspira confiança a qualquer chefe. Já teve vários trabalhos e nunca foi despedido de nenhum, a não ser daqueles em que a empresa encerrou, que foram quatro. Nos outros dois foi ele que se despediu por encontrar melhor.  
 
    Torna-se obsessão. Sempre o cenário é parecido. Umas vezes mais, outras menos, mas sempre excesso de sobras de pão fatiado.   
 
    O último trabalho do Manuel é na reposição do hipermercado. Reposição dos produtos de padaria é o que mais gosta.
    — Manuel, esta máquina serve para fatiar o pão. Tens que ter cuidado com os dedos!  
    Depois veio outra mais segura, para a fazer cortar tens que ter as duas mãos a carregar os botões, um de cada lado; assim é impossível ter alguma das mãos ao mesmo tempo na frente da lâmina. Há invenções geniais.  
 
    Sábado à noite. O Jaime está no carro, de luzes apagadas, e confirma as suspeitas que se têm vindo a formar na sua cabeça. O funcionário sai pelas porta de serviço do hipermercado com um carrinho a caminho do contentor do lixo. Ao regressar deposita um saco num triciclo estacionado. E volta lá para dentro. Jaime espera. O mesmo funcionário sai algum tempo depois, já sem a farda do hipermercado, monta no triciclo vai-se embora. Jaime segue o triciclo.    
 
    — Aqui tem o seu cafezinho, senhor padre.
    — Obrigado, Tino.    
    — Senhor padre, já leu a primeira página d"O Megafone"?    
    — Não! Alguma coisa com interesse?
    — Está aqui! Leia, leia...  
    "GOLPE ENGENHOSO NO HIPERMERCADO
    O meliante Manuel da Silva Custódio apanhado pelo nosso jornal a vigarizar o hipermercado tal e tal... Ele ganhou a confiança dos patrões e então fatiava pão em demasia, que toda a gente sabe que não tem saída, e no fim do dia levava-o para a Casa de Acolhimento do Espírito Santo, ludibriando assim o honesto comerciante, e tal e tal e tal..."  
    O padre Correia, conhecido popularmente por "Padre Vermelho" devido às suas tendências a favor dos desprotegidos, acabou de ler, dobrou o jornal e não disse nada.  
    — Então, senhor padre? — Celestino está impaciente por ouvir a opinião do padre.  
    O padre como que voltou a este mundo:  
    — Meu filho, nunca confundas golpes baixos com golpes dos de baixo. E já agora por falar em golpes dos de baixo, traz-me lá um cálice daquele medronho que tu tens escondido por causa da ASAE.  
 

4 de fevereiro

    O barulho forte e cavernoso fez-se sentir sem aviso. A Henriqueta correu a procurar o terço e a fechar as janelas e as portas. Não sem antes chamar pelo Carlos, que andava brincando, com um buldózer feito duma pedra da ribeira com veios de sílex, junto ao caminho da chã.

    — Diz-se que é no dia 4 de Fevereiro, vizinha Tereza. Eu cá para mim tanto se me dá.
    — Não diga isso, senhora. — e a vizinha Tereza persignava-se. — Tome lá o meio quartilho e não diga mais blasfémias.
    — Com a minha idade é que me vou importar com isso! Anda Bonita! —  e lá foi sentada de lado na albarda da burra pachorrenta.
    A Henriqueta fazia que não ouvia a conversa da sogra e das vizinhas.

    — Brrrrrr Brrrrrr Brrrrrr...
    O Carlos passava os dias a surribar terra com o buldózer de pedra. Fazia os socalcos, os caminhos. Compunha a quinta e quando estava tudo acabado, destruía. O prazer estava no fazer, não na obra feita.

    — Vizinha Guilhermina, é a garrafa do petróleo e pese-me duzentas gramas de açúcar.
    — Já vomecê ouviu falar do 4 de Fevereiro?
    — Já ouvi falar, já. Para mim já não deve demorar muito, não.
    — Deixe-se de blasfémias.
    — Ó, vizinha Guilhermina, quantas vezes é que eu já ouvi falar? Quando eu era gaiata já falavam no fim do mundo. Um dia há-de ser. Antes tarde que cedo. —  e ria. — Anda Bonita, que ainda temos que passar ao poço.

