pechincha

     — Onde é que vai com uma pressa dessas, compadre Silvino? — o Severino resmungou qualquer coisa ininteligível e seguiu caminho sem sequer abrandar o passo nem olhar para o compadre Alfredo.
    Todos tratavam Severino Bailote por Silvino; uns, a maior parte, por não saberem o nome verdadeiro, outros por hábito.
    Severino Bailote tinha razões para se apressar; um bom negócio podia depender da corda que desse às botas, outros poderiam antecipar-se. E ele tinha orgulho no seu faro, salvo seja, para descobrir bons negócios e mais ainda na sua capacidade para não perder tempo.

    Quando acabaram as obras da barragem, ele tinha algumas poupanças de umas empreitadas que tinha feito com a carroça e a mula do sogro a acarretar pedras para as obras. Tinha trabalhado dia e noite quase sem descanso, mas conseguiu amealhar uma boa conta nos sete anos que durou a obra.
    Foi quando ouviu dizer que a JAE ia arrendar as alfarrobas das bermas da estrada. Note-se que este arrendar era termo local e significava comprar a fruta na árvore, correndo os encargos com a fruta por conta do arrendatário e os encargos com a árvore e a terra por conta do dono. Não perdeu tempo, foi falar com o Adelino Carrasco, o encarregado, preparado com uma proposta que na sua opinião seria irrecusável.
    — Isso não pode ser assim. Tem que ser por carta fechada. É a lei.
    — Sim, já tinha ouvido dizer. Mas por quanto é que costumam arrendar?

    Os arrendatários tinham combinado entre si e nunca apresentavam cartas com valores acima dos trinta contos. Eram três; um ano ganhava fulano, no outro sicrano e no outro beltrano. Era assim havia muitos anos.

    Severino Bailote não era da terra, veio do Alentejo trabalhar para as obras da barragem. Casou com a filha do tio Pedro Ramos. Quando apareceu a possibilidade de trabalhar de empreitada no acarretamento das pedras, o mais difícil foi convencer o sogro a emprestar-lhe a carroça e a mula. Este não queria de maneira nenhuma largar o trabalho de almocreve, tinha sido a sua vida. Mas as forças já lhe iam faltando.
    — Ó pai, você já quase não arranja trabalho para a carroça; deixe lá o Silvino tratar da vida. Eu sou filha única, não há mais irmãos a reclamar. — e a Evangelina lá convenceu o pai.

    — Eu não posso dizer quantias. Se eles soubessem faziam queixa de mim.
    — Queixa de si, senhor Adelino? Mas o que ouvi dizer é que eles estão combinados e assim quem perde é a JAE. Se alguém podia fazer queixa não eram eles. — e piscava o olho.
    O Adelino Carrasco ficou sem resposta.
    — Senhor Adelino, imaginemos que alguém se lembra de ir fazer queixa e o negócio se descobre. O senhor Adelino não quer que isso aconteça, pois não? — a ameaça era implícita, mas de fácil entendimento.
    — Eu não posso...
    — Digamos que o senhor Adelino só me diz que nunca foi mais de tanto.
    O Adelino estava cada vez mais apertado.
    — Senhor Adelino, só estamos aqui os dois; nunca ninguém vai saber desta conversa e esta nota já é sua... — e estendeu uma nota de mil.
    — Mas... mas... — o Adelino Carrasco ganhava pouco. — baixou a cabeça e balbuciou:
    — Trinta.

    E o Severino foi arrendando fruta por alguns anos. Ao princípio algumas sementeiras de regadio da barragem e depois as laranjas. Foi sempre um bom pagador, excepto naquele ano em que a geada queimou as laranjas serôdias do pomar do Dr. Borges e ele argumentou que não tinha ganho nada e não tinha dinheiro para pagar. Alguns diziam:
    — Então, Silvino, o negócio não é um risco, como tu dizes?
    E ele zangava-se.

    — Onde vais com essa pressa, Silvino? — e ele, nada. Isso queriam eles saber. Não, não podia perder a oportunidade, e tinha que andar depressa antes que chegasse outro à frente.
    A Evangelina tinha ido à vila e ouvido dizer que os selos das cartas iam aumentar de cinquenta centavos para um escudo. Quando chegou a casa contou ao Severino e este viu logo a oportunidade; uma pechincha de meio por meio não aparece todos os dias.
    Chegou à venda da Marília, que servia de posto dos correios na aldeia:
    — Ó Marília, quero comprar os selos todos que tens aí.


o rapaz dos registos

    — Grande país este, nem os funcionários públicos sabem a data.
    — Isso não é bem assim, Matilde.
    — Não é? Então como é que a certidão foi tirada hoje, dia 3 de Agosto, e tem a data de 22 de Junho?
    — Sei lá eu...
    — Sempre tenho razão! Os funcionários públicos aqui não sabem a quantas andam.
 
