A mulher foi entrando. Um vulto, parecendo sair de uma daquelas lengalengas antigas que se contavam à lareira antes de ter sido inventada a telefonia, quanto mais a televisão. Toda ela era preto, menos a cara e as mãos, que eram um pouco mais claras. Pele curtida por muitos sóis e muitos ventos. Olhos inexpressivos.
Só deram por ela quando se fez escuro na cozinha devido à sua sombra.
— Quer ler a sina, senhora?
— Não! Aqui ninguém precisa de ler sinas. — atalha, brusco, o Teodoro.
Foi um erro fatal, a Lucrécia apurou as antenas:
— Não quer? Quem é que disse que não quer?
A cigana divisou de imediato a oportunidade:
— Sinto que há traição nesta casa.
Dizem que os moribundos lhes passa o filme da vida pela frente antes da morte. Pois não será só aos moribundos. Pela frente do Teodoro, nos breves segundos que se seguiram, passou um filme de pesadelo.
Uma cena:
— Pensas que eu sou cega? Que não vi a maneira como vocês trocavam olhares?
O Teodoro até tremia quando ela convidava amigas para ir lá a casa.
Outra cena:
Ela deitada no chão, a deixar-se cair quando ele a levantava, e ele, parvo, a falar com a senhora do 115. Esta devia estar habituada a casos com os mesmos contornos, pois não se comoveu nada.
— Dê-lhe tempo que ela vai acalmar, vai ver...
Outra:
— Porque é que a foste beijar?
— Era só o que me faltava agora não poder cumprimentar uma amiga de infância.
Ainda outra:
— Tinhas que lhe dar passagem?
— Estás esquecida que quando viemos dali também dependemos de nos darem passagem, senão nunca mais entramos?
— Pois, engana-me que eu gosto.
E mais umas quantas:
— Não foste simpático com a minha amiga? Deves ter alguma coisa para esconder.
— Tantas simpatias com a minha amiga? Até parece que és um homem sem compromisso.
— Que pouca vergonha, nem os maridos respeitam, mesmo na frente do marido a fazer-te olhinhos.
— Porque é que tens que olhar as mulheres nos olhos? Que pouca vergonha!
E ainda:
— Porque é que ias pela rua abaixo sempre a olhar para trás?
— Para ver se já vinhas aí e vires comigo ao pé do rio comer um gelado. E como é que sabias que eu ia a olhar para trás. Onde estavas?
— Estava atrás da montra da Clarisse...
— Bonito! Agora já tens ciúmes até de ti própria?
E para culminar:
— Que é isto?!
— Isto o quê, Lucrécia?
— Não te faças de parvo! — e mostrava um saquinho de plástico apanhado do tapete do carro. — Ainda não sabes o que é? — e já gritava.
— Pois não, não sei o que é. Deve ser a embalagem de algum retentor ou coisa do género que o mecânico deixou esquecida durante a revisão. Deixa ver melhor.
— Não deixo nada! Demais sabes tu o que é. Queres atirar-me areia para os olhos?
O Teodoro calou-se.
Ela tinha acabado de chegar da casa da mãe. Quinze dias fora. Foi buscá-la à estação. Ainda antes de pôr os pés em casa já recomeçava a guerra.
— Então? Agora calas-te? Acho melhor, sabes bem que tenho razão...
Voltando à cigana:
— Eu posso fazer uma magia para acabar com todas as traições no casal. — a cigana toma o comando. — Custa é dinheiro.
E lá vamos nós. A ver se a Lucrécia não se lembra dos quarenta contos da venda da mota, quase que rezava o Teodoro. Sabia que não podia recusar, senão para ela seria a prova da traição. Traição que só existia na cabeça da mulher, mas que estava firme de pedra e cal.
— Só temos duzentos escudos.
A cigana espiou a indignação nos olhos da Lucrécia.
— Isso não é nada. Assim vou-me embora. Não faço aqui falta.
— Espere! O meu marido vendeu a mota que era do pai e ele não usava.
E foi buscar os quarenta contos...
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
o ciúme
a morte de porco
O que eu mais gosto no dia da morte de porco é quando vou levar uns pedacinhos de carne fresca aos vizinhos. Não sei, lembro-me de quando somos nós a receber. No dia da morte de porco, e nos dias a seguir, até as chouriças estarem enxutas, bem como me enjoa a carne, aquele cheiro que está por todo o lado. Mas quando já passou esse cheiro e somos nós quem recebe, ui!, como sabe bem!
