uns dizem que sim, outros dizem que não

Sabe-me dizer
comadre Conceição
se ali na venda há pão?
Uns dizem que sim
outros dizem que não
vá-se lá saber
só indo lá ver.

Amanhã vai chover 
compadre Serafim?
Uns dizem que não
outros dizem que sim
não sei, comadre Conceição
não sou adivinhão
como iria saber?

Compadre Serafim
não há como cozer
para comer bom pão.
Uns dizem que não
outros dizem que sim
a mulher está adoentada
comadre Conceição.

Ai coitada
compadre Serafim
grande mulher
a sua Rosa
trabalhadora e carinhosa.
Uns dizem que sim,
outros dizem que não
comadre Conceição.




o meu pego

Ao passar da escola de Santo Estêvão
a quem vem de Messines para a cidade
para o norte vê a ribeira de Arade
e caminhos que ao meu pego levam.

De todos os lados chegavam rapazes
para assim enganarem o verão quente
com um pouco de sorte não havia gente
para fazerem nudismo os mais audazes.

Foi neste meu pego que aprendi a nadar
à agua do mar tinha ganhado medo
quando já tinha onze anos, já não era cedo
força e brio o medo lograram domar

O meu pego, de pobre, nem nome tinha
porém, nunca essa falta causou engulhos
tinha essa água clara, limpa e fresquinha
que de toda a ribeira era mais que rainha
todos a queriam pra dar uns mergulhos.

a guerra

Tu estás contra a guerra e queres a paz
bicho raro
és dos poucos
nós somos do bem
tu és pelo mal
tomaste o lado errado
aguenta, rapaz.

Tu dizes que queres da fome o fim
e salvar a terra, que vês em perigo
nem vês como é caro
e coisa de loucos
e se fossemos todos assim
ai, amigo
se não fosse o capital
que dizes ruim
de que serias capaz?
de que viverias, tonto?

A taxa de lucro é um deus sagrado
mais armas queremos
para mais destruir
tu nem vês o futuro
na reconstrução, coisa gira
e as acções sempre a subir.

A guerra é assunto de homens sérios
e duros
dominar o mundo
está sempre na mira
se não a fizermos
outros impérios
tomam conta de nós, e pronto
ao fundo.

a chuva

Ó, homens do tempo, distraídos que são.
Pra beber, pra regar e lavar o corpinho,
a chuva faz falta, não é mau tempo, não!
Porque é mau o tempo quando chove um pouquinho?!

Um pouco já dava pra dar alma à horta,
inda que não desse pra correr nas regueiras.
Se a chuva não vem, a seara estará morta.
Que saudades de ouvi-la correr nas goteiras!

O ar anda sujo, precisa de ser lavado
é bem mau pròs olhos e pra ser respirado
quem dera uma chuvinha pra nos varrer o ar

É tão boa a chuva, nem que seja de lama.
Ouvir as goteiras estendido na cama.
É tão bom, entre os lençóis, senti-la cantar.

meu querido mês de agosto

Não penses que o grande alarve
do carro na tua frente
foi nascido cá no Algarve
e não reajas a quente

Pensa bem se ele afinal
não será da Pasteleira
lá também se conduz mal
não é só em Albufeira

Não te vás falando mal
com desejo de voltar
que sabemos que afinal
é melhor que Gondomar

Cá estamos ao dispor
volta sempre e bem disposto
mas nunca digas "no Alvor"
meu querido mês de Agosto.

calor dum cabrão

Não há frio que nos entre quando se é novo
nada que não cure um chá de quatro joelhos
tudo passa depressa, como diz o povo
o frio fura a pele se chegamos a velhos.

No inverno o que é bom é estar à lareira
o frio fere os ossos, que grande desgraça
porém, tudo isso passa com uma fogueira
uma manta e também de tintinho uma taça.

Em vindo o calor tudo é tão diferente
ainda para mais quando é um verão quente
mesmo antes de Agosto já se não quer verão.

Já o suor escorre e já tudo são dores
nada que se cure com mezinhas de amores
vá prò raio que o parta, calor dum cabrão!

fórum radiofónico

    [...]

    Temos em linha mais uma participante. Desta vez é uma senhora de Ervedal, Avis. A palavra à dona Etelvina.
    — Bom dia, dona Isabel. Queria dar-lhe os parabéns por este maravilhoso programa. É sempre a minha companhia dos sábados de manhã. Sempre com assuntos muito interessantes.
    
