versos com rima


Muitos pensam que o rimar
é que faz a poesia
depois é rimar, rimar
e a coisa fica vazia.

Por isso fiz estes versos 
com temas bem actuais 
falar de versos e reversos
isso tudo e muito mais.

Aquilo que vou escrever
é feito com intenção 
apeteceu-me algo dizer
do tema da ingratidão.

Que há muita ingratidão 
ninguém o pode negar
gente que esquece a mão 
que a ajudou a levantar.

Mas como com todas as folhas
esta também tem outro lado 
e às vezes quando bem olhas
vês que não é desinteressado.

Aquele que estende a mão 
pode ser por interesse
nem sempre acredites, não 
nem tudo é o que parece.

Às vezes o bem é feito
só para que fiques grata 
às vezes é só um jeito
de te pôr em cima a pata.

É bonito querer bem 
a quem te estendeu a mão 
e é bonito também 
demonstrar a gratidão.

Mas é muito feio pedi-la
chega a ser desagradável
ainda é mais feio exigi-la
isso, então, é execrável. 

E só para arrematar
que já vão longos os versos 
e eu só queria assegurar
que tudo tem os seus reversos.

Agora já estou cansado
com tudo o que disse acima
só pra ficar demonstrado 
que também sei usar a rima.


baús interiores


Os nossos passados
de amores 
e desamores
com nus
ou sem nus
infelizes ou felizes
são tesouros
valiosos. 

Não são para esquecer

não são para apagar

não são para reviver

não são para alardear.


São somente 

para guardar 

e bem

guardados 

em baús

muito discretamente 

espalhados

pelos jardins interiores.


E também 

regra de ouro

não são para esfregar 

nos narizes 

dos amores 

novos.



tia jacinta


     São eles! Só podem ser eles. A pequena mancha em movimento não escapa ao olho atento e ainda agudo da Tia Jacinta, apesar dos seus cinquenta e nove anos.
     Deixa lá ver se voltam para cá. E, logo a seguir à Portela da Rata, a mancha tomou o caminho do monte do Barranco Fundo. 
     É mais que certo. Não demora nada estão aí. Gatunagem! E agora o que é que eu faço? Esconder-me não serve de nada. Eles voltam. Ou esperam. Ou arrombam as portas. Sei lá. Essa cambada não tem coração, são capazes de tudo.
     Ah, mas eles não sabem com quem se metem. Eles não conhecem a Jacinta do Barranco Fundo.
     Ora, deixa cá ver, Jacinta. Não posso dizer que vivo sozinha, eles se calhar sabem quantas pessoas vivem aqui. O melhor é dizer a verdade. E fazer-me de surda, muito surda, quanto menos conversa melhor.
     Serei capaz de trazer aqui para a casa de despejo uma saca de trigo? Não perco nada em experimentar. Com o carrinho de ir à água, ele pode com dois cântaros cheios, também deve poder com uma saca de quatro arrobas. Vamos lá ver. Vou empurrar aqui uma destas de cima, assim não a tenho que levantar. 
     Já está. Assim fica bem. Mesmo aqui ao pé da farinha. Mas eles vão achar pouco, uma casa de três pessoas com uma saca só! Vou trazer mais outras duas. Anda lá, Jacinta. Tiveste força para trazer uma, também vais ter para trazer mais duas.

     — Ó Manel! Olha lá, além para a portela. Aquilo não são os homens do grémio?
     — Só podem ser eles. Dois homens com três mulas por estes lados só podem ser eles. Filhos dum cabrão! Um pobre não pode ter nada. Vou já a correr esperá-los lá a casa e vamos a ver o que eles fazem. Se for preciso tenho a espingarda.
     — Não vás, Manel! Não te vás desgraçar. Fica aqui sossegado. O que for há-de ser. Por amor da tua mãe, não nos desgraces.
     — Deixar-me roubar assim e ficar quieto?!
     — E o que é que tu queres fazer? Desgraçar-te a ti e desgraçar a tua família? O baraço parte sempre pelo lado mais fraco.
     O Manuel do Barranco Fundo debate-se dolorosamente entre o portar-se como um homem, e não deixar que abusem dele, e o ceder ao conselho da mulher, e verem-no como um mole. A boca seca-lhe, o coração salta-lhe que nem um cavalo. Vai à infusa e bebe um bom gole de água fresca. Aos poucos vai-se acalmando. Contrariado, decide ficar quieto. Mas já o apanho da azeitona não o consegue entreter. 
     — Tens razão, mulher. Mas já não consigo ficar aqui. Vou albardar o burro, carregamos a azeitona e vamos embora. Prometo que não faço nada para os impedir.
     A Catarina é cautelosa. Sabe que é arriscado aproximarem-se de casa enquanto os homens do grémio não se tiverem ido embora. O seu homem tem muito génio, qualquer pequena chispa pode ser fatal. Consegue ir entretendo-o, mas muito a custo. Vai buscar conversas de tempos felizes, ele vai abrandando. Chega-se a ele, tenta-o. Ele percebe bem a manobra, mas deixa-se ir. Primeiro muito teimoso, mas a pouco e pouco cedendo.

