há coincidências

     O chamarem-lhe Rosa era um estigma que o acompanhava desde a escola primária, lá no Alentejo. Nessa altura ainda andou à pancada com alguns que lhe parecia fazerem-no por caçoada. Depois acabou por se conformar que ninguém lhe iria nunca chamar Epaminondas. Conformou-se, mas, lá por dentro, nunca aceitou.

    O Joaquim Rosa era feitor da casa Ramiro Guedes. Quando nasceu o filho, claro que convidou o doutor Ramiro para padrinho. Foi assim que este ganhou o nome de Epaminondas dos Mártires Rosa.

    Mas não foi só o estigma do nome que marcou a sua infância e juventude. A verdade é que toda a gente o evitava e ele nunca entendeu porquê, ser filho do feitor não é fácil. Se entrava no café, para jogar bilhar, nenhum dos que desafiava lhe apetecia jogar naquele momento. Com o filho do senhor João da mercearia ainda teve uma vez uma altercação, porque este tinha acabado de dizer que não lhe apetecia jogar e passados menos de cinco minutos estava a jogar com o filho do farmacêutico.
    — Epaminondazinho — só a mãe o tratava assim —, deixa mas é de fazer figura de pedinte. Não vês que eles pensam que são grandes. Deixa-os lá. Dá-lhes o desprezo. Vai pelas tabernas, aprende com eles a cantar.
    Foi assim que, com muita relutância, começou a entrar nas tabernas. Pior a emenda que o soneto. Calavam-se as conversas quando ele se aproximava. As desculpas para não aceitar beber com ele eram das mais esfarrapadas que se possa imaginar.

    Tornou-se solitário e amargo. Andava pelos campos, pescava, caçava. Ia aos bailes, e era rara a vez que não havia zaragata em que estivesse envolvido.

    Assim que a idade o permitiu ofereceu-se como voluntário para a tropa. Foi comando em Angola. Quando regressou, andou algum tempo pela vila sem saber o que fazer. Foi para a GNR, lá no íntimo com o desejo de sair para onde ninguém o conhecesse.
    Quando foi colocado no posto de Odemano depressa adquiriu a alcunha de “Endireita Cidades”, porque dizia por todo o lado que agora ia endireitar a cidade. Se nunca tinha tido amigos, não foi aqui que os arranjou. Tirando dois ou três colegas, não se dava com mais ninguém.

    A Clarisse veio do Alentejo litoral com dezassete anos trabalhar para um café em Odemano porque por lá o trabalho não abundava, e para escola não havia posses.
    Depressa o Joventino, o patrão, casado e com três filhos, mas mulherengo por natureza e vocação, se aproveitou do desamparo, e também de alguma liberalidade de princípios da Clarisse.
    — Quero lá saber que tu não deixes a tua mulher. Até é melhor assim. Ela até é muito boa pessoa e gosta muito de mim, e eu não sou ciumenta. — e ria  — Só há uma coisa de que tenho pena. Gostava de ter filhos. Mas descansa que sei muito bem que tu já tens três e não te vou complicar a vida.

    E foi assim que, através de um dos colegas do Epaminondas, e amigo do Joventino, se fez a aproximação do cabo Rosa à Clarisse.

    Casaram. Depressa tiveram um casalinho de rebentos lindos. A vida corria bem. Embora ele fosse muito possessivo, ela sabia dar-lhe a volta.
    — Clarisse, não tenho nada que me faça desconfiar, mas se alguma vez me traísses eu era capaz de matar.
    — Não sejas tontinho. Tu e os nossos filhos são tudo para mim, Epas. —  era assim que Clarisse o tratava: Epas, e ele não desgostava.
    O que é certo é que o cabo Rosa já não era o homem amargo, o guarda implacável, que tinha sido. Só alguns mais renitentes ainda o apelidavam pelas costas de “Endireita cidades”.