A parte do porco de que mais gosto é o presunto. Em fresco é da cachola. Da cachola e do sangue, quando fica com muitos buraquinhos. Os bofes não consigo comer, acho mole, parece borracha. O rim bem como me amarga. Os torresmos só consigo comê-los dois ou três dias depois de fritos, e quando ficam muito torrados também não aprecio. O meu pai gosta muito dos de riçol, lá em casa só ele gosta. A mim bem como me sabem a tripas.
Levantei-me muito cedo, ainda de noite. Gosto de ver o meu pai acender o lume para dar fogo aos tojos. Os homens foram chegando ainda não se via. Foram-se juntando à volta do lume. Esfregam as mãos e passam-nas de vez em quando por cima das lavaredas.
— Moços, aqueçam bem as mãos antes de pegar no bicho, que com esta geada qualquer descuido faz logo um arrepelão na pele. — avisava o meu pai.
O senhor Aldemiro foi o último a chegar. Ele mora no Vale, de lá aqui a Santana da Charneca, pela estrada nova, ainda são bem uns quatro quilómetros. Veio na bicicleta a motor, uma Zündapp de três. Foi encostá-la à parede do eirado da cisterna e eu fui atrás para a ver bem.
— Jaime, tem que se ter muito cuidado com as faúlhas. Aqui já fica à abrigada. Quando o teu pai te comprar uma mota já sabes que gasolina e fogo não se dão bem. Sempre lá longe. — ele gosta muito de se meter comigo, e eu gosto muito dele. Ele diz coisas que mais ninguém diz, e gosta de me ensinar, mesmo na brincadeira ensina.
Ele esteve na tropa com o meu pai. É guarda-rios, mas não usa farda, anda sempre vestido como os outros homens. Nem sei o que é que ele guarda, a ribeira precisa de ser guardada? Um dia destes pergunto-lhe.
Desatou uma saca de serapilheira daquelas que usam para ensacar as alfarrobas, e trazia atada com um baraço ao lado do selim da bicicleta, e foi ter com os outros ao pé do fogo. Fiquei a ver a bicicleta, mas o meu pai chamou-me logo.
— Jaime, traz lá a garrafa e o prato dos bolos.
Lá fui eu à cozinha buscar a garrafa da aguardente e um copinho pequenino, e um prato com bocadinhos de costa de rolão, que a minha mãe fez ontem junto à cozedura.
Quando eu era pequeno não conseguia comer o pão mole, enrolava-se-me na boca e não o conseguia engolir, só uns dois dias depois. Uma vez a minha mãe descuidou-se e deixou a massa muito tempo a levedar, essa cozedura custámos a comê-la, ninguém gostava nem do cheiro. Na costa de rolão a minha mãe põe um tiquinho de açúcar, muito pouco, mas se não ficar bem cozida também não a consigo comer.
O senhor Aldemiro desembrulhou as facas que trazia na saca e pôs-se a experimentá-las. Primeiro desembainha de um invólucro de cortiça uma comprida e pontiaguda. Experimenta a ponta e os dois gumes, passando a palma da mão e uma unha. Depois desata as outras duas, que vinham atadas uma à outra, ambas com os gumes enterrados num bocado de cortiça, uma de um lado e a outra do outro, e que ele diz que foram feitas de facas de corticeiro. Uma maior, que vai servir para talhar a papada, os toucinhos, as barrigas, os presuntos e as manetas, e a outra mais pequena para abrir, desmanchar, descarnar, etc. Experimenta os gumes de ambas. Tira da saca uma pedra de areia vermelha e dá um afiamento fino a cada uma.
— Aldemiro, não matas o bicho?
— Foi para isso que cá vim. — e ri-se com o trocadilho.
— Deixa-te de piadas. — o meu pai também ri.
— Venha de lá o copo.
Bebe a aguardente de um sorvo e recusa o prato da costa.
O meu pai abre a porta do pocilgo e chama o porco, que não vem.
— Dez arrobas. — palpita o Constantino.
— Eu aposto nove. — discorda o Aldemiro. — E tu, Pedro, quantas achas?
— Eu queria que ele fosse às dez, mas o sacana amarroou. Debotou os figos, esteve aí quase uma semana a perder peso. Talvez umas nove e meia.
E assim continuaram com os palpites enquanto o cevão não se decidia a deixar a pensão.
Há porcos que saem bem, mas há outros que são uma carga de trabalhos para sair. Este não parecia para aí virado. O meu pai foi dentro do pocilgo com uma varinha de trovisco.
— Não lhe batas com força senão ficam os vergões no presunto. Dá-lhe só uma pancadinha e dá-lhe um grito assim de repente.
Agarraram-no cá fora e atiraram-no ao chão. O senhor Aldemiro atou-lhe um baraço ao focinho para evitar que ele mordesse. E levaram-no em peso, segurando pelas pernas, para cima da salgadeira de madeira, que, emborcada ao contrário, servia de bancada.