    Agora temos um jovem de S. Lourenço de Mamporcão, Estremoz. Damos a palavra ao jovem Fábio.
    — Eu não costumo ligar muito a este fórum. O meu avô é que costuma ouvir todos os sábados. Agora vou aqui com ele no carro, vamos a Évora, e lembrei-me de ligar para também dizer qualquer coisa. O que eu quero dizer é que nós os jovens estamos contra as touradas. Achamos um espectáculo deprimente, parece coisa de gente pré-histórica.

    Temos agora em linha o senhor Alfredo, de Sarilhos Grandes, Montijo. Tem a palavra o senhor Alfredo.
    — Dona Isabel, francamente!, esta gente ligam para falar de tudo menos do que interessa. Vejam lá se alguém fala das reformas. Qualquer dia uma pessoa tem que ir trabalhar de cajadinho. E pior ainda é que qualquer dia não há dinheiro. É só ladrões neste país.

    Volto a lembrar aos senhores radiouvintes que hoje o tema em debate é a regionalização. Tema candente e do interesse de todos. Temos em linha mais um ouvinte, desta vez um emigrante em Toronto, Canadá. A palavra ao senhor Aníbal.
    — Bom dia dona Isabel. Bom dia Portugal. É sempre a minha companhia das madrugadas de sábado. O que mais gosto de ouvir é as minhas gentes, cada um com o seu sotaque, mas que me trazem aos ouvidos o meu Portugal. Bem haja.

    Agora a palavra a uma senhora de Cerva, Ribeira de Pena, que temos ao telefone. A palavra é sua, dona Angélica.
    — Bom dia, dona Isabel. Eu sou uma viúva que tem como companhia estes excelentes programas da rádio. Saiba a dona Isabel que gosto muito do seu programa. E mais, já era fã do seu paizinho, que Deus tenha com ele lá no céu. Aquela voz enchia-nos a alma.

    Vamos então agora ouvir a opinião dum ouvinte de Santo Estêvão das Galés, Mafra. Bom dia, senhor João.
    — Eu sei como é que se dava conta disto. Era apanhá-los a todos e tudo para dentro do fogo, a ver se deixavam de gostar de fogo.

    Agora vamos para sul. Temos connosco uma ouvinte do Algarve. Diga, então, dona Beatriz.
    — Que estranho! Liguei para ver como soava a minha voz na telefonia. Soa tão estranha e com tantos ruídos.

    Continuando no Sul, temos agora em linha um ouvinte de Corte Brique, Odemira. Diga de sua justiça, senhor Eduardo.
    — Pois, eu estou indignado da maneira como somos tratados, nós, os antigos combatentes. É só para desabafar esta minha indignação.

    Mais uma ouvinte, desta vez de Ferreira do Zêzere. Tem a palavra dona Zulmira.
    — Hoje estou muito feliz. Tinha que transmitir à dona Isabel, que me faz companhia todos os sábados.  Sou avó! É uma menina. Nasceu esta noite.
     
    Temos de seguida o senhor Faustino, que nos fala de Mirandela. Faça favor.
    — Não entendo porque ninguém ainda falou do tema em debate, que é a regionalização. A minha opinião é que por um lado seria bom. Mas isso era preciso haver gente honesta. Tinha que ser outro país. Eu estou contra, porque estou mesmo a ver que...
   Lamento muito ter de o interromper, mas estamos na hora. No próximo sábado cá estaremos com o tema da interrupção voluntário da gravidez. Tenham uma boa semana.
    
    
    
    
   

na martano azul do meu pai

Na Martano azul do meu pai
andava eu sempre na brasa
mas porque a pé também se cai
não me diga vem já pra casa.

Não vou já pra casa, ó mãe
que gosto muito de andar
e mesmo se ainda não ando bem
o meu gosto é pedalar.

