Grande confusão me metia quando ela saía, silenciosa, para não me acordar, ainda o sol não tinha sonhado em aparecer. Depois comecei a reparar que o fazia em dias certos, saía um dia, ficava três dias sem sair, saía outra vez, e a seguir ficava dois dias em casa. E o ciclo continuava sempre igual. E só voltava já bem de noite, com muitas horas de escuro.
Mais tarde soube que saía às quintas-feiras e domingos. Nunca me falou sobre o que ia fazer. Ouvi comentários do Joaquim e da Henriqueta foi uma vez em que ela ficou muitos dias sem voltar a casa e eles andavam muito tristes.
— Que vício! — desabafava a Henriqueta.
— É verdade. Quando eles se levantam já ela está à porta. E sabe quais são os dias de caça, parece que sabe o calendário. Como são os bichos! Naqueles dias em que a ribeira ia engolpada, ela teve que ir dar a volta à ponte de S. Cristóvão, não vejo outra maneira de ela lá chegar.
— O que terá acontecido? Eles não dizem nada.
— Também não lhes pergunto. Eles podem pensar que não gostamos que a cadela vá com eles. — eles, eram os donos da minha avó, donde a minha mãe tinha vindo em cachorrinha.
Apareceu um domingo à tarde, tinha saído na quinta-feira da outra semana. Vinha magra e tremia. Trazia alguns arranhões, talvez de silvas.
Depois, eles contaram que não a tinham conseguido encontrar e tiveram que se vir embora sem ela. Isto além para os lados de Salir.
Na quinta-feira a seguir lá foi ela outra vez. Não sei o que é isso da caça, mas acho que ela também não quer que eu seja caçadora, nunca me falou em tal coisa. Estou convencida de que é um vício a que ela não consegue fugir, assim como o Joaquim com os cigarros.
Aquela canita tinha-me o Joaquim do Vale dado.
— Eu não sei se a canita é boa para a caça, Manel, mas dizem que filho de peixe sabe nadar, e a mãe não podia ter mais vício. Lá em casa não há caçadores. — disse-me ele, um domingo à tarde, quando estávamos a jogar aos três-setes à da Marília. — E para que quero eu duas cadelas?
Juntei-a aos meus. Estava a pensar em dar uma volta com ela aqui por perto do monte, a ver o jeito do bicho, mas o tempo meteu-se de chuva e não deu. Levei-a um dia que fomos para Mértola. Nessa altura já ela estava acostumada aos outros, mas nunca tinham saído juntos.
Chegados lá, soltei-os ali junto a um regato, com um mato rasteiro e umas clareiras cheias de veredas de coelhos. E começámos a andar devagar para a banda de norte, pela chapada suave. Era eu, o meu compadre Inácio, o Chico da Vargem, o Valentim do Montinho e o Pedro Chacota. O bicho saiu toda contente, a abanar o rabo e a empinar-se a todos, a pedir festas. Era uma canita muito meiguinha. O pior foi assim que saiu um coelhito ela correu para ele aos saltinhos, a abanar o rabinho. Não apanhou chumbo do tiro do Valentim porque ele foi muito rápido e quando disparou ela ainda estava afastada. O coelhito ficou, mas ela parte a fugir pela chapada acima a ganir, como se tivesse levado o tiro.
O que eu calcorreei à procura dela! Chamei, chamei. Assobiei, assobiei. Quatro-olhos!, Quatro-Olhos!, foi o Carlos do Joaquim do Vale quem lhe pôs o nome, por ela ter umas pintinhas brancas a contrastar com o pelo acastanhado, mesmo por cima dos olhos.
Pois nunca mais lhe pusemos a vista em cima. Eu nunca deixei um cão abandonado, mas que podia eu fazer? Aquilo havia por ali uns montes, a minha esperança era que ela se acolhesse a algum deles. Vim-me embora mal disposto.
Nesse ano já não fomos caçar para aqueles lados. Mas na época a seguir fomos. Nunca me esquece, foi logo numa abertura. Nunca me esquece, calhou no dia da feira de Castro, à volta passámos por lá.
Vocês querem crer que a cadela apareceu ao pé da gente? Era a mesma equipa e fomos começar no mesmo sítio. Pois a cadela foi fazer festas a todos, como a cumprimentar. A mim, olhou-me de longe com uns olhos que só queria que vocês vissem. Depois foi-se embora.
Tenho vivido com isto atravessado. Os olhos do bicho não me saem da cabeça. às vezes acordo a meio da noite, em sobressalto.
— Outra vez a canita, Manel? — pergunta às vezes a minha Albertina, quando calha estar acordada — Tu devias ir a um doutor dos nervos.
Mas o que é que um doutor pode fazer para acabar com o remorso que eu sinto por ter deixado a canita lá abandonada? Nunca me esquece que ela veio mesmo de propósito atirar-me isso à cara.
Quando o Manel me foi buscar lá a casa, eu tive pena de deixar a minha mãe. Mas depressa me habituei. Na casa do Manel estava presa num cercado, mas tinha companhia, éramos alguns quatro, e gostava deles. A minha mãe deixava-me sozinha e eu ficava triste e aborrecida, sem ter com quem brincar. Nesse tempo eu gostava era de brincar. Tinha até descoberto uns coelhinhos lá por cima da estrada e, quando a minha mãe ficava fora, ia às vezes para lá brincar com eles. Ao princípio eles tinham medo de mim, mas depois habituaram-se e já não fugiam. Eu gostava do Joaquim e da família toda e também da minha mãe e dos amigos coelhinhos, mas depressa me habituei aos novos amigos.
Lá, estávamos sempre todos, não ficava dias inteiros sozinha.
Quando o Manel me trouxe na carrinha, não gostei muito da viagem. Vinha um bocado tonta, mas depois de sair gostei dos amigos do Manel e dos cães deles. E assim que nos pusemos a andar senti cheiro a coelhos. Pensei que tínhamos ido para um sítio onde havia muitos coelhos para brincar. Fiquei toda contente.
Quando ouvi aquele estrondo, que me ia estoirando os tímpanos, e vi o coelhinho torcer-se com dores, a minha primeira reacção foi fugir, fugir.
Na minha fuga sem destino, avistei outros grupos de caçadores, comecei a pensar e entendi que era aquilo a caça. Afinal era daquilo que a minha mãe gostava. Era para aquilo que vivia. Era o que todos esperavam de mim. E eu não era capaz. Tive vergonha de mim mesma.
Encontrei um monte onde me acolheram, e onde, felizmente, não eram caçadores, tal como o Joaquim. Esse monte até era perto do sítio de onde tinha fugido. Tinha andado muito sem destino, mas tinha andado à roda e vindo parar quase ao mesmo lugar.
Tinha uma mágoa comigo, uma vergonha de não ter conseguido ser aquilo que de mim esperavam. Contra isso não podia fazer nada, mas sentia vergonha.
Quando ouvi chegar os carros, reconheci logo, pelo barulho, a carrinha do Manel. Fui lá para os cumprimentar, e para saberem que estava bem. Vou ficar com esta mágoa, mas não tive coragem de o cumprimentar a ele. Tive vergonha, muita vergonha, de não conseguir ser como a minha mãe.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
pontos de vista cruzados
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