o bloqueio

     O cego ficou parado no largo. Tenteava uns passos inseguros, mas não saía do mesmo sítio. Notava-se que não sabia como sair dali.
    — Boa tarde, amigo. Precisa de ajuda?
    — Boa tarde, amigo. Antes de mais apresento-me. António de Campos. Muito prazer!
    — Domingos Rocha. O prazer é todo meu! Se precisar de alguma coisa?
    — Preciso, sim, amigo. E agradeço muito. O amigo tem telemóvel, que me possa fazer uma chamada para a minha irmã? Ela mora aqui na Almadrava.
    — Mas não estamos em Almadrava, estamos em Odemano. Daqui a Almadrava são uns trinta quilómetros. Talvez não sejam trinta, mas vinte e muitos são.
    O cego ficou boquiaberto.
    — Não me diga uma coisa dessas. Pedi ao motorista do expresso que me avisasse quando chegássemos à Almadrava... mas faça-me esse favor, ligue na mesma para a minha irmã e diga-lhe onde estamos. Ela deve saber onde é. Mora por cá há muitos anos. O meu falecido cunhado era da Almadrava.
    O cego tira um papel da carteira com o número de telefone.                 Domingos chama para o número escrito no papel.
    Não atendem.
    — Não me admiro que não atenda. Ela é muito surda, mas não vale a pena insistir. Quando ela vir a chamada ela liga de volta. É sempre assim. Ainda espero vir a conseguir usar um telemóvel. Faz muita falta, e nas minhas condições muito mais.

    — Está bem, Domingos. Não deixes de ajudar quem precisa.
    — ...
    — Pois, assim estás dependente de quando a irmã do senhor voltar a ligar. Eu entendo.
    — ...
    — Até logo. Beijinhos.
    Conheceram-se pela Internet. Domingos viúvo, Alzira divorciada. Hoje será o grande dia em que se irão conhecer ao vivo. Alzira tem cada vez mais a certeza de que não se irá desiludir. Domingos revela-se-lhe mais uma vez uma pessoa muito humana, muito sensível. Ele estava preocupado que ela não entendesse a demora. Como poderia não entender gesto tão nobre como ajudar um pobre cego perdido sem conhecer a cidade?

    — Sabe, amigo, eu não sou cego de nascença. Fiquei cego de um dia para o outro, há três anos. Eles agora dizem invisual, mas eu sou mesmo cego. Quero lá saber da palavra que eles usam, não é isso que me dá vista.
    — Lamento muito.
    — Deixe lá, amigo. O pior já passou. Os primeiros dois anos foram os piores. Não me conformava. Olhe que ainda pensei pôr termo à vida. É verdade. E eu que gosto tanto de viver.
    — Fico sem palavras.
    — Não fique, amigo. O pior já passou. É um lugar comum que nós resistimos mais do que imaginamos. Mas é verdade, eu agora tenho a certeza. Imagine que eu sempre tive uma vida bem vivida. Ao princípio foi isso que mais me custou. E sozinho. Tenho dois filhos mas têm a vida deles. A minha esposa morreu há dez anos. Mas sabe, amigo, foi mesmo essa vida agitada que me dá as recordações que me permitem viver agora. E aqui onde estamos estou a sentir-me em casa. Este cheiro a mar. Trabalhei muitos anos na lota da minha terra.
    — Aqui há certos dias que cheira muito mal. A primeira vez que vim a Odemano, tinha cinco anos. Vim com a minha mãe ao médico. Passados quase cinquenta ainda tenho algumas recordações desse dia. Uma grua, os barcos e o cheiro, sobretudo o cheiro.
    — Cheira mal? Para mim este cheiro desperta-me das melhores recordações da minha vida. Porque não vamos passear um bocado à beira-mar. A minha irmã pode telefonar a qualquer momento. Mas também pode demorar. Às vezes anda lá nas coisas dela e não se lembra de ir ver se tem chamadas.

    — ...
    — Agora estamos aqui num restaurante. O senhor António está a jantar. Eu pago-lhe o jantar. Confesso que também já comia. Coitado, ainda não recebeu a reforma este mês. Vinha a contar jantar com a irmã, mas ela ainda não ligou...
    — ...
    — Eu sei. Assim que ela ligar eu ligo-te para ir ter contigo. Eu sei que o arroz de pato frio não tem graça nenhuma, mas que hei de fazer?
    — ...
    — Beijinhos.

    — Sabes o que te digo, Alzira, esse Domingos deve ser é um banana.
    — Oh mãe, ele é um amor de pessoa.
    — Hm, queira Deus que me engane... o outro era vivaço demais, mas tudo tem um ponto certo.
    Alzira calou-se. Se calhar a mãe teria razão. Mas não acredita. O Domingos é uma jóia de pessoa, tem a certeza.

    Alzira casou nova. Ele era um bom trabalhador, e justiça lhe seja feita, um homem bom. O pior é que tinha mau vinho, com a agravante de que gostava de beber. Não se pode dizer que fosse alcoólico, nunca bebia sozinho. Mas eram mais que muitas as vezes que o teve que ir buscar à esquadra da PSP. Os polícias conheciam-no e sabiam que quando ela chegasse ele acalmava. Assim que os filhos atingiram a maioridade pediu, exigiu, o divórcio. Já não podia suportar mais.

    Eram dez horas e trinta e dois minutos quando o telemóvel tocou. No outro lado uma voz feminina:
    — A minha mãe tem aqui uma chamada não atendida. Pedimos desculpa, ela é surda e distraída. Suponho que seja da parte do meu tio António, um senhor cego?
    — É sim, senhora. Temos estado à espera.
    — Mil desculpas, meu senhor. E antes de mais obrigado pela paciência e boa vontade. Sabe-me dizer onde estão?
    — ...
    — Então vão ter ao bar “Chinchilas” que fica aí perto, qualquer pessoa sabe dizer onde é. Dentro de meia hora no máximo estamos aí.

    Quando o casal saiu do carro a rir e se dirigiu ao Domingos, este estranhou o tom, mas nem por sombras desconfiou da realidade.
    — Nós somos uma equipa de um psicólogo, uma antropóloga e um actor e estamos a fazer um estudo sobre como são tratados pelos cidadãos as pessoas com imparidade. Parabéns, senhor Domingos! Portou-se muito bem.
Domingos olhou para o cego e este já não tinha a bengala nem os óculos escuros e sorria para ele. Passa-lhe uma chispa pela cabeça, atira-se ao falso cego e dá-lhe dois valentes murros na cara.
    — Este é por mim! Este é pela Alzira! — e espumava.

    — Mas este número é da polícia!!!
    — ...
    — Como é que dizes? Mandaste o cego para o hospital com dois murros? Um em teu nome e outro no meu? Que raio de conversa é essa?
    — ...
    — Desculpa lá, Domingos, mas esse filme já eu conheço de cor e salteado. Tomara que não conhecesse. Foram muitos anos.
    — ...
    — E não vale a pena me tentares contactar pelo Facebook, que te vou bloquear já... ou eu não me chame Alzira... olha, boa sorte!









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