A perna no quadro metida
é que o selim ainda está alto
sou pequenino, é a vida
mas depressa vou dar o salto

Dar o salto, muito crescer
chegar ao selim ainda este ano
depois é que vai ser correr
sempre a pedalar na Martano.

mudam-se os tempos

     Que engraçado! Estou a reconhecer isto. Que coincidência. De propósito nunca saberia vir aqui ter. Só se fosse guiando-me pela palmeira enorme que aqui havia. Mas essa já cá não está.
    Era aqui. De certeza que não estou enganado. Avistava-se aquela curva da ribeira do Gralho lá em baixo. E, pela configuração da serra, lá ao fundo, só podia ser aqui. Havia aqui duas alfarrobeiras grandes, mesmo onde está este tanque. E a palmeira estava ali. Uma palmeira muito alta, que se avistava de toda a redondeza. Já só restam essas casas esborralhadas. Estou a ver, as da banda de lá foram deitadas a baixo para pôr as laranjeiras, mas estas não eram do mesmo dono. Elas tinham era uns quatro ou cinco donos. Pois era, aqui eram as da tia Clementina, que tinha duas moças pouco mais velhas que eu. Que será feito delas? Já me lembro bem. Ainda se vê ali um resto da barra azul.
    Belos tempos. Foi aqui que passámos três dias, pelo Carnaval. Tinha o Natalino vindo da tropa. E eu dei o salto nesse verão. O Carnaval foi muito cedo, aí para os princípios de Fevereiro. O Natalino tinha comprado o V5 poucas semanas antes, ele veio de Angola próximo do Natal.
    Parece que estou a ver. Estava eu a jogar às cartas lá à da Marília. Ainda a Marília terá a venda? ainda ela será viva?
    — Vitinha, queres vir comigo? Não sei a que horas voltamos. — e piscava o olho.
    Arrancámos eram umas três da tarde de domingo, o acordeão veio às minhas costas. Viemos pelas veredas da charneca, nem eu sei por onde passei, ele é que conhecia isso aí tudo.
    Muitas voltas demos nós por essa charneca nesses meses, desde que ele comprou o V5 até que eu me fui embora. Ele conhecia por aí tudo, já desde antes da tropa. Umas vezes chamavam-no para ir tocar, outras vezes resolvia ele aparecer. Fiquei a conhecer muita gente. E fiquei a conhecer onde moravam muitos outros e outras que conhecia desde pequenino, porque passavam à minha porta quando iam lavar à ribeira ou iam buscar água à ribeira ou aos poços lá do Vale.
    Nesse tempo não havia pinga de água por essa charneca. Agora parece um jardim, pelo menos pelo que se avista daqui. Já me tinham dito que isto estava assim, mas nunca tinha visto com os meus olhos. E com os nossos sentidos é outra coisa. Estou aqui a ver este verde todo à minha volta e ainda estou a cheirar a secura da terra no verão, a ouvir o cantar das cigarras, a sentir o cheiro das primeiras águas, das lavoiras, do funcho, a sacudir as botas para conseguir que elas largassem a terra, depois das chuvas...
    Quando ele rompeu a tocar, assim que chegámos, começaram a sair moças aí das veredas, nem sei donde saía tanta moça.
    Depois enregou a chover e não parava. Era chuva e frio. Mas nós não tínhamos frio. Éramos novos. As moças e a malta aqui de perto iam dormir a casa e nós os dois, e outros que também eram de longe, ficámos por aí, nos palheiros. As pessoas eram muito hospitaleiras e acolhedoras, mas não tinham onde nos dar cama. Davam-nos comida e emprestavam-nos mantas. Nós ficámos os dois no palheiro da tia Clementina. Para quem não sabe, era o melhor sítio para dormir no inverno. Perto do burro e na palha. Se o frio chegasse, puxava-se mais palha e já estava. Nesse tempo era uma alegria.
    Dessa vez, quando voltámos para casa, foi uma carga de trabalhos para conseguir que o V5 se desenleasse da lama em certos sítios. Alguns pedaços tivemos que ir a pé e a puxar pela bicicleta. A lama agarrava-se aos pneus. Mas o Natalino já estava habituado a essas andanças desde antes da tropa, e também vinha de lá com o treino todo. E eu também não era coxo nenhum.
    Estava nestes pensamentos quando resolvi que eram horas de seguir viagem. No Vale ninguém estava à minha espera, mas havia de haver onde almoçar. Quase quarenta anos fora, mas havia de conhecer ainda alguém, que diabo!
    Quando dei à chave do carro, nada, nem ai nem ui. Ainda andei a balançá-lo  porque podia ser algum fio solto, mas nada. Lembrei-me que há baterias que morrem de repente, sem avisar, como dizem os mecânicos. Nunca me tinha acontecido, mas já tinha ouvido falar. O pior é que o carro estava numa posição donde eu não o conseguia pôr a andar sozinho.
    Resolvi ir pedir ajuda àquela casa que ficava já dentro do pomar de laranjeiras, logo a seguir.
    Bradei ao portão. Uma mulher roliça saiu, a limpar as mãos ao avental, duma porta, que já estava aberta, ao lado do armazém. Um enorme armazém que ocupava todo o piso térreo da construção.