     Enquanto isso, a Tia Jacinta arruma as três sacas na casa de despejo. Vai esconder o carro de mão. Limpa vestígios do carrego dos sacos. Vai ao palheiro, onde o trigo está, e junta palha e feno em cima dos sacos. Tem cuidado para não deixar nada que faça parecer que lá andou a mexer. Por fim, encosta a porta, meio entreaberta, de maneira a fazer escuro lá dentro e ao mesmo tempo não parecer que tem lá tanto valor. 
     Deixa a gata cheirar bem à volta dos sacos, para ela se certificar de que não há ratos. Esta gata pode andar por onde andar que assim que se muda um saco de um lado para o outro, ela aparece.
     Quando a gata se aquieta e vai outra vez para o mato, ela mete-se em casa e espreita por detrás do postigo.
     — Manel, sabes o que tenho estado a pensar? 
     — Sei lá! Que ainda estou aqui para as curvas? — e ri.
     — Isso já eu sabia, Manel. — e também se ri. — Tenho estado a pensar que a tua mãe é bem capaz de se ter desenrascado melhor do que nós imaginamos. Ela é muito esperta, Manel. Eu tenho a impressão de que já a conheço melhor que tu.
     O Manuel do Barranco Fundo olha para a mulher com o carinho de que é capaz e só consegue dizer.
     — Deus te oiça.

     Quando os homens chegaram e bradaram:
     — Ó da casa! Está aí alguém?
     Tiveram que repetir e bater à porta com força.
     Ela demorou um bocado a sair lá de dentro, fingindo não perceber o que se passava. Olhou-os de alto a baixo. Olhou para as mulas e, subitamente, soltou um grito lancinante e correu para a porta da casa de despejo. 
     Agarrou-se à porta com tanta força que foi difícil aos dois latagões apartarem-na. Tiveram que a obrigar a ir buscar a chave para abrir a porta. Fez-se de surda, tiveram dificuldade a fazerem-se entender. Recorreram a fazer gestos. Com gestos ela ia entendendo, não exagerou no fazer-se difícil. Surda, sim, parva, não. 
     Quando viram os três sacos, ficaram desiludidos. O mais novo queria levar tudo. Mas o mais velho disse que isso não se fazia, pelo menos deixavam um saco para os pobres.
     — Obrigado, tiazinha! Os soldados mandam agradecer por estas sobras da nação. — ainda disse o mais velho à despedida.
     — Vão para a puta que os pariu! — mastigou a Tia Jacinta assim que eles se afastaram, ao mesmo tempo que escarrava no chão.
     
Zé Varela
Setembro de 2024

com pés e cabeça


A que me tomem por poeta
sempre me fui esquivando
preconceito? 
talvez seja
ou também pode ser peta
uma desculpa, é o mais certo
pois que nunca estive perto
de escrever o que se veja
nada, nadinha de jeito.

Dizem que os poetas fingem
também ouvia falar 
que os que fazem a poesia
têm a cabeça no ar
até há quem diga na lua
e eu com medo das alturas
sempre sofri de vertigens 
e muitas mais tretas ouvia
mesmo aqui na minha rua
como que são todos loucos. 

Ter os pés na terra queria
como agarras bem seguras
quando o bichinho chegou
não me deixou escapar
essa é que é essa
e foi penetrando 
aos poucos.

Com a cabeça no ar
e os pés assentes no chão
também veio a minha vez
para ter pés e cabeça
agora vou evitar
e sempre, sempre dizer não
a pôr-me em bicos de pés.

saudades de amores

 
Dos amores
com princípio, meio
e fim
dos que toda a gente
tem
ficam as saudades doces
daquilo que correu bem.

Daquilo que mal correu
daquela parte ruim
ficam as amargas dores
de momentos para esquecer
abandonos e ciúmes
birras, rixas, azedumes
da vida que se perdeu
com secos amores
sem sumo.

Porém 
o que mais nos
rói
é o sempre doce amargor
das saudades
a maior
daquele amor que não foi.



a perca enjeitada


Não tenho ciúme
dessa prima fina
em berço de ouro
embalada 
de doutores afilhada
de seu nome "Perda"
o seu "ê", frouxo e rombo
o seu "dê", de dó e débil.

O meu nome é gume 
afiado
a gosto do povo 
é a minha voz clara
sem vacilar 
o meu "cê", de cavalo enérgico
o meu "é", de fel e mel
mas do seu nome eu não zombo
mesmo soando a servil.

O meu espaço tem roubado
mas não é isso que mais custa
aquilo por que ando triste
é ver os dedos em riste
de todos os com vergonha
dos falares do seu povo.