— Jaime, vai dizer à tua mãe para trazer os tachos para aparar o sangue! Tu gostas de sangue, sacana!
A minha mãe traz os dois tachos. Um com vinagre para não coalhar, que é para as chouriças. O outro é para cozer para o almoço.
— Vizinha Almerinda, pegue aqui neste para as chouriças, que eu pego no outro.
— Está bem, quando chegar diga.
— Já chega para as chouriças. Vá, que eu ponho este.
— Mexe bem, Olinda, para não ficar encortiçado.
— Mexa bem, mãe! — atrevi-me eu.
— Já a formiga tem catarro? — e riram-se todos. — Eu sei muito bem, o sangue para cozer tem que ser bem mexido, para ficar com buraquinhos.
Confesso que não entendi aquela da formiga tem catarro, mas agora não é altura de perguntar.
— Vamos deitá-lo para chamuscar. Vá, upa! — e tiram o porco a peso de cima da bancada improvisada e estendem-no no chão, para chamuscar.
O meu pai vai pegando nos tojos com a forquilha, passa-os pelo lume, e vai passando o fogo sobre o porco, enquanto o Chico Joina vai raspando a pele com a parte mais áspera de um bocado de cortiça e o senhor Aldemiro com uma faca nas partes mais difíceis.
— Acala bem aqui nas unhas da frente, Pedro! — quando acha que já é suficiente manda o meu pai afastar o tojo e torce cada uma das unhas à mão até ela descolar.
— Faça bem a barba da sua papada, Chico! — o senhor Aldemiro fazia sempre estes trocadilhos. Era a sua papada, as suas orelhas, as suas patas.
— Pedro, vê lá se queres mais fogo. Tu é que sabes como é que queres. — e o meu pai vem dar mais um pouco de fogo sobre a pele dos presuntos, do toucinho, da papada, das manetas, ele é que decide quando acha que é suficiente.
Quando o meu pai achou que já estava bem chamuscado levantaram-no a peso para o pôr outra vez em cima da salgadeira e começaram a lavagem. Aí já me calhou a mim ajudar. O meu pai mergulhou o bombinho todo na cisterna, depois tapou a ponta com um rolha de cortiça, puxou a ponta do bombinho até junto do porco, tirou a rolha e a água subia da cisterna pelo tubo e escorria.
— Vá, Jaime, faz alguma coisa para ganhares o almoço. Tapa aqui a ponta com o dedo para não estares sempre a pôr e a tirar a rolha e à medida que te pedirem vai deitando água.
Fiquei todo concho com o meu trabalho. Era a primeira vez que o meu pai me confiava aquela tarefa. De vez em quando a minha mãe ou a vizinha Almerinda vinham com um tacho para encher do bombinho.
Quando o meu pai deu por terminada a lavação, pegou ele no bombinho e lavou muito bem as tábuas da salgadeira, enrolhou o bombinho, e disse-me que já não era preciso mais água. Senti-me um bocadinho diminuído no meu orgulho, pois eu sabia muito bem que já não era preciso mais água. Nunca tinha feito aquilo mas todos os anos via fazerem. Normalmente era o Chico Joina que fazia, era trabalho de homem.
Puseram uns bocados de tijolo de cada lado do porco para este se manter de costas, e o senhor Aldemiro começou a abri-lo. Começou por marcar um ponto no peito do porco com a faca de matar. Depois, de uma vez só, com a outra faca, abriu um golpe não muito profundo até à veia da urina, depois outro até ao fim da barriga. A seguir abriu outro do peito para a frente.
— Senhor Aldemiro, este ano gostava de experimentar a desmanchar a parte da frente.
— Ó, Chico, pois está bem, mas primeiro deixa-me fazer a moela.
Quando o senhor Aldemiro cortou o véu que deixa as tripas à mostra eu tive que me afastar, não é por nada, é que não aguento o cheiro. Fui ver a Zündapp, estive lá um bom bocado, só voltei quando eles já estavam a talhar os presuntos e as manetas, com o meu pai a dar o risco. O meu pai é muito cioso com os presuntos e as manetas.
Já sabia que a minha mãe me ia mandar levar uns bocadinhos de carne àquelas vizinhas de sempre, entretive-me a brincar com o borralho que tinha sobrado da fogueira. Peguei na varinha de trovisco que o meu pai tinha cortado para açoitar o porco e comecei a bater com ela nas brasas. Saltavam faúlhas, parecia os fogos que faziam na altura da festa das azinheiras. Tanto bati, que uma brasa saltou-me para dentro da bota esquerda. Agarrou-se ao peúgo de nylon de tal maneira que, enquanto não consegui descalçar a bota, queimou-me que até vi estrelas. E não queria era que ninguém desse por isso.