    — Não faça barulho que ainda me acorda o homem, que está a descansar. — e chamou os canzarrões, que se atiravam contra as grades do portão como loucos.
    Expliquei-lhe a minha situação. Que só precisava que alguém me ajudasse a empurrar o carro, porque decerto seria a bateria que se foi abaixo. Se eu conseguisse pôr o carro a trabalhar iria procurar uma oficina à vila.
    — Não vou agora acordar o homem, que está a dormir ali dentro. — e apontou para a porta donde tinha saído — Ele deitou-se ainda não há meia-hora. Passou a noite toda no mercado de Odemano, para vender a fruta. Temos que ir para lá logo a seguir ao jantar.
    Seguindo o meu olhar, que instintivamente se virou para o piso superior, explicou:
    — Ah, a gente faz o governo todo aqui em baixo, dormimos, comemos, tudo. Andamos cá na nossa labuta, não vamos sujar a casa lá de cima.
    Depois falou lá para dentro:
    — Rui, não podes ir empurrar o carro a este senhor?
    Uma voz resmungou lá de dentro, e ela traduziu:
    — O meu filho tem exame amanhã, e tem que estudar, também não pode.
    — Esta estrada, pelos vistos, é pouco concorrida, já estou aqui há um bom bocado e ainda não passou ninguém.
    — Ah, aqui é raro passar alguém, quem vai para o Vale passa pela outra estrada. É só aqui para os moradores, dá para sairmos pelos dois lados, mas poucos aqui passam; a não ser que tenham algum interesse por aqui. — e olhou-me inquisitiva, de alto a baixo — O melhor que tem a fazer é esperar que o meu marido se levante, mas já o aviso que agora nem tão cedo. Ele já tinha dormido pouco na outra noite.
    — E não me sabe dizer um número de telefone duma oficina, eu tenho telemóvel, não sei é nenhum número?
    — É o mesmo problema. O meu marido é que sabe dessas coisas. Mas, se não quiser esperar, o que tem a fazer é ir andando até ao café. Além têm telefone e sabem esses números todos. Não chega a um quilómetro. E para cá até pode vir com o mecânico que cá vier.
    — E se me emprestassem essa bicicleta? — apontei para uma bicicleta a pedal que estava encostada à parede — Há muitos anos que não pedalo, mas isso não esquece.
    Soou uma voz grave lá de dentro, decerto o Rui:
    — Não empresto a bicicleta a ninguém.
    — Bem, então diz-me que o café é para este lado? Sempre a direito?
    — Sim, não tem nada que enganar.
    — Ainda não lhe disse, mas tem aqui um lindo pomar. Quando conheci isto nem água aqui havia. — ela ficou visivelmente curiosa, por isso continuei — Eu sou daqui de perto, do Vale, mas saí de cá em 67 e nunca mais cá voltei. Só estou agora de chegada, e só por uns dias. O meu pai já tinha morrido quando me fui embora, e a minha mãe morreu ainda antes de eu poder cá voltar. Não tenho cá ninguém, só um pedacinho de terra e umas casinhas, que já devem estar todas caídas. Passei por aqui porque há uma placa lá em baixo a dizer Vale. Quando de cá saí isto era uma charneca e agora é um jardim. Só havia veredas com pó no verão e lama no inverno, e agora é estradas por todo o lado. Até custo a reconhecer os sítios. Parei ali porque me pareceu reconhecer o lugar. Estive aqui pouco antes de dar o salto para a França, por uma altura de carnaval, com o Natalino, o tocador. Meteu-se de chuva e ficámos aqui três dias.
    Ouviu-se a mesma voz lá de dentro:
    — O comuna!
    Fiz que não ouvi e continuei, marcando bem as palavras:
    — Dantes havia aqui umas pessoas muito simpáticas e hospitaleiras. Pobres, mas muito simpáticas e hospitaleiras. Lembro-me bem da tia Clementina.
    — Era a minha avó. Morava aí nessa casa que ainda se vê uns restos da barra azul.
    — Pois, foi o que eu pensei. Boa gente. E as casas estão assim abandonadas?
    — Desentendimentos de família. Invejas. Nem fazem nem deixam fazer. Mas é melhor não falar nisso.
    — Bem, então vou-me meter ao caminho.
    — Veja lá, olhe que está muito calor. E não se esqueça de fechar o carro, nunca se sabe quem anda por aí.
    Pareceu-me ver uma insinuação nestas últimas palavras, mas devo ser eu que não estou de muito bom humor.
    O calor de Junho aperta. Dizia ela que não chega a um quilómetro, mais do que isso já devo ter andado. Sempre entre os pomares, tudo de citrinos. Algumas árvores ainda carregadas. Vou apanhar aqui uma laranja para molhar a boca, elas são tantas.
    — Oiça lá, senhor da boina! As laranjas têm dono. Isso dá trabalho a criar.
    Levei algum tempo a descobrir onde estaria a dona da voz esganiçada. E só a lobriguei porque ela esbracejava de cima duma escada empoleirada no que me pareceu um limoeiro, a uns cem metros. Pus a laranja em cima duma pedra alta, à sombra da laranjeira, fiz-lhe sinal apontando com o dedo e segui viagem.