    A Matilde e o Valdemar foram emigrantes em França durante vinte e sete anos. O Valdemar é dos que não gostam de ouvir falar mal do seu Portugal. A Matilde, pelo contrário, fala com desdém de tudo o que é português. Os filhos ficaram na França. Por vontade da Matilde também eles tinham lá ficado, mesmo depois da reforma. Mas ele vai sempre arranjando maneira de justificar a permanência por cá. Umas vezes é por causa de acabar a casa. Outras por isto, outras por aquilo. É cá que tem os amigos. Até arranjou um trabalho de distribuir pão pelas manhãs.
    
    O lavrador Silvério Carriço morreu de um enfarte fulminante sem deixar descendentes directos. Os três sobrinhos apareceram a reivindicar a herança. Nunca eles se preocuparam com o tio em tempo de vida. Visitavam-no de vez em quando, mas nem um prato lavavam. Apareciam separadamente cada um com a conversa mais melosa que os outros. Mas mais nada.
    — Manuel, tu tens que avisar os moços da conversa do testamento.
    Os moços eram os filhos da Aurora Medeira, o Isidro e o Valdemar. O Manuel do Montinho lembrava-se de ouvir o lavrador Carriço dizer que estava pensando em fazer um testamento a favor dos dois. Desde a morte da mulher até à morte da Aurora Medeira, quando caiu da ameixeira, foi sempre com esta que o lavrador pôde contar.
    — Manuel, se tu não os avisares vais ficar com esse peso na consciência para o resto da vida. — e a mulher insistia todos os dias com o marido, que não se queria meter no assunto porque sabia que daí viria guerra com os sobrinhos do lavrador. Um deles cabo da guarda.
    Um dia o Manuel do Montinho encheu-se de coragem e foi procurar o Valdemar.
    — Tu vai-te informar. Se calhar já vai ser tarde, porque ouvi dizer que os sobrinhos já andam a tratar da herança. Mas olha que o tio Silvério disse-me que andava a pensar em fazer o testamento para vocês, para ti e para o teu irmão, olhando ao que a tua mãe fez por ele.
    — Ó tio Manuel, eu não estou a contar com isso. O meu irmão está lá para o Canadá, também não deve estar a contar com heranças. A minha mãe só fez aquilo que qualquer boa vizinha faria. Limpar-lhe a casa, lavar a roupa e coisas assim.
    — E achas pouco? Estás avisado, ele falou-me nisso já deve haver mais de dois anos. Não sei se o chegou a fazer ou não. Mas no teu lugar ia saber disso.
    
    — Senhor Valdemar, você é de Santana da Charneca?
    — Sou, sim senhor, você conhece?
    — Quando era miúdo passava todos os anos férias na Alcaria, na casa duns primos do meu pai. Conhecia lá quase toda a gente, aquilo também não é grande.
    — Morreu hoje uma senhora de lá que era prima do meu pai, Adelaide Carola. Eu estava parado na Mimosa quando a filha me telefonou a dizer que morreu a mãe.
    O funcionário do Instituto de Registos e Notariado ficou nitidamente chocado:
    — A Catarina? Brinquei muito com ela em pequeno.
    E foi lá para dentro conversar com uma senhora que devia ser a chefe. Demoraram bem mais de meia hora.
    — Aqui tem a certidão, senhor Valdemar. Agora vocês vão ter que ir o mais depressa possível às finanças para fazer a relação de bens e depois vão ter que meter um advogado porque os outros herdeiros já fizeram escritura de habilitação.

    — Está dentro do prazo... — o funcionário das finanças aconchegou os óculos no nariz e releu a data para confirmar. — Mais um dia e teriam que pagar uma multa um bocado pesada. Mas está aqui, 22 de Junho, não li mal.


o natal, dia da família

     — Vá lá, Carlos, faz-me lá a redacção.
    — Sabes bem que isso não adianta nada. O que é que adianta a papinha feita?
    — Sim! Já ouvi esse discurso. — o arquear das sobrancelhas da Natália a olhá-lo de esguelha é que teve o condão de convencer o Carlos.
    — Tens que me entregá-la até quarta-feira, que é o último dia. — e Natália contempla o ar subitamente sério, talvez demasiado sério, mas que ela conhece e gosta.