    Uma noite de inverno vinham, o Joventino com a Clarisse, da serra, no carro, e, mesmo à saída da curva, sem hipóteses de desvio, viram o cruzamento onde se volta para a Almadrava, antes de chegar a Odemano, pejado de guardas republicanos.
    — O meu marido deve estar ali. E ele não disse nada. — e a Clarisse começou a tremer.
    — Vou acelerar e não paro…
    — Não faças isso! Eles estão armados. Seja o que Deus quiser. — e a Clarisse abaixou-se no banco e começou a rezar.

    O Joventino encostou como lhe mandaram.
    — Boa noite! — o agente apontou a lanterna para dentro do carro e rapidamente a desviou da cara da Clarisse.
    — Calma! Tiveste muita sorte, ele mesmo agora aqui estava, não há dois minutos. Foi fazer o serviço ali atrás daquela alfarrobeira. Vão-se embora e tenham mais cuidado. Porra.

natrium sa

    O papel passa de mão em mão. Cada um lê com atenção e passa a outro. Todos riem com estardalhaço ao acabar a leitura. Os restantes conversam entre si em voz alta, assuntos diversos, banais. Alguns escrevem em papéis semelhantes ao primeiro, que põem a circular. Algumas pessoas presentes na esplanada olham com curiosidade o ruidoso grupo que lhes retribui os olhares com sorrisos coniventes. A ninguém lhe passaria pela cabeça que aqueles papéis que circulam de mão em mão não são textos humorísticos. Como também não lhe passaria pela cabeça que cada papel depois de lido por todos vai pela sanita abaixo, é papel solúvel.
    Tarde de domingo. Quando se separam, distribuindo sorrisos por todos os que desfrutam da esplanada, espalham-se rapidamente pela cidade. Cada um ao encontro dos respectivos companheiros, que entretanto andaram pela cidade levando consigo os telemóveis, mesmo desligados.
    Todas as medidas são poucas para despistar os agentes do DSS - Departamento de Saúde e Segurança. É preciso despistar as escutas e localizações telefónicas, é preciso despistar os microfones direccionais de longo alcance. É preciso ter todos os cuidados.

    — Marquinho, lá em baixo é o mar. Para lá das barreiras. Quando a mãe era da tua idade passava dias inteiros na praia... — Mariana baixa a voz para explicar ao filho, enquanto passa o tempo à espera do marido.
    Há quinze anos foram erigidas barreiras entre o mar e a cidade. Arame farpado, e um bardo de figueiras-da-índia com mais de vinte metros de espessura.

    O contacto com a água do mar só está permitido por motivos profissionais, e a trabalhadores da NATRIUM. E mesmo esses terão que passar pelos postos de controlo.
    — O senhor Marques hoje ingeriu água do mar!
    — Eu não, senhor agente. Só lavei a cara por causa do calor.
    O agente levanta os olhos do monitor e fixa-o com dureza:
    — Senhor Marques! Não pense que engana os sensores. Tenha cuidado, estime o seu emprego.

    Regularmente, uma vez por mês, reúne-se o conselho regional para coordenar a resistência. Desta vez, na esplanada, tratou-se de uma reunião alargada aos responsáveis de zona. Estava em causa a mudança de táctica. A situação da população está a ficar insuportável, é preciso acções que deixem o DSS à nora e animem a massa. Em resumo: passar à ofensiva.
    Duas semanas para preparar os pormenores: a juventude e os reformados serão os principais envolvidos na acção.
    Já lá vão trinta e sete anos, um escritor franzino e apagado escreveu que quando começam a diabolizar um alimento, mesmo que se trate de um alimento essencial, o caminho está aberto para todas as arbitrariedades que se possam imaginar. Na altura, os poucos que o leram acharam que era mais um louco.

    — Então o senhor Almeida acha que a NATRIUM SA não tem legitimidade para governar a ilha? — o juiz da NATRIUM é implacável — Permita-me que lhe recorde que a nossa Constituição foi referendada.
    — Foi, sim, Sua Excelência, mas isso foi há vinte e dois anos. Apostaria tudo o que me pedissem que hoje o resultado não seria o mesmo.
    — Isso não está aqui em discussão. Quero lembrar-lhe que conspirar contra a NATRIUM SA é crime.
    — Conspirar?!
    — O senhor Almeida nega que o disse perante três amigos à mesa do café?
    Ernesto Almeida gelou.
    — Por esta vez o senhor Almeida leva apenas uma repreensão registada, por não ser reincidente. Mas não pense que a NATRIUM anda a dormir. Se reincidir teremos mão pesada.