pontos de vista cruzados

     Grande confusão me metia quando ela saía, silenciosa, para não me acordar, ainda o sol não tinha sonhado em aparecer. Depois comecei a reparar que o fazia em dias certos, saía um dia, ficava três dias sem sair, saía outra vez, e a seguir ficava dois dias em casa. E o ciclo continuava sempre igual. E só voltava já bem de noite, com muitas horas de escuro.
    Mais tarde soube que saía às quintas-feiras e domingos. Nunca me falou sobre o que ia fazer. Ouvi comentários do Joaquim e da Henriqueta foi uma vez em que ela ficou muitos dias sem voltar a casa e eles andavam muito tristes.
    — Que vício! — desabafava a Henriqueta.
    — É verdade. Quando eles se levantam já ela está à porta. E sabe quais são os dias de caça, parece que sabe o calendário. Como são os bichos! Naqueles dias em que a ribeira ia engolpada, ela teve que ir dar a volta à ponte de S. Cristóvão, não vejo outra maneira de ela lá chegar.
    — O que terá acontecido? Eles não dizem nada.
    — Também não lhes pergunto. Eles podem pensar que não gostamos que a cadela vá com eles. — eles, eram os donos da minha avó, donde a minha mãe tinha vindo em cachorrinha.
    Apareceu um domingo à tarde, tinha saído na quinta-feira da outra semana. Vinha magra e tremia. Trazia alguns arranhões, talvez de silvas.
    Depois, eles contaram que não a tinham conseguido encontrar e tiveram que se vir embora sem ela. Isto além para os lados de Salir.
    Na quinta-feira a seguir lá foi ela outra vez. Não sei o que é isso da caça, mas acho que ela também não quer que eu seja caçadora, nunca me falou em tal coisa. Estou convencida de que é um vício a que ela não consegue fugir, assim como o Joaquim com os cigarros.

    Aquela canita tinha-me o Joaquim do Vale dado.
    — Eu não sei se a canita é boa para a caça, Manel, mas dizem que filho de peixe sabe nadar, e a mãe não podia ter mais vício. Lá em casa não há caçadores. — disse-me ele, um domingo à tarde, quando estávamos a jogar aos três-setes à da Marília. — E para que quero eu duas cadelas?
    Juntei-a aos meus. Estava a pensar em dar uma volta com ela aqui por perto do monte, a ver o jeito do bicho, mas o tempo meteu-se de chuva e não deu. Levei-a um dia que fomos para Mértola. Nessa altura já ela estava acostumada aos outros, mas nunca tinham saído juntos.
    Chegados lá, soltei-os ali junto a um regato, com um mato rasteiro e umas clareiras cheias de veredas de coelhos. E começámos a andar devagar para a banda de norte, pela chapada suave. Era eu, o meu compadre Inácio, o Chico da Vargem, o Valentim do Montinho e o Pedro Chacota. O bicho saiu toda contente, a abanar o rabo e a empinar-se a todos, a pedir festas. Era uma canita muito meiguinha. O pior foi assim que saiu um coelhito ela correu para ele aos saltinhos, a abanar o rabinho. Não apanhou chumbo do tiro do Valentim porque ele foi muito rápido e quando disparou ela ainda estava afastada. O coelhito ficou, mas ela parte a fugir pela chapada acima a ganir, como se tivesse levado o tiro.
    O que eu calcorreei à procura dela! Chamei, chamei. Assobiei, assobiei. Quatro-olhos!, Quatro-Olhos!, foi o Carlos do Joaquim do Vale quem lhe pôs o nome, por ela ter umas pintinhas brancas a contrastar com o pelo acastanhado, mesmo por cima dos olhos.
    Pois nunca mais lhe pusemos a vista em cima. Eu nunca deixei um cão abandonado, mas que podia eu fazer? Aquilo havia por ali uns montes, a minha esperança era que ela se acolhesse a algum deles. Vim-me embora mal disposto.
    Nesse ano já não fomos caçar para aqueles lados. Mas na época a seguir fomos. Nunca me esquece, foi logo numa abertura. Nunca me esquece, calhou no dia da feira de Castro, à volta passámos por lá.
    Vocês querem crer que a cadela apareceu ao pé da gente? Era a mesma equipa e fomos começar no mesmo sítio. Pois a cadela foi fazer festas a todos, como a cumprimentar. A mim, olhou-me de longe com uns olhos que só queria que vocês vissem. Depois foi-se embora.
    Tenho vivido com isto atravessado. Os olhos do bicho não me saem da cabeça. às vezes acordo a meio da noite, em sobressalto.
    — Outra vez a canita, Manel? — pergunta às vezes a minha Albertina, quando calha estar acordada — Tu devias ir a um doutor dos nervos.
    Mas o que é que um doutor pode fazer para acabar com o remorso que eu sinto por ter deixado a canita lá abandonada? Nunca me esquece que ela veio mesmo de propósito atirar-me isso à cara.