    Quando era tempo de chuva é que ele adorava. Aí fazia barragens nos regatos. Até no barranco ele chegou a fazer. Barro e varas para segurar. Complicados sistemas de descarga. A preocupação era descarregar sem rasgar a terra. Usava canas, chegou a usar telhas.

    — Vizinho Maurício, ajude-me aqui a encher os cântaros, que me custa a descer da burra. Bem como me custa mais a descer que a subir. Vomecê já ouviu falar no fim do mundo?

    Quando chovia muito e não dava para sair, gostava de ficar a fazer coisas de canoira de milho, de cana, de cortiça, de arame de fardo de palha. Carlos nunca se aborrecia, o tempo nunca sobrava, era sempre pouco.
    — Carlos, anda almoçar! — era sempre preciso chamá-lo.
    Se adoecia resistia, porque a mãe mandava-o para a cama.

    — Lá na sua aldeia também já ouviu falar no fim do mundo, Dona Henriqueta?
    — É toda a gente, senhor João. Eu tenho muito respeito.
    — Oh Dona Henriqueta, eu já tenho quase sessenta e já nem sei quantas vezes assisti a boatos destes.
    Henriqueta calou-se.

    Uma vez resistiu tanto que quando a mãe se apercebeu que ele estava doente já não se aguentava de pé. Teve que lá ir o Doutor Matias a casa.
    — Seu malandro, podias não escapar desta.
    E disse um nome tão esquisito para a doença que nunca o decoraram. Uma injecção na altura e uns comprimidos.
    — Ele não consegue tomar comprimidos, senhor doutor. É melhor passar injecções se houver em injecções.
    — Essa agora! Haver há, mas olhe que nunca tinha visto tal coisa! Vá lá que vocês aqui têm sorte, têm a Marília que dá injecções a toda a gente. — e riu.

    A Henriqueta era alentejana. Nem pai, nem mãe, nem irmãs, nem irmãos, ninguém ia à missa. Nunca se soube donde veio a sua devoção. Mas era muito devota e temente a Deus.
    Com o barulho correu a fechar as janelas e as portas, a rezar e a chamar o filho:
    — Carlos! Carlos! Anda para casa!
    O Carlos veio a correr, mas não para casa, veio buscá-la para irem ver se o chofer da camioneta tinha ficado mal. Ele viu tudo. A camioneta não fez a curva e derrubou três marcos daqueles que se usavam, ligados por cabos de aço, para evitar que os carros rebolassem pelos taludes. Derrubou três marcos e ainda foi derrubar o marco do quilómetro vinte e cinco, que ficava a mais de vinte metros...
    Era 4 de Fevereiro de 1961, o chofer ia sozinho e não ficou mal.

* Facto notável: a data de 4 de Fevereiro de 1961 é tida por muitos como a data do início da luta armada em Angola

uma cerveja

     Depois, muitos alarmados pelo PREC, outros por gosto, outros por verem os outros, outros porque sim, quase cada homem da zona comprou uma espingarda. Hoje há mais caçadores que há caça, segundo dizem.
    Nem sempre assim foi. Não há muitas décadas havia quem vivesse do que conseguia com a espingarda, e que iam vender à vila. Conta-se, talvez com o exagero próprio das lendas, que havia quem levasse o burro carregado duas vezes por dia, uma de manhã e outra à tarde; lebres, coelhos, perdizes, codornizes, tordos, rolas, pombos bravos, que o marido caçava.
    Nesse tempo o Gregório era um dos caçadores que não fazia mais nada para ganhar a vida. Hoje ninguém sabe do que vive, e também ninguém quer saber. O certo é que tem dinheiro e gosta de exibi-lo. Mais de uma vez já aconteceu serem vizinhos que lhe valeram nas feiras, quando, por sorte, deram com ele a mostrar a carteira bem recheada e um público demasiado interessado a cercá-lo, a cercá-lo.
    