    A Constituição de 2033 foi referendada. O sim teve 65,17 % dos votos expressos, de um universo de 71,34 % dos eleitores inscritos. Havia muitas décadas que a abstenção não era tão baixa. As duas imposições mais marcantes desta constituição são o adiar de eleições “sine die”, como forma de garantir a estabilidade, e a entrega de todas as funções da governação da ilha, incluindo a judicial e a legislativa, à empresa NATRIUM SA.
    — Para que são esses deputados todos? — era voz corrente desde havia muitos anos. Tendência crescente agravada pela inépcia na solução dos problemas prementes e por escândalos a rebentarem por todos os lados.
    Cada vez com menos meios, os serviços do estado foram definhando e não conseguiam dar resposta às necessidades da população.
    Em 2019, foi fortemente penalizado fiscalmente o comércio do sal. Medida que contou com apoio activo da televisão local, de mais de dois terços das associações a favor da vida saudável, assim como das três igrejas com peso na ilha.
    — Esta medida já vem tarde — apregoava o ministro da saúde Alves Moreira — o sal é o veneno da civilização.
    Em 2024 formou-se a NATRIUM SA, tendo à cabeça o Dr. Alves Moreira, como presidente da administração.
    Beneficiando das medidas anteriores de restrição do comércio através da carga fiscal gigantesca, da poderosa máquina de repressão do mercado negro e do posicionamento em postos chave do aparelho de estado, a NATRIUM alcandorou-se ao monopólio da produção e comércio de sal na ilha. Produzia para o mercado interno e para exportação, adquirindo rapidamente a imagem do melhor empregador da ilha, assim como de máquina afinada e oleada onde nada falhava. A compra das acções da NATRIUM depressa ultrapassou a compra dos títulos da dívida pública, até então preponderantes entre quem tinha dinheiro.

    Em 33, por impulso de um grupo de cidadãos cujo centro foi o Dr. Alves Moreira, houve o já citado referendo. Com os resultados já referidos.

    Vinte e dois anos depois, a NATRIUM estagnava devido à falta de poder de compra da população e à quebra das exportações, por outras ilhas terem resolvido os seus problemas de abastecimento. O número de excluídos não parava de subir. A NATRIUM sempre optou por uma política de se concentrar na produção e comércio do sal e na administração da ilha em todos os seus aspectos, deixando os outros ramos do comércio, a agricultura e alguma indústria subsidiária para outros investidores. Mas, no fundo, tudo girava à sua volta. Se a NATRIUM não conseguia subir o volume de negócios, tudo o resto se sentia.
    O desespero da população para o acesso ao sal atingia o máximo e levava muitas vezes a actos tresloucados. A NATRIUM, pressionada pelos accionistas, respondeu com o aumento das medidas de segurança. As barreiras passaram a ser electrificadas. A instauração da pena de morte foi a medida mais drástica.
    A resistência foi aparecendo a pouco e pouco. No início eram meia dúzia. Mas a electrificação das barreiras e a pena de morte indignaram muitos milhares.

    — Que confusão é esta? — berrava o Dr. Alves Moreira ao telefone, no gabinete da presidência da NATRIUM. — Quero que isto fique resolvido ainda antes do almoço. Antes que rolem cabeças...
    De repente a situação era caótica em toda a cidade. Amanheceu um dia normal e às oito e meia pode-se dizer que a cidade era um engarrafamento completo.
    Estava o Dr. Alves Moreira longe de entender que as decisões do conselho regional da resistência de há pouco mais de quinze dias estavam a ter amplo sucesso e adesão em massa. E o DSS completamente à nora. Quando os agentes do DSS chegavam a uma passadeira que os transeuntes, os mais novos e os reformados, teimavam em passar em fila interminável. Já estes se tinham dispersado e o mesmo começava noutras partes da cidade. Em dezenas de passadeiras...