    Quando o Manel me foi buscar lá a casa, eu tive pena de deixar a minha mãe. Mas depressa me habituei. Na casa do Manel estava presa num cercado, mas tinha companhia, éramos alguns quatro, e gostava deles. A minha mãe deixava-me sozinha e eu ficava triste e aborrecida, sem ter com quem brincar. Nesse tempo eu gostava era de brincar. Tinha até descoberto uns coelhinhos lá por cima da estrada e, quando a minha mãe ficava fora, ia às vezes para lá brincar com eles. Ao princípio eles tinham medo de mim, mas depois habituaram-se e já não fugiam. Eu gostava do Joaquim e da família toda e também da minha mãe e dos amigos coelhinhos, mas depressa me habituei aos novos amigos.
    Lá, estávamos sempre todos, não ficava dias inteiros sozinha.
    Quando o Manel me trouxe na carrinha, não gostei muito da viagem. Vinha um bocado tonta, mas depois de sair gostei dos amigos do Manel e dos cães deles. E assim que nos pusemos a andar senti cheiro a coelhos. Pensei que tínhamos ido para um sítio onde havia muitos coelhos para brincar. Fiquei toda contente.
    Quando ouvi aquele estrondo, que me ia estoirando os tímpanos, e vi o coelhinho torcer-se com dores, a minha primeira reacção foi fugir, fugir.
    Na minha fuga sem destino, avistei outros grupos de caçadores, comecei a pensar e entendi que era aquilo a caça. Afinal era daquilo que a minha mãe gostava. Era para aquilo que vivia. Era o que todos esperavam de mim. E eu não era capaz. Tive vergonha de mim mesma.
    Encontrei um monte onde me acolheram, e onde, felizmente, não eram caçadores, tal como o Joaquim. Esse monte até era perto do sítio de onde tinha fugido. Tinha andado muito sem destino, mas tinha andado à roda e vindo parar quase ao mesmo lugar.
   Tinha uma mágoa comigo, uma vergonha de não ter conseguido ser aquilo que de mim esperavam. Contra isso não podia fazer nada, mas sentia vergonha.
   Quando ouvi chegar os carros, reconheci logo, pelo barulho, a carrinha do Manel. Fui lá para os cumprimentar, e para saberem que estava bem. Vou ficar com esta mágoa, mas não tive coragem de o cumprimentar a ele. Tive vergonha, muita vergonha, de não conseguir ser como a minha mãe.

   

tia anica

Ainda é bem de noite e já está na hora
de deixar comidinha pra pai e pra filho
de levar o jerico pra andar na nora
pô-lo a tirar água prà rega do milho.

Apanhar os griséus, encher o avental
trazer um balde de água pràs galinhas
ainda outro balde pra derregar a cal
e sempre com as costas bem curvadinhas.

Lá vai sem parar, pela vereda estreita
leva a roupa suja a lavar à ribeira
sustendo à cabeça a alcofa de empreita.

De saia rodada, que tão bem lhe fica
subindo, descendo e subindo a ladeira
sempre à lufa-lufa vai a Tia Anica.