Andava com todo o cuidado para não notarem que eu coxeava, de cada vez que a queimadura roçava no peúgo doía que se fartava. Como vi a vizinha Almerinda uma vez pôr azeite numa queimadura, fui à casa de despejo, pus-me em cima duma cadeira para alcançar o pote, tirei o púcaro com cuidado e pus azeite. Melhorou, mas mesmo assim doía muito.
Quando acabaram de desmanchar o porco ainda era cedo para o almoço. Costumava ser nesta altura que a minha mãe me mandava ir levar os taleigos com as tigelas de carne à vizinhança. Embora eu estivesse desejando que ela não me mandasse, porque a queimadura ainda me doía muito, como sabia que não havia maneira de me escapar, resolvi ir perguntar-lhe se os taleigos já estavam prontos.
— Hoje quem vai é a Carolina! — até pensei que fosse milagre de Deus, embora eu não fosse muito de rezas.
Para disfarçar ainda protestei:
— Mas a Carolina ainda é pequena, ela não pode com os taleigos.
E ela:
— De pequenino é que se torce o pepino. Ela já tem seis anos. Não leva tudo de uma vez leva em duas ou três.
Mas o pior estava para vir:
— Para ti tenho outro frete. — fiquei com receio. — Lembras-te daquela senhora que no verão passado ofereceu a vez à mãe na pedra do lavadouro? — aqui fiquei mesmo aflito.
— Já sei. A senhora Henriqueta. A mãe do Carlos.
— Essa mesmo. Sabes ir ter à casa dela?
Tive vontade de dizer que não, mas a casa era tão fácil de encontrar. A vereda que nós levávamos quando a minha mãe ia lavar à ribeira passava mesmo na rua dela. Resolvi aguentar firme.
— Depois do almoço vais lá levar-lhe um taleigo que eu ainda vou arranjar.
E eu timidamente:
— E sabe-se lá se está alguém em casa?
E ela implacável:
— Está lá sempre alguém, se não estiver ela está a velhota, a sogra, que essa nunca de lá sai.
Foi o meu pior almoço de morte de porco. O pé doía. Por breves momentos ainda me passou pela cabeça dizer-lhe, ela, se calhar, nem me batia, mas eu sou muito orgulhoso.
A dor no pé a pouco e pouco foi adormecendo, não sei se foi do azeite. Eles a comerem todos animados e eu a comer calado, sem apetite.
— Jaiminho, estás tão calado, homem, estás doente ou estás a pensar na namorada? — o senhor Aldemiro sempre a meter-se comigo. Fingi que me ria.
Depois, à medida que a dor no pé ia amainando, fui-me lembrando das coisas que às vezes ouvia eles contarem quando se ficava à noite ao pé do fogo. Do tempo da guerra, em que uma sardinha dava para três. Dos meses e meses a comer papas de milho. Das idas à ceifa ao Alentejo, em que ceifavam de sol a sol e comiam sopas ao almoço e ao jantar.
O meu orgulho de homem foi crescendo, à medida que amornecia a dor no pé.
Quando a minha mãe me deu o taleigo peguei na mota, que era uma cana que eu pegava com uma mão numa ponta e a outra na outra a fingir de guiador de bicicleta a motor. Até tinha um punho que rodava para acelerar, e as manetes como se fossem o travão e a embraiagem. Segurei o taleigo junto ao punho esquerdo para deixar a mão direita livre para acelerar e saí correndo pela vereda abaixo, a meter mudanças com o barulho que fazia a imitar o motor. Direito ao barranco das Tabuas, donde havia de subir em ziguezague até à altura donde já se havia de avistar a ribeira do Gralho lá ao longe entre os canaviais e a casa da senhora Henriqueta uns trezentos metros mais acima.
— Tem cuidado! Não partas a tigela! — ainda ouvi a minha mãe gritar. Mas já não lhe respondi.
a olinda vai lavar à ribeira
Ainda o sol não tinha cruzado a linha do horizonte e já a Olinda tinha descido até ao barranco das Tabuas, já tinha vencido os ziguezagues da ladeira abrupta até à altura e já divisa a ribeira do Gralho lá ao fundo, ondulando em melodiosas curvas por entre os canaviais. Palmilha agora a vereda por entre as carrasqueiras com a barreleira da roupa à cabeça, a Carolina pela mão e o Jaime saltitando à sua roda e tentando apanhar lagartixas. Agora já é sempre em descida doce até ao pego da Bruxa, onde há o melhor lavadoiro, quer em água limpa, quer em cascalho e tramagueiras para estender a roupa.