    — Quer beber uma cerveja, senhor Carlos, pago eu?
    O Carlos olhou o homem com curiosidade. Tinha lá almoçado algumas vezes, bebido uma cerveja ou outra, de vez em quando. Não tinha nenhuma confiança especial com o taberneiro, que tinha fama de forreta. A que propósito vinha agora a oferta? Desconfiado, mas aceitou; não via qualquer razão para recusar, afinal foi para beber uma cerveja que lá entrou.
    Dois dedos de conversa. O negócio está mau, a vizinhança não é boa, etc. e tal.
    — Sabe quem morreu?
    — Não! Não sei!
    — Era lá dos seus lados. Mas mora ali atrás. O Armando Correia.
    Carlos ficou sem pinga de sangue, querem lá ver que este alarve me pagou a cerveja para festejar a morte do outro. Despediu-se quase sem palavras. A cerveja não lhe caiu bem. Teve desejos de vomitá-la, não conseguiu.
    Não era que o Armando Correia lhe inspirasse a mais leve simpatia. Lembrava-se até da primeira vez que o viu e ouviu o seu nome. Devia ter uns oito ou nove anos. Andava brincado perto da estrada, entre as figueiras, atrás dos passarinhos, quando o tractor rebolou pelo aterro abaixo. Coitado do tractorista preso e entalado com o óleo quente a derramar-se-lhe por cima das pernas. Correu a procurar gente para avisar.
    Veio uma multidão. Tiraram o homem, mais tarde soube que se salvou. De quem era o tractor? Ouviu-o de um dos presentes em voz baixa com outro:
    — Aquele que chegou agora é o dono do tractor, o Armando Correia. Aquilo é um canzil e um caloteiro do piorio.
    O Carlos veio a confirmá-lo muito mais tarde, já depois de crescido. Não era pouco provável que o taberneiro tivesse fortes razões para não gostar dele. Mas porra! Daí até festejar a sua morte?
    
    O Gregório é um janota. O hábito de vê-lo sair sempre aperaltado faz que nem nos interroguemos como o consegue. Já que vive só. A mulher foi-se embora com as filhas há décadas. Também ninguém sabe porquê, nem quer saber. A casa onde vive, e onde ninguém mais vai, vista de longe parece um pardieiro. Ninguém dirá que mora lá gente, e muito menos gente janota. Foi emprestada ao seu bisavô por um compadre, a troco de uns favores de que já ninguém se lembra. Ali nasceram e se criaram trinta e sete almas desde então.
    Um dos descendentes do tal compadre, por sinal ajudante de um notário de Lisboa, conseguiu há quinze anos reunir outros descendentes e vender a casa ao João Ratinho, que tinha direito de preferência. A reserva de usufruto enquanto vida ficou assegurada para o Gregório, contra a vontade do comprador. O Ratinho é um ganancioso bem conhecido por toda a vizinhança.
    
    Uns meses depois do episódio da cerveja, Carlos cruzou-se com o Armando Correia na estrada. Nunca tinha pensado vir alguma vez a sentir satisfação por ver o Armando Correia, e bem vivo. O que tinha acontecido é que este Armando Correia era o júnior, o que morreu e veio a notícia no DN era o sénior.

    Agora está o Carlos sentado sozinho no lado de fora, mesmo à entrada do café, quando o João Ratinho assoma lá à curva. Reconhece-o e não estranha, deve vir à procura do cantoneiro da água da barragem. Mas, quando ele passa pelo cantoneiro e continua direito ao café, já estranha. O Ratinho nunca entra em cafés a não ser para falar com alguém. De repente, sem saber porquê, surge-lhe a imagem do taberneiro e da cerveja de anos atrás. É por isso que já está à defesa quando o Ratinho se lhe dirige.
    — Carlos, queres beber uma cerveja?
    Uma sensação arrepiante percorre-lhe a espinha.
    — Não, obrigado!
    O Ratinho entrou no café. Quando sai entrou o Carlos.
    — Ai vocês foram beber as cervejas pagas pelo Ratinho?! Já vocês viram alguma vez o João Ratinho pagar alguma coisa a alguém?
    — Tu não me digas… —  parece que ao Joaquim do Vale lhe assomou a suspeita, talvez pela cara do Carlos.
    Realmente a cada um tinha parecido estranho o convite.
    — Digo sim, pai! Vão a ver que morreu o Gregório. Era quase capaz de jurar.
    Olharam uns para os outros com ar de quem já não entende nada do mundo.
    — Eu não sou capaz de acreditar numa coisa dessas.
    — Acredite, tio Constantino! Eu não caí porque já não seria a primeira vez que me acontecia coisa parecida.
    — Ai, filho dum cabrão! Tu não me digas uma coisa dessas. —  e cuspia o resto da cerveja que ainda tinha na boca e agora lhe sabia mal. Muito mal.



