na martano azul do meu pai

Na Martano azul do meu pai
andava eu sempre na brasa
mas porque a pé também se cai
não me diga vem já pra casa.

Não vou já pra casa, ó mãe
que gosto muito de andar
e mesmo se ainda não ando bem
o meu gosto é pedalar.

A perna no quadro metida
é que o selim ainda está alto
sou pequenino, é a vida
mas depressa vou dar o salto

Dar o salto, muito crescer
chegar ao selim ainda este ano
depois é que vai ser correr
sempre a pedalar na Martano.

mudam-se os tempos

     Que engraçado! Estou a reconhecer isto. Que coincidência. De propósito nunca saberia vir aqui ter. Só se fosse guiando-me pela palmeira enorme que aqui havia. Mas essa já cá não está.
    Era aqui. De certeza que não estou enganado. Avistava-se aquela curva da ribeira do Gralho lá em baixo. E, pela configuração da serra, lá ao fundo, só podia ser aqui. Havia aqui duas alfarrobeiras grandes, mesmo onde está este tanque. E a palmeira estava ali. Uma palmeira muito alta, que se avistava de toda a redondeza. Já só restam essas casas esborralhadas. Estou a ver, as da banda de lá foram deitadas a baixo para pôr as laranjeiras, mas estas não eram do mesmo dono. Elas tinham era uns quatro ou cinco donos. Pois era, aqui eram as da tia Clementina, que tinha duas moças pouco mais velhas que eu. Que será feito delas? Já me lembro bem. Ainda se vê ali um resto da barra azul.
    Belos tempos. Foi aqui que passámos três dias, pelo Carnaval. Tinha o Natalino vindo da tropa. E eu dei o salto nesse verão. O Carnaval foi muito cedo, aí para os princípios de Fevereiro. O Natalino tinha comprado o V5 poucas semanas antes, ele veio de Angola próximo do Natal.
    Parece que estou a ver. Estava eu a jogar às cartas lá à da Marília. Ainda a Marília terá a venda? ainda ela será viva?
    — Vitinha, queres vir comigo? Não sei a que horas voltamos. — e piscava o olho.
    Arrancámos eram umas três da tarde de domingo, o acordeão veio às minhas costas. Viemos pelas veredas da charneca, nem eu sei por onde passei, ele é que conhecia isso aí tudo.
    Muitas voltas demos nós por essa charneca nesses meses, desde que ele comprou o V5 até que eu me fui embora. Ele conhecia por aí tudo, já desde antes da tropa. Umas vezes chamavam-no para ir tocar, outras vezes resolvia ele aparecer. Fiquei a conhecer muita gente. E fiquei a conhecer onde moravam muitos outros e outras que conhecia desde pequenino, porque passavam à minha porta quando iam lavar à ribeira ou iam buscar água à ribeira ou aos poços lá do Vale.
    Nesse tempo não havia pinga de água por essa charneca. Agora parece um jardim, pelo menos pelo que se avista daqui. Já me tinham dito que isto estava assim, mas nunca tinha visto com os meus olhos. E com os nossos sentidos é outra coisa. Estou aqui a ver este verde todo à minha volta e ainda estou a cheirar a secura da terra no verão, a ouvir o cantar das cigarras, a sentir o cheiro das primeiras águas, das lavoiras, do funcho, a sacudir as botas para conseguir que elas largassem a terra, depois das chuvas...
    Quando ele rompeu a tocar, assim que chegámos, começaram a sair moças aí das veredas, nem sei donde saía tanta moça.
    Depois enregou a chover e não parava. Era chuva e frio. Mas nós não tínhamos frio. Éramos novos. As moças e a malta aqui de perto iam dormir a casa e nós os dois, e outros que também eram de longe, ficámos por aí, nos palheiros. As pessoas eram muito hospitaleiras e acolhedoras, mas não tinham onde nos dar cama. Davam-nos comida e emprestavam-nos mantas. Nós ficámos os dois no palheiro da tia Clementina. Para quem não sabe, era o melhor sítio para dormir no inverno. Perto do burro e na palha. Se o frio chegasse, puxava-se mais palha e já estava. Nesse tempo era uma alegria.