Renegar pai e mãe 
suas maneiras de falar 
não é de gente decente
aquilo que causa horror
é vê-los jurar
que com o meu nome
não conhecem mais 
que um simples peixe
grande perca de pudor.

Zé Varela
Setembro de 2024

fofinhos


O mundo dos fofinhos
é um mundo sem imundos 
onde tudo está certinho
um mundo feito sem pragas
sem maleitas
e sem chagas
e tudo em nome da paz.

Para os fofinhos 
que haja fome, que haja dor
é igual, tanto faz
o que lhes interessa é a cor 
daqueles céus azulinhos.

Fogem da realidade 
como o diabo da cruz
quando alguém diz a verdade
é aqui d'El Rei, ai Jesus.

Têm pena dos pobrezinhos
mas nada há a fazer
é o seu destino, coitadinhos
sempre assim foi, sempre há-de ser
garantem os fofinhos.

A verdade nua e crua
é assunto dos grosseiros
os fofinhos 
não põem os pés na rua
por não suportarem os cheiros
e não sujarem os sapatinhos.

Se o tema é fracturante
se não estão todos de acordo
os fofinhos até tremem
que uma briga se levante. 

De tão limpinhos que são 
às vezes chego a pensar
que os fofinhos estão
feitos sem buraquinhos 
pra não fazerem merdinhas
e não expelirem peidinhos.


Zé Varela 
Setembro de 2024

o meu umbigo


O umbigo 
o que é um umbigo?
isso depende
do ponto de vista
uma anomalia 
dirá o purista
uma cicatriz 
diz o anatomista 
o centro do mundo
cogita 
o egocentrista
um depósito de cotão 
pensa a maioria. 

Mas nada disso é comigo
o meu é especial 
não é uma cicatriz
por aí não se fica
era pouco pra mim 
é duas
ganhei uma ao nascer
a outra ao renascer
por ali saiu
o mal 
que levaria
ao meu fim
foi por um triz. 


fonte dos louzeiros


Noite marafada
de um de muitos 
Fevereiros
que medonha derrocada
ali na Fonte dos Louzeiros.

Derradeira 
madrugada
desse mês de tão má fama
sem pressentir nadinha 
estava eu na minha cama.

Dormindo
o sono dos justos
sacudido
sacolejado 
meio surdo da zoeira
acordo assarapantado.

Bem longe
de adivinhar
mas bem perto
tudo estava tão pior
gritos, choros e assombro
choros, gritos e pavor.

De pé
quase nada 
tudo levou um tombo 
só a teimosa fonte
na véspera tão vazia
subiu tanto
tanto, tanto
que pelos campos 
escorria.

excursão ao alentejo


Diga lá, Ti Maria
o que mais lhe agradou

Gostei muito de ver
os campos ceifados
fez-me reviver
os tempos passados
quando a gente ceifava
de sol a sol
todos os dias
a comer sopas frias
as costas num oito
o que nos valia
era o baile à noite
e os beijos roubados
outras idades
tempo que passou
apesar da penúria 
sentimos saudades.

E você, Ti Alfredo?

Estava farto de ouvir
segredar aos ouvidos
que tinham comido
vacas, porcos, carneiros
nas terras roubadas
aos donos legítimos
por Deus doadas
como diz o prior
conversa dos casqueiros
da confederação
estava com medo
de que fosse verdade
e fiquei com vontade
de lá ir
ver com os meus olhos
que eram mentiras 
só mentiras.

E você, Ti Henriqueta

Eu sou alentejana
vim do Alentejo
já crescidinha
lembro-me bem
de fugir à frente
da guarda
só por ir apanhar
um tanganho
uma boleta
a esse tempo
eles querem voltar
só não gostei
porque à légua os cheiro
daquele da cooperativa
onde dormimos
com ares de manajeiro
queria estar enganada
mas assim
vai acabar mal.

E tu, Jaiminho?

Eu, cá pra mim
só não gostei 
daquele grupinho
sempre à parte
sempre juntinho
dizia um 
com ar
de professor
isto não tem jeito
andar, andar
dois dias a andar
devíamos parar
num sítio
pra ligar às massas
sujar as mãos
na terra.

Eles não entendem, Jaiminho
nem nunca entenderão
que a força desta excursão
é mesmo esta gente 
ver
com os seus olhinhos
as mentiras
dos casqueiros 
da confederação
verem as sementeiras
verem o gado
e acima de tudo
verem que é 
por todo o lado.

E você, Ti Carrasqueiro?

Eu cá do que mais gostei
foi da cara dos casqueiros
quando lhes semeámos 
os cartões 
da confederação
que eles
nos tinham passado
rasgadinhos
em pedacinhos
como se fossem papéis 
de carnaval
em cima dos cornos
quando vinham 
lá do plenário
de defender 
o latifundiário
de Braga ou de Rio Maior 
sei lá 
alguns nem saíram
nem se atreveram
na estação
mas a gente não
lhes fizemos mal
foi só medo
medo é favor
tiveram pavor
fascistas!
aldrabões!