* Natrium é sódio. Vem do latim, e ainda é a palavra para sódio em várias línguas. Daí que o seu símbolo químico seja Na.

o escriba

     — Filho, quero que vás dizer ao Vicente que tenho uma coisa para lhe dizer antes que me vá desta para melhor. Ele que venha cá ainda hoje. Não sei se passo desta noite.
    O filho olha-o sério. Queria-lhe dizer que tivesse esperança, mas isso adiantava? Queria-lhe dizer tantas coisas, tantas coisas. Mas limita-se a dizer:
    — E se ele não quiser vir? Há quantos anos vocês nem uma palavra trocam?
    — Mesmo assim vai. E se ele não quiser vir, convence-o. Diz-lhe que é importante, muito importante. — os olhos do Casimiro transmitem tal determinação que o filho nem se atreve a perguntar o que é que ele tem de tão importante para dizer ao Vicente.   
 
    — Casimiro, mandei-te chamar para te fazer uma proposta.
    — Sim, senhor doutor. Então diga lá.
    O presidente da câmara olha-o bem nos olhos.
    — É muito simples. Sei muito bem da tua situação difícil depois do acidente. Também sei que eras um aluno brilhante na escola. A tua habilidade para a escrita pode vir a ser o teu ganha pão. Pensa no teu filho.
    — Continuo a não entender, senhor doutor.
    — Sabes decerto que faleceu o senhor Aniceto?
    — Sei, sim. Aquele senhor que tinha a secretária lá no corredor da câmara e escrevia requerimentos e servia de testemunha para as escrituras a troco de uma gorjeta.
    Algo na mente do Casimiro se pôs imediatamente em alerta. É que o Aniceto tinha fama de ser bufo da PIDE.
    O Casimiro trabalhou na fábrica da cortiça até ao dia em que a máquina lhe arrancou a mão acima do pulso. O tribunal sentenciou que o acidente se deveu a descuido do trabalhador. Foi despedido de mãos a abanar, salvo seja. Foi a mão direita que perdeu, o que no caso do Casimiro até é uma vantagem porque é canhoto.   
    — A minha proposta é que tu ocupes o lugar dele. Sempre que tiveres alguma dúvida podes contar comigo para te ensinar alguma coisa. Sei que tu te vais desenrascar bem. Olha que o Aniceto conseguia equilibrar bem a vida. — promete o presidente Morais.
    Tanta simpatia e interesse põem o Casimiro cada vez mais de pé atrás.
    A mulher morreu no parto do único filho que tem agora oito anos. Casimiro não é homem de desesperar, mas a situação não lhe deixa muita margem para esperanças. Conta durante algum tempo com a solidariedade dos camaradas de trabalho, e de outros camaradas inconfessáveis. Mas os tempos são difíceis para todos. E Casimiro tem o seu brio e dignidade aguçados, herança do pai. Atira-se à vida a fazer uns biscates de caiador. Aprende depressa a tirar partido do coto do braço incompleto. Mas o trabalho escasseia. Os mais pobres caiam eles próprios, uma boa parte dos mais ricos afastam-se dele pela fama de comunista.   
    — Senhor doutor. Vamos ser claros, e o que é que eu tenho que dar em troca?
    — Ó, homem de Deus, não tens que dar nada. Isso até me ofende! Basta que sejas um bom cidadão. Patriota, respeitador das instituições. Zeloso contra todos os inimigos do nosso Estado Novo.   
    — Senhor doutor. É verdade que a vida me tem sido difícil. E agradeço muito o seu interesse e ter-se lembrado de mim. A sério que agradeço. Mas se bem entendo o que me está a pedir, não posso aceitar. Não é sequer por mim, é pelo meu filho. Eu sou um homem simples, não me meto em nada. Mas o senhor doutor disse-me para pensar no meu filho. Agradeço-lhe muito, e é mesmo nele que estou pensando agora mesmo. Quero que ele nunca se envergonhe de mim, da mesma maneira que eu nunca me envergonharei do meu pai.
    Pareceu ao Casimiro que estas últimas palavras comoveram o presidente. Seria verdade que ele esteve na origem da prisão do seu pai, como muita gente dizia? Seria o peso da consciência a trabalhar? O Casimiro estava alerta.
    A última vez que o Casimiro viu o pai tinha quinze anos. Primeiro para o Aljube, depois para o Tarrafal, onde o seu corpo não resistiu.   
    — Casimiro, vamos esquecer esta última parte da conversa. — os lábios do presidente tremiam. — Quero que aceites o trabalho que te proponho, peço-te que o aceites. Não te imponho condições, não quero nada em troca. Conta comigo para alguma ajuda que precisares. Pensa no teu filho. E tenho a certeza que ele nunca se envergonhará de ti. — e estendeu-lhe a mão.
    — Sem condições?
    — Sim, sem condições. É a minha palavra de honra.
    Pareceu a Casimiro vislumbrar-lhe uma pequena lágrima no canto do olho. A grande dúvida aumentava. Seria a consciência?
    — Não posso aceitar.
    Para desconcerto do Casimiro o presidente foi à porta do gabinete, trancou-a e começou a chorar. Quando se conseguiu acalmar:
    — Não é o que tu pensas, Casimiro. Eu sei que tu podes pensar que fui eu que meti o teu pai na prisão. Muita gente pensa isso. Mas não fui. Nem podia ser, porque... porque eu devo um grande favor ao teu pai. É por isso que me interessei por ti. Tu acabas de me revelar que és digno do carácter dele. Estamos em campos opostos mas eu tenho uma grande admiração pelo carácter dele.
    Casimiro estava sem palavras.   
    — Eu vou-te contar. Quando éramos moços andávamos ambos atrás da mesma rapariga, aquela que veio a ser a tua mãe. Uma vez, depois dum baile, eu esperei-o à falsa fé mesmo à saída da ponte do Matias. Era uma noite de invernia, a ribeira ia cheia. Andámos à pancadaria a sério. A dada altura escorreguei e caí na ribeira. Sabes o que o teu pai fez? Atirou-se à água barrenta, lutou, lutou e conseguiu tirar-me com vida. Eu estava muito bêbado, e além disso nadava muito pouco.
 