— Bom dia, tia Leonor! Ainda bem que a encontro aqui.
— Bom dia, Olinda. Já, tão cedo!
— Mecê também veio cedo. A ver se ainda apanho uma pedra boa.
— Tens razão. Se uma pessoa não vai cedo, chega lá e já só há aquelas pedras bicudas e coxas. Eu vim aproveitar a brandura. A esta hora os picos ainda estão macios.
— É verdade, tia Leonor. Eu ainda não comecei com as minhas. Este ano há muita farroba. O meu Pedro é que não tem tido vagar de varejar.
— Então, e porque não trouxeste o burro? Vinhas mais descansada e à volta aproveitavas para trazer uma carga de água.
— Pois era bom, tia Leonor. E qualquer dia não posso com a barriga. — e ri — Mas ele teve que ir à vila buscar farinha para cozer panito para estas encomendas. — e passa a mão livre pelo cabelo do miúdo. — Bem, temos que ir andando, senão não adiantou nada levantar primeiro que a cama. E já deixei os grãos cozidos...
— Mas disseste que ainda bem que me encontraste aqui. O que era?
— É verdade. Que cabeça a minha, já me esquecia outra vez. Mecê sabe onde é que há tomates do inferno?
— Onde é que tu andas com a cabeça, rapariga? Não tens lá à porta com fartura?
— É verdade, tia Leonor, mas esqueci-me. Só me lembrei ali atrás. E ainda por cima hoje, que só trago roupa branca.
— Estás com sorte, que sei onde há uma tomateira grande e não te fica muito longe da vereda.
Na força da canícula todas se levantam cedo, quer para apanhar as melhores pedras, quer para aproveitar o fresco da manhã. Quando há orvalho é um regalo estar junto aos canaviais durante a manhã. A água fica retida entre as folhas das canas, junto dos nós é onde se conserva por mais tempo a humidade, depois qualquer pequena aragem vai fazendo evaporar as gotículas devagar e refrescando o ar em redor. É frequente já depois da uma da tarde ainda se sentir o fresco. Mas quando não há humidade nem bafo de vento, mesmo junto à ribeira não se pode estar. O sol de Agosto queima; os chapéus de palha é que tapam a cabeça, senão fritava-nos os miolos. Lá para Setembro ainda é pior; o sol já não é tão forte, mas corta mais baixo, apanha os corpos de lado e até faz ferver o sangue.
A Olinda não teve dificuldade para encontrar os tomates do inferno que a tia Leonor lhe ensinou. Se não fosse os tomates do inferno quem é que conseguia desencardir a roupa branca? Mas sempre perdeu mais um bocado no desvio.
A esta hora já vou encontrar as melhores pedras ocupadas. As do Vale é que têm sorte, com a ribeira ao pé da porta. A ribeira, os poços, a mina, quem me dera. Nem a terra aqui é tão ruim. A terra da charneca quando não é lama que não larga o calçado nem à porrada, é poeira ruiva que entra por todo o lado. Até à cama se vai meter com a gente entre os lençóis. E deixa tudo encardido. Assim que se passa ali da chã até a terra é doutra cor. Maldita sorte!
— Lá vem aquela charnequeira! Já está outra vez prenha. Qualquer dia tem um rebanho. Sempre quero ver onde é que ela vai lavar agora. Para ajeitar as pedras não têm amaranhos, mas para arranjar moços já têm.
— Não sejas má-língua, Ermelinda! Cada uma é como é. Mas é verdade, elas vêm sempre à espera que a gente amanhe as pedras.
— O que umas têm de mais têm as outras de menos, vizinha Carminda. — e suspira.
— Mas ela também não tem a culpa de que tu não tenhas filhos.
A Henriqueta olhou para as vizinhas, não disse nada. Realmente ouve-se cada uma. Quem as ouvisse até podia pensar que elas ajeitavam alguma pedra. É que nem uma nem a outra. Se não fosse eu, a minha sogra e a vizinha Maria dos Anjos, sempre gostava de saber onde é que elas lavavam.
A Olinda bem tentava ajeitar a pedra e com a ajuda do Jaime. Mas a pedra não obedecia. Iam buscar seixos maiorzinhos para a calçar, mas estes escorregavam. Não chorava, só por vergonha. A Ermelinda escondia o riso.
— Deixe lá a pedra, senhora. Nem eu dei conta dela, não vai ser você agora que vai dar. Venha aqui para a minha que eu já estava mesmo de abalada. Ainda tenho que ir à venda comprar petróleo, já me esquecia.
— Mas mecê ainda tem aí tanta roupa para lavar.