caiação

    Sala cheia: a escola primária.
    Muitos rostos bem curtidos pelos sóis, pelas geadas, pelos ventos; mas a maioria juventude.
    — Estas é que são as pessoas sãs, como tenho dito, as pessoas do campo. — e o doutor Barros observava os colegas da mesa com ar paternal.
    — Para dizer a verdade parece-me um pouco estranho ver aqui tanta gente.
    — Vai ver que corre tudo bem, comissário Pontes. — era um título que já vinha de Moçambique — São pessoas simples, trabalhadoras, honestas. Aqui os comunistas não entram.
    — Deus o ouça, doutor Barros.
    Médico de clínica geral na Vila Ruiva, o doutor Barros tinha sido por duas vezes presidente da câmara. E gostava de afiançar a pureza das suas gentes. Mais que um dos correligionários tinha opinado que não deviam ir fazer sessões de esclarecimento sem protecção. Mesmo as pichagens não era muito seguro irem só três pessoas. Mas isso ainda vá que não vá, iam a altas horas da noite e sem que ninguém desse por nada.
    — Já não se lembram do Solar de Vidro?
    — Aqui?! Nem pensar. Eu ponho as mãos no lume por estas gentes.
    — Cuidado! não se queime. — mas o comissário Pontes calou-se perante o olhar ofendido do outro.
    Coube ao doutor Barros a apresentação. Pouco ou nada a apresentar sobre si próprio. Todos o conheciam.
    — Aqui ao meu lado direito o doutor Pontes.
    O comissário Pontes odiava que o chamassem de doutor. A ele, que tinha a quarta classe. Tinha era muita tarimba e disso se orgulhava. Doutores, doutores, a maior parte não vêem um boi à frente do nariz. Chamam-nos doutores para nós também os adularmos. E mergulhava nos seus pensamentos mais recônditos.
    Surgia-lhe a imagem daquele advogado que teve a ousadia de o acusar em tribunal de ter usado “métodos pouco ortodoxos” no apuramento da verdade. Que vontade de lhe despejar na cara ali mesmo tantas coisas que sabia dele, como a do negócio das madeiras preciosas. E não ficava por aí. Conteve-se porque o dever acima de tudo. Mas se ele pensa que estou esquecido está totalmente enganado.
    — O doutor Pontes é um homem dos de antigamente. Com um curriculum invejável, sempre em defesa da Pátria. — continuava o doutor Barros.
    ‘Que saberá ele de defesa da Pátria?’, matutava o comissário.
    E observava, nervoso, as caras impassíveis dos camponeses. Era mesmo o que o inquietava, teve consciência disso.
    — Ao meu lado esquerdo o engenheiro Amado, candidato a deputado à Assembleia Nacional. — o engenheiro toca-lhe no braço e segreda-lhe ao ouvido. — Perdão! À Assembleia Constituinte… — prossegue o doutor Barros.
    — Não sei se o doutor Pontes quer dizer alguma coisa?
    Que não! Abanou a cabeça o comissário.
    — Então passo a palavra ao engenheiro Amado que terá a honra de os esclarecer sobre as nossas propostas.
    O engenheiro Amado levantou-se. Era um homem alto, na casa dos quarenta. Elegante e desempenado.
    — Boa noite! — a voz era clara. — Como sabem, vai haver eleições para a Assembleia Constituinte. O nosso partido é o único que não defende o socialismo… — e continuou na exposição das suas propostas políticas.
    O comissário Pontes estava cada vez mais inquieto. Estranhava o silêncio da sala, onde só se ouvia a voz pausada do engenheiro Amado e algum raro pigarrear.
    Afigurou-se-lhe por duas vezes vislumbrar esgares na face de um jovem de barbicha sentado na fila da frente, mas não teve a certeza.
    Terminada a intervenção do engenheiro Amado, retomou a palavra o doutor Barros.
    — Bem, agora ficamos à espera das vossas perguntas. Eu próprio e os meus colegas, especialmente o engenheiro Amado, que é um homem mais novo e mais a par das novidades, teremos todo o gosto em os esclarecer.
    Silêncio total.
    — Ninguém tem dúvidas? Não se acanhem, eu sei que não estão habituados a falar em público, mas não tenham vergonha. Estamos em democracia.
    Outra vez ao comissário Pontes lhe pareceu lobrigar um trejeito estranho no rosto do jovem da barbicha. Desta vez seria capaz de jurar.
    — Bem, nesse caso damos por encerrada a sessão. Boa noite e não se esqueçam de votar no nosso partido.
    Levantou-se o jovem da barbicha. Instintivamente o comissário olhou para a porta, que já estava barrada por dois corpulentos e pareceu-lhe haver mais alguns na rua.
    — Pronto! — era o rapaz da barbicha — Então vamos lá despachar que temos muito trabalho pela frente. Ali fora estão uns baldes de cal e uns pincéis. A tarefa só acaba quando estiverem caiadas todas as paredes que os senhores sujaram na quinta-feira passada.

