São eles! Só podem ser eles. A pequena mancha em movimento não escapa ao olho atento e ainda agudo da Tia Jacinta, apesar dos seus cinquenta e nove anos.
Deixa lá ver se voltam para cá. E, logo a seguir à Portela da Rata, a mancha tomou o caminho do monte do Barranco Fundo.
É mais que certo. Não demora nada estão aí. Gatunagem! E agora o que é que eu faço? Esconder-me não serve de nada. Eles voltam. Ou esperam. Ou arrombam as portas. Sei lá. Essa cambada não tem coração, são capazes de tudo.
Ah, mas eles não sabem com quem se metem. Eles não conhecem a Jacinta do Barranco Fundo.
Ora, deixa cá ver, Jacinta. Não posso dizer que vivo sozinha, eles se calhar sabem quantas pessoas vivem aqui. O melhor é dizer a verdade. E fazer-me de surda, muito surda, quanto menos conversa melhor.
Serei capaz de trazer aqui para a casa de despejo uma saca de trigo? Não perco nada em experimentar. Com o carrinho de ir à água, ele pode com dois cântaros cheios, também deve poder com uma saca de quatro arrobas. Vamos lá ver. Vou empurrar aqui uma destas de cima, assim não a tenho que levantar.
Já está. Assim fica bem. Mesmo aqui ao pé da farinha. Mas eles vão achar pouco, uma casa de três pessoas com uma saca só! Vou trazer mais outras duas. Anda lá, Jacinta. Tiveste força para trazer uma, também vais ter para trazer mais duas.
— Ó Manel! Olha lá, além para a portela. Aquilo não são os homens do grémio?
— Só podem ser eles. Dois homens com três mulas por estes lados só podem ser eles. Filhos dum cabrão! Um pobre não pode ter nada. Vou já a correr esperá-los lá a casa e vamos a ver o que eles fazem. Se for preciso tenho a espingarda.
— Não vás, Manel! Não te vás desgraçar. Fica aqui sossegado. O que for há-de ser. Por amor da tua mãe, não nos desgraces.
— Deixar-me roubar assim e ficar quieto?!
— E o que é que tu queres fazer? Desgraçar-te a ti e desgraçar a tua família? O baraço parte sempre pelo lado mais fraco.
O Manuel do Barranco Fundo debate-se dolorosamente entre o portar-se como um homem, e não deixar que abusem dele, e o ceder ao conselho da mulher, e verem-no como um mole. A boca seca-lhe, o coração salta-lhe que nem um cavalo. Vai à infusa e bebe um bom gole de água fresca. Aos poucos vai-se acalmando. Contrariado, decide ficar quieto. Mas já o apanho da azeitona não o consegue entreter.
— Tens razão, mulher. Mas já não consigo ficar aqui. Vou albardar o burro, carregamos a azeitona e vamos embora. Prometo que não faço nada para os impedir.
A Catarina é cautelosa. Sabe que é arriscado aproximarem-se de casa enquanto os homens do grémio não se tiverem ido embora. O seu homem tem muito génio, qualquer pequena chispa pode ser fatal. Consegue ir entretendo-o, mas muito a custo. Vai buscar conversas de tempos felizes, ele vai abrandando. Chega-se a ele, tenta-o. Ele percebe bem a manobra, mas deixa-se ir. Primeiro muito teimoso, mas a pouco e pouco cedendo.
Enquanto isso, a Tia Jacinta arruma as três sacas na casa de despejo. Vai esconder o carro de mão. Limpa vestígios do carrego dos sacos. Vai ao palheiro, onde o trigo está, e junta palha e feno em cima dos sacos. Tem cuidado para não deixar nada que faça parecer que lá andou a mexer. Por fim, encosta a porta, meio entreaberta, de maneira a fazer escuro lá dentro e ao mesmo tempo não parecer que tem lá tanto valor.
Deixa a gata cheirar bem à volta dos sacos, para ela se certificar de que não há ratos. Esta gata pode andar por onde andar que assim que se muda um saco de um lado para o outro, ela aparece.
Quando a gata se aquieta e vai outra vez para o mato, ela mete-se em casa e espreita por detrás do postigo.
— Manel, sabes o que tenho estado a pensar?
— Sei lá! Que ainda estou aqui para as curvas? — e ri.
— Isso já eu sabia, Manel. — e também se ri. — Tenho estado a pensar que a tua mãe é bem capaz de se ter desenrascado melhor do que nós imaginamos. Ela é muito esperta, Manel. Eu tenho a impressão de que já a conheço melhor que tu.
O Manuel do Barranco Fundo olha para a mulher com o carinho de que é capaz e só consegue dizer.
— Deus te oiça.
Quando os homens chegaram e bradaram:
— Ó da casa! Está aí alguém?
Tiveram que repetir e bater à porta com força.
Ela demorou um bocado a sair lá de dentro, fingindo não perceber o que se passava. Olhou-os de alto a baixo. Olhou para as mulas e, subitamente, soltou um grito lancinante e correu para a porta da casa de despejo.
Agarrou-se à porta com tanta força que foi difícil aos dois latagões apartarem-na. Tiveram que a obrigar a ir buscar a chave para abrir a porta. Fez-se de surda, tiveram dificuldade a fazerem-se entender. Recorreram a fazer gestos. Com gestos ela ia entendendo, não exagerou no fazer-se difícil. Surda, sim, parva, não.
Quando viram os três sacos, ficaram desiludidos. O mais novo queria levar tudo. Mas o mais velho disse que isso não se fazia, pelo menos deixavam um saco para os pobres.
— Obrigado, tiazinha! Os soldados mandam agradecer por estas sobras da nação. — ainda disse o mais velho à despedida.
— Vão para a puta que os pariu! — mastigou a Tia Jacinta assim que eles se afastaram, ao mesmo tempo que escarrava no chão.
Zé Varela
Setembro de 2024