    Dessa vez, quando voltámos para casa, foi uma carga de trabalhos para conseguir que o V5 se desenleasse da lama em certos sítios. Alguns pedaços tivemos que ir a pé e a puxar pela bicicleta. A lama agarrava-se aos pneus. Mas o Natalino já estava habituado a essas andanças desde antes da tropa, e também vinha de lá com o treino todo. E eu também não era coxo nenhum.
    Estava nestes pensamentos quando resolvi que eram horas de seguir viagem. No Vale ninguém estava à minha espera, mas havia de haver onde almoçar. Quase quarenta anos fora, mas havia de conhecer ainda alguém, que diabo!
    Quando dei à chave do carro, nada, nem ai nem ui. Ainda andei a balançá-lo  porque podia ser algum fio solto, mas nada. Lembrei-me que há baterias que morrem de repente, sem avisar, como dizem os mecânicos. Nunca me tinha acontecido, mas já tinha ouvido falar. O pior é que o carro estava numa posição donde eu não o conseguia pôr a andar sozinho.
    Resolvi ir pedir ajuda àquela casa que ficava já dentro do pomar de laranjeiras, logo a seguir.
    Bradei ao portão. Uma mulher roliça saiu, a limpar as mãos ao avental, duma porta, que já estava aberta, ao lado do armazém. Um enorme armazém que ocupava todo o piso térreo da construção.
    — Não faça barulho que ainda me acorda o homem, que está a descansar. — e chamou os canzarrões, que se atiravam contra as grades do portão como loucos.
    Expliquei-lhe a minha situação. Que só precisava que alguém me ajudasse a empurrar o carro, porque decerto seria a bateria que se foi abaixo. Se eu conseguisse pôr o carro a trabalhar iria procurar uma oficina à vila.
    — Não vou agora acordar o homem, que está a dormir ali dentro. — e apontou para a porta donde tinha saído — Ele deitou-se ainda não há meia-hora. Passou a noite toda no mercado de Odemano, para vender a fruta. Temos que ir para lá logo a seguir ao jantar.
    Seguindo o meu olhar, que instintivamente se virou para o piso superior, explicou:
    — Ah, a gente faz o governo todo aqui em baixo, dormimos, comemos, tudo. Andamos cá na nossa labuta, não vamos sujar a casa lá de cima.
    Depois falou lá para dentro:
    — Rui, não podes ir empurrar o carro a este senhor?
    Uma voz resmungou lá de dentro, e ela traduziu:
    — O meu filho tem exame amanhã, e tem que estudar, também não pode.
    — Esta estrada, pelos vistos, é pouco concorrida, já estou aqui há um bom bocado e ainda não passou ninguém.
    — Ah, aqui é raro passar alguém, quem vai para o Vale passa pela outra estrada. É só aqui para os moradores, dá para sairmos pelos dois lados, mas poucos aqui passam; a não ser que tenham algum interesse por aqui. — e olhou-me inquisitiva, de alto a baixo — O melhor que tem a fazer é esperar que o meu marido se levante, mas já o aviso que agora nem tão cedo. Ele já tinha dormido pouco na outra noite.
    — E não me sabe dizer um número de telefone duma oficina, eu tenho telemóvel, não sei é nenhum número?
    — É o mesmo problema. O meu marido é que sabe dessas coisas. Mas, se não quiser esperar, o que tem a fazer é ir andando até ao café. Além têm telefone e sabem esses números todos. Não chega a um quilómetro. E para cá até pode vir com o mecânico que cá vier.