uma albarda

     — Mãe, compre-me aquela camioneta. — e apontava para uma camioneta de lata na montra do senhor Loução. O que ele queria mesmo era um buldózer. Desde que tinham começado a surribar a terra do Baltazar não largava as máquinas. Quando fizeram uma reparação de fundo no D6, mesmo ali debaixo das alfarrobeiras grandes, ele mal comia para ir para lá a correr. Quando lhe perguntavam o que queres ser quando fores grande, ele quase gritava: serralheiro!

    — Brrrrrr! Que frio! — a Dona Carminho Mendonça entra na loja a fazer que bate o queixo.
    — Senhor Sousa, há algumas novidades?
    — Agora nada, mas lá para Janeiro espero receber muitas.
    Dois dedos de conversa com as manas Tavares, que passam lá quase todas as manhãs. Uma espreitadela para a rua de vez em quando.

    Henriqueta puxa o filho pelo braço.
    — Compro manteiga de vaca. Não queres?
    — Quero! Quero!

    — Dona Carminha, está aqui aquilo que pediu ontem à minha patroa. — a rapariga assoma à porta e estende um envelope fechado.
    — Piedade! Quantas vezes tenho de te dizer que não sou Carminha, sou Carminho?
    Abre o envelope: “Amanhã às 11 horas”.

    Manteiga de vaca é um luxo raro. Cem gramas, embrulhada em papel pardo, de tarde em tarde. Mas sabe tão bem! Quando alguma das vacas está criando, a mãe também aproveita a gordura do leite e bate com sal. É cá um sabor! As vacas são de trabalho, daquelas ruivas de cornos grandes. Dão pouco leite, mas muito forte. Já quase não há trabalho para elas, mas o patrão diz que uma quinta tem de ter uma junta de vacas.
    — Senhor Loução, quero adubos para as chouriças.
    — Quantas arrobas?
    — O meu Joaquim diz que umas oito... e pese-me também cem gramas de manteiga de vaca.

    — O meu marido diz que no banco, de há uns tempos para cá, é uma vergonha. Aparece gente a querer depositar dinheiro, que ainda há pouco tempo os víamos aí virem à vila com uma mão atrás e outra à frente.
    Dona Carminho já não tem pressa. Entretém-se à conversa com as manas e a Dona Guida que às vezes vem ajudar o marido na loja, mais até para espairecer.
    — Atrás de tempos tempos vêm, Dona Carminho.
    — A gente sabe que é assim, senhor Sousa, mas não sei onde isto irá parar.