    — Camaradas, eu até entendo as dificuldades do Casimiro. Mas daqui para a frente temos que ter muito cuidado com ele. Há homens que cedem, nunca sabemos se cedemos até passarmos por elas. Muito cuidado!
    Os camaradas da célula, uns com mais, outros com menos convicção, aceitaram a advertência do camarada Vicente, afinal era a segurança do partido que estava em causa.
 
    — Ó, pai, o que é um bufo?
    — Um bufo é um homem que denuncia os outros. Que diz à PIDE o que os outros fazem.
    — Um moço na escola disse que tu és bufo.
    — Não me digas quem é o moço, nem acredites nisso.
    — Amanhã dou-lhe uns sopapos.
    — Olha-me bem nos olhos e acredita que eu não sou bufo, nem nunca serei. Quando alguém disser isso não te zangues, não batas em ninguém. Basta que tenhas a certeza que o pai não é bufo. Quero que tenhas orgulho no teu pai, como eu tenho no meu.
 
    E foi assim que o Casimiro se tornou no escriba conhecido por todo o concelho. Ao fim de duas décadas raro seria o habitante do concelho, mesmo os mais letrados, que não teria alguma vez recorrido aos serviços do Casimiro. Alguns mesmo para testemunhas de casamento ou padrinhos de registo civil. Note-se que os serviços do estado estavam todos concentrados no mesmo edifício. Até era comum as confusões das pessoas que iam ao registo civil ou às finanças e pensavam que tinham ido à câmara.
 