— Deixe lá! Amanhã também é dia. Eu moro aqui perto e você vem de lá de tão longe, nem eu sei donde.
— Nem sei como lhe agradecer. — e tenta esconder a lágrima que lhe assoma ao canto do olho.
— Não agradeça, senhora. Temos que ser uns para os outros. Foi assim que me ensinaram lá na minha terra. Por aqui parece que não se usa muito. — e a Henriqueta olhava de lado para as vizinhas — Mas foi assim que aprendi.
E antes de se ir embora ainda diz:
— Quando precisar de alguma coisa bata à porta daquela casa que fica mesmo ao pé da vereda que vem da charneca, além à chã. Se não estiver eu está a minha sogra.
O lavadouro cala-se por alguns instantes.
— A alentejana é muito soberba, não acha, vizinha Carminda?
Regressa o silêncio, agora carrancudo. E demora-se, sublinhado pela retoiça dos gaiatos.
— Agora vamos comer enquanto a roupa acaba de enxugar. A ver se temos força para a ladeira. — e a Olinda olha embevecida para os seus rebentos. Está de coração cheio.
Mastigam devagar e em silêncio o pão cortado aos bocadinhos acompanhado do toucinho salgado.
— Mãe, tenho sede!
— Andem comigo, vamos ali todos beber água limpinha.
E meteu as mãos com o lenço em concha na água.
— Quando precisares de beber na ribeira escolhe sempre o corrente, do lado de cima dos lavadouros para não apanhar o sabão nem a porcaria, e mete o lenço para não passarem as sanguessugas.
— O que é as sanguessugas, mãe?
— São uns bichinhos que há na água da ribeira e se agarram às tripas. Tens que ter muito cuidado.
o empresário
Não entendo o que esta gente quer. Uma pessoa trabalha, trabalha, e quando vai para a cama vai a pensar como é que amanhã vai conseguir pagar aos colaboradores. E eles vão-se embora para casa dormir descansados sem preocupações. E depois o que se recebe é ingratidão.
A minha mãe diz-me para ter calma. Que os trabalhadores, se andarem satisfeitos, trabalham mais e melhor. Eu até acredito nisso, não pensem que sou um mau empregador. Nada disso! Mas há dias em que perco a paciência.
No tempo em que a minha mãe abriu o restaurante acho que era mais fácil, sei lá, acho que as pessoas tinham mais respeito, eram mais agradecidas. Lembro-me bem da dona Gracinha, sempre metida na cozinha, às voltas com os tachos, as panelas, as frigideiras. Quando eu era pequeno, vinha do jardim-escola e a minha mãe tinha que servir às mesas, aí eu ficava a brincar na parte de dentro do balcão. A dona Gracinha ficava com um olho nos tachos e outro em mim.
Uma vez apanhei-a distraída um bocadinho, quis ver o que estava num alguidar em cima da mesa e cheirava tão bem. O alguidar escorregou, não tive força para o segurar, caiu no chão e partiu-se. Além de se partir espalhou a lebre em vinha-d’alhos pelo chão. Uma lebre que, soube depois, era para um grupo de empregados do banco que tinham mesa reservada para a noite. Acho que um deles fazia anos. A minha mãe apanhou aquilo tudo do chão, limpou o chão, e atirou tudo para o lixo. A minha mãe era daquelas pessoas antigas. Nesse tempo ainda não havia a malfadada ASAE, nunca entendi porque é que ela não aproveitou a lebre, depois de bem lavadinha alguém ia notar alguma coisa? Não me lembro como é que ela fez para resolver o jantar dos bancários, porque até tenho uma vaga ideia de que a lebre tinham eles trazido.
A dona Gracinha desfazia-se em desculpas por não ter tomado conta de mim como deve ser. Até chorou. E a minha mãe deu-me umas chineladas, a mim!, que era pequenino e irresponsável.
O meu pai trabalhou na Lisnave. Quando recebeu a indemnização venderam a casa da Cova da Piedade e viemos para baixo. Acho que ele recebeu uma indemnização boa, não por me lembrar, mas porque tenho ouvido dizer que nessa altura o estado assumiu as indemnizações às pessoas despedidas, o que acho muito bem. Eu era muito pequenino, tenho poucas lembranças desses tempos. Depois veio o divórcio. Quando abriram o restaurante acho que já as coisas corriam mal entre eles. Ele depois saiu de casa para se juntar com a actual mulher, que também tinha, e tem, um restaurante, mas em Almadrava, mesmo à beira-mar. No Verão dá muito.
Acho que a dona Gracinha trabalhou no nosso restaurante desde o início. Desde que me lembro eram as duas: ela na cozinha, que ficava na parte de dentro do balcão e a minha mãe nas mesas, e quando podia dava-lhe uma ajuda na cozinha e no serviço de copa que era tudo junto.