    — Se Deus quiser, para o ano que vem já pode ser que se tenha dinheiro para a camioneta, Carlos, se a sementeira correr bem. Mas até lá não temos. —  uma lágrima, mas também uma esperança.
    — E uma buldózer!
    — Logo se vê.
    Com o regadio da barragem já alguns se vão equilibrando. Ainda o que vale é que o patrão diz sempre que sim:
    — Senhor Antunes, o que dava agora era surribar aquele bocado de nata do outro lado da ribeira e plantar tomateiras enquanto as árvores crescem. Dá boa sementeira pelo menos por uns três anos.
    — Faça senhor Joaquim, faça! Como você fizer está bem.
    Os feitores da casa não gostam nada, sentem o seu terreno ameaçado. Nem os feitores nem o filho do senhor Antunes.

    O marido da Dona Carminho é gerente do banco, do único banco da terra. Ela até gostaria de ter um emprego, para não se aborrecer tanto. É verdade que não tem mais do que a quarta classe, mas poderia montar uma loja.
    — Tu não precisas de trabalhar. E demais, o que iriam dizer as pessoas? A senhora do gerente do banco a trabalhar?
    Na verdade ele acha que uma mulher apresentável como ela não seria muito seguro trabalhar fora, em contacto com outros homens. A carne é fraca, nunca se sabe. Ainda por cima com menos quinze anos do que ele.

    Descem a rua dos advogados. O Carlos tem que empregar habilidades de equilibrista para se segurar com as botas cardadas na calçada de pedra oleosa.
    — Senhor João, hoje quero pouca coisa. Massa, arroz e açúcar.
    — Pois, vocês agora já têm lá mercearia e esquecem-se de quem precisaram.
    Henriqueta engole em seco, pois algumas vezes tinha precisado de comprar fiado. Não muito, diga-se em abono da verdade. Mas não gostou nada de que lho atirassem à cara, não está habituada a isso.

    A Dona Carminho morria de tédio nesta vila, ela que vem duma terra não muito, mas um pouco maior. Isso não escapou ao Dr. Taborda, advogado de renome na praça. Encontram-se de vez em quando em casa da Dona Eugénia, viúva de há muitos anos e patroa da rapariguita de há bocado.

    — Carlos, agora já só falta ir comprar o cotim para as calças do teu pai, que já não tem nenhumas que não pareçam o mapa de Portugal.
    — O mapa de Portugal?
    — Sim! Cheias de remendos. Quando fores para a escola logo aprendes o que é o mapa de Portugal. Aproveito e com o dinheiro dos ovos compro também uns oitenta centímetros de chita para fazer uma saia para mim. E depois vamos esperar a camioneta da uma.

    Na loja continuava a conversa animada, agora tinha-se juntado também a Dona Elisete, esposa do Dr. Delegado do Ministério Público.
    — Uma pessoa já não sabe o que há-de usar que as pobres não usem. — e a Dona Carminho não via os sinais que o senhor Sousa lhe fazia apontando o queixo para a porta por onde Henriqueta entra com o Carlos pela mão.
    — Uma albarda, minha senhora. Compre uma albarda! Que isso as pobres não usam!

o parafuso

     Chovia que Deus mandava. A lama era tanta que a bicicleta não ajudava. Era preferível continuar a pé e a bicicleta servir de apoio para se equilibrar. A luz nem pensar, o dínamo nem rodava com a lama que se acumulava no pneu. O que vale é que conhecia aqueles caminhos tão bem que se guiava pelas silhuetas das oliveiras e das alfarrobeiras. E se o doutor tiver saído? As silhuetas de vez em quando desapareciam quando a chuva batia com mais força. Tinha que chegar à do Mogo para daí telefonar para o doutor Matias. A seguir à do Pinguinhas a chuva amainou. Agora era a descer e melhor caminho, experimentou a montar-se na bicicleta, mas depressa desistiu. Escorregava aqui, encalhava ali, e receou que pudesse cair, ficar mal e não conseguir chamar o doutor a tempo. E se o doutor tiver saído? Afastava este pensamento com um gesto da mão. Mas de vez em quando ele voltava e era insuportável. Era só mais uma subida e depois já se havia de ver a venda do Mogo lá  em baixo antes da curva. Havia de se ver se a chuva não tivesse voltado outra vez com força. Quando chegou à portela suava debaixo da samarra. Encharcado, o suor misturava-se com a água que escorria pelas calças abaixo. Mas agora já era sempre a descer.