    Quando a viúva do presidente faleceu, doze anos depois da morte deste, estava o Casimiro acamado com a pneumonia que o viria a derrubar para sempre. E foi nessa altura que pediu ao filho para chamar o Vicente.
    — Diz ao teu pai que passo lá a casa logo depois do trabalho.
    — Até logo, senhor Vicente, eu não sei o que ele lhe quer dizer, mas de certeza que é coisa importante.
    — Veremos. De qualquer maneira vai descansado, não sou homem de faltar à cabeceira de um moribundo por muito mal que tenha feito.
 
    Com a respiração entrecortada e fala difícil o Casimiro fala.
    — Vicente, antes de bater a bota quero-te dizer que nunca fui bufo como vocês pensaram. — e contou o que se tinha passado.
    — Casimiro, devias ter falado comigo e evitávamos todo este mal-entendido de uma vida, homem. O orgulho mata...
    — Não, Vicente! Eu prometi ao doutor Morais, a pedido dele, que nunca falaria nisto a ninguém até à morte de ambos, ele e a esposa. Não me perguntes porquê. Ele pediu, eu cumpri, ele também cumpriu a parte dele.

o bloqueio

     O cego ficou parado no largo. Tenteava uns passos inseguros, mas não saía do mesmo sítio. Notava-se que não sabia como sair dali.
    — Boa tarde, amigo. Precisa de ajuda?
    — Boa tarde, amigo. Antes de mais apresento-me. António de Campos. Muito prazer!
    — Domingos Rocha. O prazer é todo meu! Se precisar de alguma coisa?
    — Preciso, sim, amigo. E agradeço muito. O amigo tem telemóvel, que me possa fazer uma chamada para a minha irmã? Ela mora aqui na Almadrava.
    — Mas não estamos em Almadrava, estamos em Odemano. Daqui a Almadrava são uns trinta quilómetros. Talvez não sejam trinta, mas vinte e muitos são.
    O cego ficou boquiaberto.
    — Não me diga uma coisa dessas. Pedi ao motorista do expresso que me avisasse quando chegássemos à Almadrava... mas faça-me esse favor, ligue na mesma para a minha irmã e diga-lhe onde estamos. Ela deve saber onde é. Mora por cá há muitos anos. O meu falecido cunhado era da Almadrava.
    O cego tira um papel da carteira com o número de telefone.                 Domingos chama para o número escrito no papel.
    Não atendem.
    — Não me admiro que não atenda. Ela é muito surda, mas não vale a pena insistir. Quando ela vir a chamada ela liga de volta. É sempre assim. Ainda espero vir a conseguir usar um telemóvel. Faz muita falta, e nas minhas condições muito mais.

    — Está bem, Domingos. Não deixes de ajudar quem precisa.
    — ...
    — Pois, assim estás dependente de quando a irmã do senhor voltar a ligar. Eu entendo.
    — ...
    — Até logo. Beijinhos.
    Conheceram-se pela Internet. Domingos viúvo, Alzira divorciada. Hoje será o grande dia em que se irão conhecer ao vivo. Alzira tem cada vez mais a certeza de que não se irá desiludir. Domingos revela-se-lhe mais uma vez uma pessoa muito humana, muito sensível. Ele estava preocupado que ela não entendesse a demora. Como poderia não entender gesto tão nobre como ajudar um pobre cego perdido sem conhecer a cidade?

    — Sabe, amigo, eu não sou cego de nascença. Fiquei cego de um dia para o outro, há três anos. Eles agora dizem invisual, mas eu sou mesmo cego. Quero lá saber da palavra que eles usam, não é isso que me dá vista.
    — Lamento muito.
    — Deixe lá, amigo. O pior já passou. Os primeiros dois anos foram os piores. Não me conformava. Olhe que ainda pensei pôr termo à vida. É verdade. E eu que gosto tanto de viver.
    — Fico sem palavras.
    — Não fique, amigo. O pior já passou. É um lugar comum que nós resistimos mais do que imaginamos. Mas é verdade, eu agora tenho a certeza. Imagine que eu sempre tive uma vida bem vivida. Ao princípio foi isso que mais me custou. E sozinho. Tenho dois filhos mas têm a vida deles. A minha esposa morreu há dez anos. Mas sabe, amigo, foi mesmo essa vida agitada que me dá as recordações que me permitem viver agora. E aqui onde estamos estou a sentir-me em casa. Este cheiro a mar. Trabalhei muitos anos na lota da minha terra.
    — Aqui há certos dias que cheira muito mal. A primeira vez que vim a Odemano, tinha cinco anos. Vim com a minha mãe ao médico. Passados quase cinquenta ainda tenho algumas recordações desse dia. Uma grua, os barcos e o cheiro, sobretudo o cheiro.
    — Cheira mal? Para mim este cheiro desperta-me das melhores recordações da minha vida. Porque não vamos passear um bocado à beira-mar. A minha irmã pode telefonar a qualquer momento. Mas também pode demorar. Às vezes anda lá nas coisas dela e não se lembra de ir ver se tem chamadas.