    Tinham-se conhecido naquelas vezes em que ambos foram ao hospital visitar as respectivas avós, por coincidência vizinhas de cama. Melhor contado, já se conheciam de vista, mas nunca se tinham despertado interesse. Ambos de aspecto banal, sem nada que os fizesse ressaltar. Foi mesmo a tal seriedade do rosto dele quando falava com a avó, e o tal arquear de sobrancelhas dela que despertou o mútuo interesse. Nada que escapasse aos olhos das velhas, que lhes facilitaram o vencer da timidez.
    — Os meus pais estão na França, eu estou com a minha avó até acabar a escola. Agora fico com a minha tia Augusta. — conta ela.
    — Eu estou a acabar a escola, depois não sei. Se não fosse a tropa arranjava trabalho já para o ano. Mas ando cá com umas ideias. Não quero que me julgues cobarde, não é por isso, mas acho que me vou pirar...

    Na quarta-feira, no intervalo entre a aula de matemática e a de português, Natália recebeu a redacção. Era assim:

    “O Natal, Dia da Família
    
    O Natal é muito mais do que uma simples festa religiosa, é o dia da família. Neste dia as famílias costumam reunir-se. Muitas vezes resolvem-se problemas familiares neste dia que se não conseguem resolver noutras ocasiões.
    É pena que em Portugal muitas famílias não se possam reunir, nem sequer nesta altura. A guerra e a emigração não o permitem. Muitos portugueses têm que ir para a guerra ou têm que ir procurar sustento noutros países porque não o encontram cá. E isto faz que muitas famílias passem o Natal separadas. Pais separados dos filhos, filhos separados dos pais; maridos separados das mulheres, noivas separadas dos noivos. Esta é a parte triste desta quadra festiva que não podemos esquecer.”

    — Natália, foste tu que escreveste isto? — a dona Eulália, professora de português, mira-a por cima dos óculos.
    — Fui sim, stora. — Natália fica da cor dum pimento.
    A professora fita-a ainda por um momento, depois pega noutra redacção.

    A turma do curso de formação feminina andava atarefada na preparação dum jornal de parede sobre o Natal. As alunas que tinham mais jeito para o desenho estavam a preparar um grande quadro em papel de cenário, dividido em duas partes: uma pintada a guache, a outra com papel recortado, às cores. Os temas eram o menino Jesus nas palhinhas e os Três Reis Magos.
    Algumas foram encarregadas de compor textos e poemas, relacionados com o Natal, para o quadro, chamado “Jornal de Turma”. Coube à Natália elaborar um texto sobre o tema “O Natal e a Família”.

    Quando o Carlos foi ver as notas, procurou o quadro da turma da Natália entre os expostos na sala de entrada da escola. Lá estava, muito bem feito, desenhos, pinturas, caligrafias, mas faltava a redacção que ele tinha feito...