Depois a casa foi ganhando clientes, a dona Gracinha cozinhava muito bem, foram admitindo mais colaboradoras, nesse tempo diziam empregadas, e tiveram que aumentar a cozinha. Por sorte o dono da mercearia ao lado vendeu-a à minha mãe, aquilo também estava sempre às moscas. As grandes superfícies rebentaram com tudo o que era pequeno comércio. Para nós até deu jeito. Juntaram as duas casas e é assim que está até hoje. A casa está muito bem situada, perto dos bancos, da câmara municipal, das finanças e do tribunal. O nosso serviço de almoços é mais virado para essas pessoas. À noite trabalhamos com outro tipo de clientes, menos refeições, mas mais caras. Não temos parque de estacionamento mas também não sentimos a falta.
Quando a minha mãe teve o AVC, que não a matou, mas a deixou com sérias dificuldades quer nos movimentos dos membros do lado direito, quer na fala, eu como filho único, deixei o meu emprego nas finanças, pedi uma licença sem vencimento e dediquei-me a tomar conta do restaurante.
Comecei a fazer contas e tive que despedir duas colaboradoras. A minha mãe não tinha mão nelas. Aquilo era chegar à hora e iam-se embora sem dizer água vai, não importava que faltasse limpar a casa, arrumar tudo, preparar as coisas para o dia seguinte. Não, era ala que se faz tarde. E tive que ser eu a pagar as indemnizações, porque o tribunal de trabalho me obrigou. Como é que querem que o país vá para a frente? Uma pessoa paga os nossos impostos, paga a segurança social, paga seguros, paga tudo e não sobra nada.
É uma roubalheira, este estado. Imaginem que pago de IMI da minha vivenda mais de mil euros. Não sei o que eles fazem ao dinheiro. Ainda nem consegui pagar o Mercedes 300, é um sufoco constante.
Mas o que mais irrita é uma pessoa arranjar-lhes trabalho e depois ainda parece que nós é que lhes devemos. Imaginem que agora deram-lhes para pedir aumento. Ora, eu já pago acima do ordenado mínimo, seiscentos euros cada uma, a cozinheira é que leva setecentos, mas é uma excelente cozinheira. Imaginem que até a pindérica que vem do IEFP como estagiária acha que tem direito a aumento.
Desde há seis anos, quando tomei conta do restaurante, costumo ter cá sempre uma pessoa que vem do IEFP, e já passaram cá por casa pessoas muito capazes. Mas como esta nunca tinha acontecido. Ainda hoje vou ao IEFP e devolvo-a, ai isso é que devolvo.
a senhora aurora
Não gosto nada de ouvir as pessoas dizerem dona Maria, dona Guilhermina, dona Albertina. E quando dizem dona Aurora então chega-me a mostarda ao nariz. Eu não sou dona de nada. Eu sou uma pessoa que veio ao mundo d’em pelão, e quando morrer também não levarei nada. Então porque me haviam de chamar dona Aurora?
Estou aqui a pensar se é assim que se escreve “d’em pelão”. A minha professora primária dizia que isso não se diz, quando muito poderia dizer-se “em pelão”, mas o termo correcto é “nua”. Ora eu acho que a palavra “nua” é muito fina. E eu sempre ouvi a minha mãe e a minha avó dizerem “d’em pelão”, e elas eram pessoas que sabiam o que diziam. Eu gosto de falar bem e bem explicado. Não sou como aquelas pessoas que comem metade das letras. Eu nunca digo farrobeira. Se está escrito alfarrobeira, porque é que havia de dizer farrobeira? Mas também não gosto de falar com palavras finas. Dizer palavras finas é para gente rica, e eu sou pobre. Nasci pobre e hei-de ser pobre toda a vida. Pobre mas honrada!
Também não gosto de ouvir chamar tia a toda a gente. Graças a Deus tenho duas sobrinhas que são umas jóias. Ambas casadas de fresco com uns maridos que também não lhes ficam atrás. Um é factor do caminho de ferro e o outro trabalha nas finanças. Gente honrada. A esses eu acho que está certo chamarem-me tia Aurora. Mas porque raio é que as outras pessoas me haviam de chamar tia Aurora. Perdão, eu disse raio? Não costumo praguejar, peço desculpa, perdi as estribeiras. Acho que isso de chamar tia até podia ser ofensivo para as minhas santas sobrinhas e para os seus excelsos maridos. Mesmo aos filhos das minhas sobrinhas, quando nascerem e crescerem, eu acho que não ficará mal chamarem-me tia Aurora.