    — ...
    — Agora estamos aqui num restaurante. O senhor António está a jantar. Eu pago-lhe o jantar. Confesso que também já comia. Coitado, ainda não recebeu a reforma este mês. Vinha a contar jantar com a irmã, mas ela ainda não ligou...
    — ...
    — Eu sei. Assim que ela ligar eu ligo-te para ir ter contigo. Eu sei que o arroz de pato frio não tem graça nenhuma, mas que hei de fazer?
    — ...
    — Beijinhos.

    — Sabes o que te digo, Alzira, esse Domingos deve ser é um banana.
    — Oh mãe, ele é um amor de pessoa.
    — Hm, queira Deus que me engane... o outro era vivaço demais, mas tudo tem um ponto certo.
    Alzira calou-se. Se calhar a mãe teria razão. Mas não acredita. O Domingos é uma jóia de pessoa, tem a certeza.

    Alzira casou nova. Ele era um bom trabalhador, e justiça lhe seja feita, um homem bom. O pior é que tinha mau vinho, com a agravante de que gostava de beber. Não se pode dizer que fosse alcoólico, nunca bebia sozinho. Mas eram mais que muitas as vezes que o teve que ir buscar à esquadra da PSP. Os polícias conheciam-no e sabiam que quando ela chegasse ele acalmava. Assim que os filhos atingiram a maioridade pediu, exigiu, o divórcio. Já não podia suportar mais.

    Eram dez horas e trinta e dois minutos quando o telemóvel tocou. No outro lado uma voz feminina:
    — A minha mãe tem aqui uma chamada não atendida. Pedimos desculpa, ela é surda e distraída. Suponho que seja da parte do meu tio António, um senhor cego?
    — É sim, senhora. Temos estado à espera.
    — Mil desculpas, meu senhor. E antes de mais obrigado pela paciência e boa vontade. Sabe-me dizer onde estão?
    — ...
    — Então vão ter ao bar “Chinchilas” que fica aí perto, qualquer pessoa sabe dizer onde é. Dentro de meia hora no máximo estamos aí.

    Quando o casal saiu do carro a rir e se dirigiu ao Domingos, este estranhou o tom, mas nem por sombras desconfiou da realidade.
    — Nós somos uma equipa de um psicólogo, uma antropóloga e um actor e estamos a fazer um estudo sobre como são tratados pelos cidadãos as pessoas com imparidade. Parabéns, senhor Domingos! Portou-se muito bem.
Domingos olhou para o cego e este já não tinha a bengala nem os óculos escuros e sorria para ele. Passa-lhe uma chispa pela cabeça, atira-se ao falso cego e dá-lhe dois valentes murros na cara.
    — Este é por mim! Este é pela Alzira! — e espumava.

    — Mas este número é da polícia!!!
    — ...
    — Como é que dizes? Mandaste o cego para o hospital com dois murros? Um em teu nome e outro no meu? Que raio de conversa é essa?
    — ...
    — Desculpa lá, Domingos, mas esse filme já eu conheço de cor e salteado. Tomara que não conhecesse. Foram muitos anos.
    — ...
    — E não vale a pena me tentares contactar pelo Facebook, que te vou bloquear já... ou eu não me chame Alzira... olha, boa sorte!