Não gosto nada de ouvir as pessoas dizerem dona Maria, dona Guilhermina, dona Albertina. E quando dizem dona Aurora então chega-me a mostarda ao nariz. Eu não sou dona de nada. Eu sou uma pessoa que veio ao mundo d’em pelão, e quando morrer também não levarei nada. Então porque me haviam de chamar dona Aurora?
Estou aqui a pensar se é assim que se escreve “d’em pelão”. A minha professora primária dizia que isso não se diz, quando muito poderia dizer-se “em pelão”, mas o termo correcto é “nua”. Ora eu acho que a palavra “nua” é muito fina. E eu sempre ouvi a minha mãe e a minha avó dizerem “d’em pelão”, e elas eram pessoas que sabiam o que diziam. Eu gosto de falar bem e bem explicado. Não sou como aquelas pessoas que comem metade das letras. Eu nunca digo farrobeira. Se está escrito alfarrobeira, porque é que havia de dizer farrobeira? Mas também não gosto de falar com palavras finas. Dizer palavras finas é para gente rica, e eu sou pobre. Nasci pobre e hei-de ser pobre toda a vida. Pobre mas honrada!
Também não gosto de ouvir chamar tia a toda a gente. Graças a Deus tenho duas sobrinhas que são umas jóias. Ambas casadas de fresco com uns maridos que também não lhes ficam atrás. Um é factor do caminho de ferro e o outro trabalha nas finanças. Gente honrada. A esses eu acho que está certo chamarem-me tia Aurora. Mas porque raio é que as outras pessoas me haviam de chamar tia Aurora. Perdão, eu disse raio? Não costumo praguejar, peço desculpa, perdi as estribeiras. Acho que isso de chamar tia até podia ser ofensivo para as minhas santas sobrinhas e para os seus excelsos maridos. Mesmo aos filhos das minhas sobrinhas, quando nascerem e crescerem, eu acho que não ficará mal chamarem-me tia Aurora.
Mas não é só o chamarem tia a toda a gente. O pior é que nem sabem dizer tia. Dizem ti: ti Joquina, será que nem sabem dizer Joaquina, ti Joana, ti Matilde, ti Custoida, também parece que não sabem dizer Custódia. Eu não, eu gosto de chamar as pessoas pelo seu nome de baptismo, não é Inaiça, nem Abil, nem Zei; é Inácia, é Abílio, é José.
Acho uma falta de respeito as pessoas dizerem:
— Olha, além vai a Aurora.
Eu não andei com elas na escola. Haja respeito. Ainda há outras que tomam uma familiaridade que ninguém lhes deu. Ainda no outro dia a esposa do senhor Fernando da mercearia da vila se dirigiu a mim assim:
— A amiga quer mais alguma coisa?
Ora, eu conheço a senhora só lá da mercearia, não tenho qualquer amizade com ela. Estive quase para lhe dizer isso mesmo.
Também parece que está na moda as pessoas chamarem vizinha a toda a gente. Ora, a minha vizinha é a senhora Amélia, que mora mesmo aqui ao lado desde que casei e vim morar para aqui. Ainda não disse, mas eu era do Mioto. O meu Manuel é que era daqui. E não sou pessoa de modas. As pessoas que vão atrás de modas é porque não têm personalidade. Vão atrás dos outros. Eu não ando cá por ver andar os outros.
Também não gosto nada de ouvir as pessoas dizerem “coisa” por tudo e por nada. Dizem coisa, dizem coiso, qualquer dia dizem coisar. E reparem que usam a coisa e o coiso a torto e a direito, tanto para designar aquilo de que não sabem o nome como para classificar com adjectivos que não conhecem ou de que não se lembram. No outro dia ouvi um empregado das finanças dizer “A coisa está a ficar coiso.” Quem é que entende o que o homem queria dizer? Graças a Deus, o meu sobrinho não é assim. É uma pessoa com formação. Fala bem, explica-se bem. Estou muito contente com os escolhidos das minhas sobrinhas.
A mim, a não ser o meu marido e as minhas filhas e netos, as minhas colegas de escola, as minhas amigas de infância, a minha vizinha, as minhas sobrinhas e respectivos maridos, não admito que me tratem por Aurora, nem por mãe, nem por avó, nem por vizinha, nem por tia. Por “ti” então não admito a ninguém. E por dona só admitiria à minha “Borboleta” se ela falasse, que não lhe falta muito. Mesmo aos gatos não admitiria, porque não tenho mando neles.
A mim, todas as outras pessoas, se quiserem ser bem educadas, tratem-me por senhora Aurora. É assim que eu trato as pessoas. Por senhora e por senhor, por menino e por menina, se se tratar de pessoas solteiras. Custa assim tanto?
Talvez estejam pensando: 'Onde quererá a senhora Aurora chegar com esta conversa toda?'
Pois bem, ainda anteontem vinha eu da ribeira com a alcofa da roupa à cabeça. Aqui dizem barreleira. Ora, uma barreleira serve para pôr a roupa na barrela, esta eu uso para carregar a roupa. Sim, é verdade que às vezes também uso para isso, quando levo roupa branca. Chego lá ao lavadouro e a primeira coisa que faço é esfregar a roupa com os tomates do inferno e pô-la na alcofa para desencardir. Com esta terra barrenta daqui, que entra por todo o lado, é o melhor que há para desencardir a roupa. Mas eu gosto mais de chamar alcofa. A minha é de esparto, há quem goste das de palma, para mim não há como as de esparto.
Como ia dizendo, vinha eu da ribeira, atravessei a estrada nova... que saudades da minha terra. No Mioto há água com fartura. Há dois poços, há a mina, para regar as hortas. Para beber, para a cozinha, para lavar, há uma fonte mesmo no meio da aldeia, que corre todo o ano. Água tão fina, às vezes até nem o sabão lhe pega, de tão fina que é. Uma pessoa bebe e nunca pesa no estômago. É um regalo.
Atravessei a estrada e ouvi muito bem umas vozes de raparigas do lado da paragem da camioneta:
— Ó ti Coisa! Ó ti Coisa!
Ora, como eu não sou ti Coisa, nem olhei.
Elas lá continuaram a bradar:
— Ó ti Coisa! Ó ti Coisa!
Quando cheguei a casa e fui guardar a roupa, faltavam-me uma camisa branca do meu Manuel e umas cuecas minhas. Lá tive que voltar para trás e apanhar as peças de roupa, que ainda lá estavam, todas sujas de terra, mesmo onde eu ia quando as raparigas começaram a bradar. Tive que voltar à ribeira, a camisa era para o meu Manuel ir ontem a um funeral.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
a senhora aurora
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Antigamente as mulheres eram tratadas por senhora ou menina, mas "ti coisa" é realmente muito pindérico.
ResponderEliminarReli, ri e adorei
Obrigado.
EliminarBelo texto. Agora a sério, "qualquer coisa" menos "você".
ResponderEliminarPrecisava de sorrir, obrigada. Quanto ao assunto, tudo menos "você". E há quem use.
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