o serviço não se pode ressentir

     — E agora, chefe? — a pergunta é feita por todos os operacionais.
    A ordem do ministro é clara. Temos que obedecer. O Departamento de Controlo do Carbono (DCC) tem por missão inspeccionar todas as unidades agrícolas, industriais ou habitacionais, para verificar o balanço do carbono nas suas várias formas, centrando-se especialmente nas emissões de dióxido de carbono, de monóxido de carbono e de metano. Isto só para nos situarmos.
    De nada serviu os operacionais explicarem que o uso das cores nos esquemas que acompanham os relatórios das inspecções é uma constante e uma necessidade no departamento. A primeira medida do novo ministro da tutela é peremptória: fica proibido o uso de cores nas impressões em todos os organismos sob a sua tutela. A austeridade assim o obriga.
    Quando o anterior chefe da delegação regional do DCC se reformou, por limite de idade, apresentaram-se quatro candidatos. Dois licenciados em engenharia do ambiente, uma em engenharia química e outro em história. Ganhou o doutor Ferraz, licenciado em história, mas com um mestrado em literatura egípcia antiga e um doutoramento em métrica da poesia medieval polaca.
    Muitos pensaram que o doutor Ferraz não seria capaz de desempenhar as funções, mas este cedo se impôs. Existiam milhares de requerimentos para inspecção pendentes do pagamento da respectiva taxa, porque a lei não é clara acerca da necessidade de avisar os requerentes da necessidade do seu pagamento para que a inspecção seja efectuada. O doutor Ferraz envolveu meia delegação no envio de avisos. Começaram a chover pagamentos e os operacionais nunca mais ficaram quietos, como acontecia antes.
    A direcção central bem tentou impedir o doutor Ferraz de proceder ao envio dos avisos porque isso não estava previsto nos procedimentos, mas, perante o afluxo de dinheiro fresco e abundante proveniente dos pagamentos das inspecções pendentes durante anos, o secretário de estado interveio a favor do método do doutor Ferraz. E a própria direcção acabou por se convencer dos seus méritos, tendo proposto ao secretário de estado a atribuição de medalha de mérito ao doutor Ferraz. Para isso contribuiu em muito também o facto de o doutor Ferraz nunca vir com complicações. Ele era, sem margem para dúvidas, o representante da direcção central perante os funcionários da sua delegação e não o contrário, como tentavam ser outros chefes de outras regiões.
    Paradoxalmente a polémica medida do ministro sobre a impressão a cores acabou por se tornar em mais uma fonte de rendimentos. Porque com os esquemas a preto e branco as confusões eram mais que muitas obrigando a repetição das inspecções, o que obrigava os utentes a pagar nova taxa para a deslocação dos técnicos.
    O trabalho ia de vento em popa; a consequente arrecadação de fundos também. Chegou-se a uma altura que o utente recebia o relatório da aprovação escassas duas semanas depois do pagamento da taxa.
    Entretanto a região adjacente ficou quase sem operacionais, que se reformaram, e o doutor Ferraz ofereceu os préstimos da sua delegação para tomar conta de metade do trabalho da região adjacente.
    Também se reformou um dos operacionais da própria delegação e outro pediu transferência para outro organismo ao abrigo da lei da mobilidade.
    Os utentes já se tinham habituado ao andamento célere das inspecções e reclamavam cada vez mais das demoras que o aumento do volume de trabalho e a diminuição de pessoal acarretavam.
    Mas não acaba aqui o problema. Algumas alterações nas normas vieram tornar mais morosa cada inspecção. E o pior de tudo, as viaturas estavam todas com mais de vinte anos e começaram a ceder. Hoje uma, amanhã outra, com consertos cada vez mais dispendiosos. A austeridade do governo não abria mão de fundos para novas viaturas, nem por vezes para o pagamento de consertos mais caros, o que obrigava a que uma reparação de duas semanas levasse à imobilização do carro na oficina por largos meses à espera do respectivo pagamento.
    O carro mais antigo, o DD, como é conhecido entre o pessoal por serem estas as letras da matrícula, acabou de sofrer uma reparação de quase três mil euros. No mesmo mês avariaram todos os outros. Ficou só o DD a funcionar. Rodava entre as equipas enquanto não vinha autorização para mandar consertar algum dos outros.
    — Senhor director, já não é sem tempo. — o doutor Ferraz está ao telefone.
    — ...
    — Pensei que abatiam uma viatura e isso significava que era substituída, senhor director.
    — ...
    — Como? A viatura que vão abater é o DD?!!!
    — ...
    — Senhor director, eu sei que ele tem quatrocentos mil quilómetros, mas é o único que ainda anda.
    — ...
    — Sim, entendo, senhor director, as normas de segurança rodoviária e ambientais... mas é que assim ficamos sem viatura nenhuma... nenhuma...
    — ...
    — Desculpe, senhor director. Ordens são ordens. Com todo o respeito.
    — ...
    — Simsim, sesesenhor dididirector. O sessesserviviço não sessesse ppppopopode rereressentititir...


desencontro

    Apesar de se ter ido deitar já passava das três, a Amélia  pôs o pé na areia da praia ainda não eram dez horas. Levantou-se antes das sete. Fritar os pastéis de bacalhau, aquecer a água para o banho, tomar banho, ir esperar a camioneta da carreira a mais de dez minutos de casa. Meia hora de camioneta, que parava em todas, sempre a apanhar gente.
    O Lourenço ainda se levantou mais cedo. Não tinha pastéis de bacalhau para fritar, mas tinha uma bicicleta na oficina, que tinha prometido consertar para o dono ainda usar nesse domingo. Chegou à praia pouco passava das nove e meia.

