a cana


Aquele tecto 
do teu quarto 
donde escutavas a chuva
e o vento na telha 
era eu
na casa velha. 

Aquele moinho
que assobiava na horta 
era eu
mesmo já morta.

Aquele canudo
com as aguidas
para armar
aos passarinhos
era eu
ó meu!

Aquela espingarda 
que atirava
caroços de azeitona 
era eu
ora toma!

Aquela vara com um pandulho
com que pescavas
as irós
era eu
e com orgulho.

Aquele cesto 
em que levavas 
o almoço 
era eu
ingrato moço!

Aquele brinquedo 
a que chamavas carreta
com uma roda de cortiça
era eu, chiça!

Aquela vara
com que armavas os griséus 
já não te lembras
era eu
brada aos céus!

Aqueles canudos
que punhas nos dedos 
ao ceifares
era eu
pra não te cortares.

Aquela roca
pra trazer os figos
lá das alturas
era eu
vidas duras.

Tomaram conta de ti
o plástico, o betão 
e a ingratidão 
e agora até me chamas feia 
a mim, que sempre te protegi
as terras
da cheia.

E já nem sabes quem sou 
sou a cana, 
meu sacana!



dias grandes?


Dias de inverno
não dão para nada 
inda mal amanhece
já é noite cerrada
depressa esfria
e puxa um copinho 
e só apetece 
ficar no quentinho 
de cabeça vazia.

Dias de verão 
são grandes
há quem diga
mas não têm serão 
e com o calor
não se adormece
tudo é devagar
até o pensar
à tarde é a folga
vem o suor 
e mais uma vez
tudo se adia.

Dias grandes?
já não há
como dantes.


órfãos de muitos


Quando já não há 

a quem perguntar

panal ou tendal? 

ou seria igual?


Aquela casa 

onde nasci

e veio abaixo em Agosto

terá sido da rega?

tanta água 

que da barragem vinha

e dava gosto

não a sabiam usar

regavam à bruta

era arrendada?

emprestada?

não consigo saber.


Aquela barraca da eira

onde morámos

grande luta

feita de restos

de tábuas velhas

quantos buracos tinha?


E aquela prima 

que nem eram parentes 

mas tu sabias

e pedias segredo

a minha vizinha

que também sabia

disso estou certo

mas nada dizia

e não era por medo

há coisas que nada 

se ganha em saber

em vão te apodavam

de língua de trapo 

eram tão injustos!

Também já não estás

a fazes-me falta

com tantas perguntas

que te fazia.


Órfãos

vamos ficando

órfãos de pais

órfãos de tios

órfãos de primos

órfãos de muitos. 


Quando já não há 

a quem perguntar.


os cheiros dos livros


Olores inebriantes

papel novo

tinta fresca

quais palavras, quais sentenças 

leitura, pra ser leitura

nem que seja de cordel

só pode ser em papel.


Odores de livros velhos

também não ficam atrás 

lenhina em degradação 

aromas dos livros de antes

quando dava gosto tê-los

nas estantes 

qual melhor sensação?

diz-me se fores capaz. 


Agora é o telelé

que anda nas mãos do povo

é objecto que não presta

não tem cheiro nem chorume

mas o progresso não pára 

o livro 

é preciso imitá-lo

e ainda não perdi a fé

de que inventem umas capas

que cheirem a livro novo

ou a velho 

à vontade do freguês 

e ler será um regalo.