    — Eduardo, hoje não me apetece sair. — e passava a mão pelo cabelo do marido, já a ficar grisalho.
    Ele fez que não ouviu.
    — Apetece-me ficar aqui no quentinho ao pé do fogo. — e adoçava a voz.
    Procurava desculpas, não porque não gostasse também das saídas, mas receava que ele se estivesse a viciar no jogo. Não notava que ele perdesse o controlo, mas a verdade é que desde que abriram o casino na Almadrava era vê-lo lá quase todas as noites.
    Ele foi até à janela e ficou a olhar para a chuva.
    Foi quando o telefone tocou.
    — É para o senhor doutor.
    — Quem é, Laurinda?
    — É o senhor Domingos Parafuso. Desculpe o senhor doutor, eu não sei o nome dele. Toda a gente o conhece por Parafuso.
    — Não faz mal, Laurinda.

    O doutor Matias era um lavrador. Filho único, o pai deixou-lhe três quintas espalhadas pela freguesia e mais as casas na vila, junto ao que antes tinha sido lagar de azeite, e agora são arrecadações de apoio às quintas. Homem pacato, alia gostos refinados a maneiras rústicas, por vezes a raiar o rude. São lendários os seus lapsos. Conta-se que uma vez receitou a um paciente “duas carradas de estrume e um bidón de gasóleo”.

    — Problema resolvido, Hilda, já não precisas sair. Eu é que tenho que ir ao Vale da Lama.
    — Com um tempo destes?
    — É o filho do Parafuso. Tenho que ir, pelo que ele me descreveu é uma difteria, garrotilho. Pode ser fatal se não for medicado.
    — Eu sei. — e passava a mão pelo cabelo do marido, agora sem fingimento. — e sabes o caminho?
    — Acho que seria capaz de lá ir ter, mas pelo sim, pelo não, e com este tempo, ele está à espera na venda do Mogo.

    Já passa muito da meia-noite quando o doutor Matias parou o Peugeot 404 novinho e todo enlameado na rua da venda do Mogo, onde o Parafuso tinha deixado a bicicleta no alpendre. Era mesmo um garrotilho, e tinham chegado a tempo.
    — Agora não tenho como lhe pagar, doutor, mas diga-me quanto é, e pagarei assim que puder.
    — Quinhentos escudos. — com o escuro não se vê a cara do Parafuso, mas é melhor assim.
    — Isso não é muito, doutor? — balbuciou ao fim dum momento.
    — Quem quer bons ofícios aprenda-os.

    Estava o Parafuso a jogar às cartas à do Mogo num domingo à tarde quando chegou o filho do quinteiro do Azinhal na bicicleta à sua procura:
    — O doutor Matias quer que você vá lá à quinta pra arranjar o carro.
    — O novo?
    — Não! O boca de sapo.
    — Diz que já lá vou. É só acabar a partida.

    Domingos Cabrita Guerreiro é conhecido por toda a freguesia e arredores por Parafuso. Há quem tenha alcunhas muito menos a propósito. O Parafuso é um exímio mecânico, de automóveis, de máquinas agrícolas, de camionetas, de motores de rega e industriais. De tudo. Estão a ver aqueles músicos brilhantes que tocam de ouvido e sabem o que ninguém lhes ensinou. O Parafuso é isso mesmo, mas com a mecânica.

    — Grandes carros, doutor. Já está como novo. Tem aqui carro para mais uns vinte anos. É só estimá-lo.
    — E quanto é, Parafuso?
    — Quinhentos escudos.
    O doutor Matias abriu a boca de surpresa:
    — Eu não te comprei um carro, só mandei consertar este.
    — Quem quer bons ofícios aprenda-os, senhor doutor.