    Tinha começado como aprendiz com o mestre Manuel Estêvão, na casa das bicicletas, tinha ele doze anos. Quando voltou de Angola, da tropa, o mestre chamou-o lá e disse:   
    — Lourenço, como sabes, eu não tenho descendentes e esta casa é a minha vida. Ficaria muito triste se isto acabasse. E as minhas forças já não são muitas. Pensei que tu talvez estivesses interessado em ficar com ela. Já sabes que para ti faço um preço especial. — e piscava o olho.
 
    Os namoros da Amélia  só duravam o tempo suficiente para os namorados se darem conta de que ela não estava disposta a facilitar-lhes a vida.
    Mais de uma zaragata começou por sua causa:   
    — Deixa-te de merdas. Eu namorei com ela e nunca consegui nada, conseguias tu.  
    — Isso és tu que não sabes levar uma mulher.
    E assim começavam. Todos sabiam que não tinham conseguido nada, mas poucos eram capazes de o dizer. E morriam de ciúmes uns dos outros.
 
    — Qualquer dia não tens pretendentes. Olha que daqui a pouco passas dos vinte. — avisava a tia Carolina — Olha para mim.
    — Oh tia, mas contigo não foi ao contrário?
    — Sim, tens razão. Mas olha que os tempos são outros. — e suspirava.
    — São agora outros. Os homens não querem sempre o mesmo, tia?
    O noivo da Carolina, depois de a usar bem usada, deixou-a à sua espera, foi para a Argentina e nunca mais deu sinal de vida. E ela, parva, à espera, à espera. Até que desistiu. Não só desistiu ela, como desistiram os pretendentes.
    — A chocha é minha, sou eu que mando nela. — a Amélia  ria, com o seu rir telintado e sincero que, juntamente com os grados e pestanudos olhos negros, não parava de partir corações. — É assim, tia. Só dou os três quando algum me conseguir convencer. — e aqui ficava séria.
    Carolina passava-lhe a mão pelos cabelos negros.
 
    Tinham dançado no baile da Alcaria até bem tarde. Também foi lá que a tinha conhecido alguns meses antes. O Lourenço foi lá ao baile por acaso, ainda eram bem uns quinze quilómetros. Os olhos grados tinham-no cativado à primeira vista.
    — Menina dos olhos doces como o mosto.
    — Com todo o gosto.
    — Cabelo negro e riso contagiante.
    — Cavalheiro gentil e elegante.
    — Concedes-me o prazer desta dança?
    — Por ti até faria do meu cabelo uma trança.
    Assim poderia ter sido se fossem poetas. Não eram, mas não faz mal. O certo é que para o Lourenço o caminho nunca mais criou erva.
    Se os da terra o aceitaram bem ou mal não se sabe, sabe-se é que ninguém se manifestou de frente.
 
    Sopraram-lhe ao ouvido algum tempo mais tarde que ela tinha má fama. O Lourenço não era moço de emprenhar pelos ouvidos, mas contou à mãe.
    — Nem acredito no que estou a ouvir, filho. Tu a falares-me dos teus namoricos? Nunca fizeste tal coisa!
    O Lourenço ficou vermelho que nem um tomate:
    — Não é um namorico, mãe. Esta moça... tenho a impressão que... que...
    — Que? — e a mãe sorria enlevada.
    — Que fomos feitos um para o outro.
    E a mãe falou-lhe de tantas coisas, tantas coisas. Contou-lhe coisas com que ele nunca tinha sequer sonhado.
    — Nunca dês ouvidos a línguas mal intencionadas. — terminava ela.

    No fim do baile confirmaram:
    — Então fica combinado, amanhã de manhã vamos à praia.
    — Fica combinado!
 
    Já passava das onze e o Lourenço sem aparecer. A Amélia  não sabia o que fazer nem sequer o que pensar. Ia ao banho para que as outras pessoas não lhe notassem as lágrimas, e deu-se conta de que nunca tinha chorado por namorados.
 
    Já passava das onze e a Amélia sem aparecer. O Lourenço não sabia o que fazer nem o que pensar. Sabia que uma grande tristeza o invadia.
 
    Nunca a Amélia  tinha desejado tanto ter uns óculos de sol como quando deixou a praia de Almadrava ainda antes de dar o meio-dia e apanhou a camioneta da carreira para casa. Também o Lourenço deixou a praia de Odemano mais ou menos à mesma hora, de coração despedaçado.