Mas não é só o chamarem tia a toda a gente. O pior é que nem sabem dizer tia. Dizem ti: ti Joquina, será que nem sabem dizer Joaquina, ti Joana, ti Matilde, ti Custoida, também parece que não sabem dizer Custódia. Eu não, eu gosto de chamar as pessoas pelo seu nome de baptismo, não é Inaiça, nem Abil, nem Zei; é Inácia, é Abílio, é José.
Acho uma falta de respeito as pessoas dizerem:
— Olha, além vai a Aurora.
Eu não andei com elas na escola. Haja respeito. Ainda há outras que tomam uma familiaridade que ninguém lhes deu. Ainda no outro dia a esposa do senhor Fernando da mercearia da vila se dirigiu a mim assim:
— A amiga quer mais alguma coisa?
Ora, eu conheço a senhora só lá da mercearia, não tenho qualquer amizade com ela. Estive quase para lhe dizer isso mesmo.
Também parece que está na moda as pessoas chamarem vizinha a toda a gente. Ora, a minha vizinha é a senhora Amélia, que mora mesmo aqui ao lado desde que casei e vim morar para aqui. Ainda não disse, mas eu era do Mioto. O meu Manuel é que era daqui. E não sou pessoa de modas. As pessoas que vão atrás de modas é porque não têm personalidade. Vão atrás dos outros. Eu não ando cá por ver andar os outros.
Também não gosto nada de ouvir as pessoas dizerem “coisa” por tudo e por nada. Dizem coisa, dizem coiso, qualquer dia dizem coisar. E reparem que usam a coisa e o coiso a torto e a direito, tanto para designar aquilo de que não sabem o nome como para classificar com adjectivos que não conhecem ou de que não se lembram. No outro dia ouvi um empregado das finanças dizer “A coisa está a ficar coiso.” Quem é que entende o que o homem queria dizer? Graças a Deus, o meu sobrinho não é assim. É uma pessoa com formação. Fala bem, explica-se bem. Estou muito contente com os escolhidos das minhas sobrinhas.
A mim, a não ser o meu marido e as minhas filhas e netos, as minhas colegas de escola, as minhas amigas de infância, a minha vizinha, as minhas sobrinhas e respectivos maridos, não admito que me tratem por Aurora, nem por mãe, nem por avó, nem por vizinha, nem por tia. Por “ti” então não admito a ninguém. E por dona só admitiria à minha “Borboleta” se ela falasse, que não lhe falta muito. Mesmo aos gatos não admitiria, porque não tenho mando neles.
A mim, todas as outras pessoas, se quiserem ser bem educadas, tratem-me por senhora Aurora. É assim que eu trato as pessoas. Por senhora e por senhor, por menino e por menina, se se tratar de pessoas solteiras. Custa assim tanto?
Talvez estejam pensando: 'Onde quererá a senhora Aurora chegar com esta conversa toda?'
Pois bem, ainda anteontem vinha eu da ribeira com a alcofa da roupa à cabeça. Aqui dizem barreleira. Ora, uma barreleira serve para pôr a roupa na barrela, esta eu uso para carregar a roupa. Sim, é verdade que às vezes também uso para isso, quando levo roupa branca. Chego lá ao lavadouro e a primeira coisa que faço é esfregar a roupa com os tomates do inferno e pô-la na alcofa para desencardir. Com esta terra barrenta daqui, que entra por todo o lado, é o melhor que há para desencardir a roupa. Mas eu gosto mais de chamar alcofa. A minha é de esparto, há quem goste das de palma, para mim não há como as de esparto.
Como ia dizendo, vinha eu da ribeira, atravessei a estrada nova... que saudades da minha terra. No Mioto há água com fartura. Há dois poços, há a mina, para regar as hortas. Para beber, para a cozinha, para lavar, há uma fonte mesmo no meio da aldeia, que corre todo o ano. Água tão fina, às vezes até nem o sabão lhe pega, de tão fina que é. Uma pessoa bebe e nunca pesa no estômago. É um regalo.
Atravessei a estrada e ouvi muito bem umas vozes de raparigas do lado da paragem da camioneta:
— Ó ti Coisa! Ó ti Coisa!
Ora, como eu não sou ti Coisa, nem olhei.
Elas lá continuaram a bradar:
— Ó ti Coisa! Ó ti Coisa!
Quando cheguei a casa e fui guardar a roupa, faltavam-me uma camisa branca do meu Manuel e umas cuecas minhas. Lá tive que voltar para trás e apanhar as peças de roupa, que ainda lá estavam, todas sujas de terra, mesmo onde eu ia quando as raparigas começaram a bradar. Tive que voltar à ribeira, a camisa era para o meu Manuel ir ontem a um funeral.