    — E se me emprestassem essa bicicleta? — apontei para uma bicicleta a pedal que estava encostada à parede — Há muitos anos que não pedalo, mas isso não esquece.
    Soou uma voz grave lá de dentro, decerto o Rui:
    — Não empresto a bicicleta a ninguém.
    — Bem, então diz-me que o café é para este lado? Sempre a direito?
    — Sim, não tem nada que enganar.
    — Ainda não lhe disse, mas tem aqui um lindo pomar. Quando conheci isto nem água aqui havia. — ela ficou visivelmente curiosa, por isso continuei — Eu sou daqui de perto, do Vale, mas saí de cá em 67 e nunca mais cá voltei. Só estou agora de chegada, e só por uns dias. O meu pai já tinha morrido quando me fui embora, e a minha mãe morreu ainda antes de eu poder cá voltar. Não tenho cá ninguém, só um pedacinho de terra e umas casinhas, que já devem estar todas caídas. Passei por aqui porque há uma placa lá em baixo a dizer Vale. Quando de cá saí isto era uma charneca e agora é um jardim. Só havia veredas com pó no verão e lama no inverno, e agora é estradas por todo o lado. Até custo a reconhecer os sítios. Parei ali porque me pareceu reconhecer o lugar. Estive aqui pouco antes de dar o salto para a França, por uma altura de carnaval, com o Natalino, o tocador. Meteu-se de chuva e ficámos aqui três dias.
    Ouviu-se a mesma voz lá de dentro:
    — O comuna!
    Fiz que não ouvi e continuei, marcando bem as palavras:
    — Dantes havia aqui umas pessoas muito simpáticas e hospitaleiras. Pobres, mas muito simpáticas e hospitaleiras. Lembro-me bem da tia Clementina.
    — Era a minha avó. Morava aí nessa casa que ainda se vê uns restos da barra azul.
    — Pois, foi o que eu pensei. Boa gente. E as casas estão assim abandonadas?
    — Desentendimentos de família. Invejas. Nem fazem nem deixam fazer. Mas é melhor não falar nisso.
    — Bem, então vou-me meter ao caminho.
    — Veja lá, olhe que está muito calor. E não se esqueça de fechar o carro, nunca se sabe quem anda por aí.
    Pareceu-me ver uma insinuação nestas últimas palavras, mas devo ser eu que não estou de muito bom humor.
    O calor de Junho aperta. Dizia ela que não chega a um quilómetro, mais do que isso já devo ter andado. Sempre entre os pomares, tudo de citrinos. Algumas árvores ainda carregadas. Vou apanhar aqui uma laranja para molhar a boca, elas são tantas.
    — Oiça lá, senhor da boina! As laranjas têm dono. Isso dá trabalho a criar.
    Levei algum tempo a descobrir onde estaria a dona da voz esganiçada. E só a lobriguei porque ela esbracejava de cima duma escada empoleirada no que me pareceu um limoeiro, a uns cem metros. Pus a laranja em cima duma pedra alta, à sombra da laranjeira, fiz-lhe sinal apontando com o dedo e segui viagem.

pontos de vista cruzados

     Grande confusão me metia quando ela saía, silenciosa, para não me acordar, ainda o sol não tinha sonhado em aparecer. Depois comecei a reparar que o fazia em dias certos, saía um dia, ficava três dias sem sair, saía outra vez, e a seguir ficava dois dias em casa. E o ciclo continuava sempre igual. E só voltava já bem de noite, com muitas horas de escuro.
    Mais tarde soube que saía às quintas-feiras e domingos. Nunca me falou sobre o que ia fazer. Ouvi comentários do Joaquim e da Henriqueta foi uma vez em que ela ficou muitos dias sem voltar a casa e eles andavam muito tristes.
    — Que vício! — desabafava a Henriqueta.
    — É verdade. Quando eles se levantam já ela está à porta. E sabe quais são os dias de caça, parece que sabe o calendário. Como são os bichos! Naqueles dias em que a ribeira ia engolpada, ela teve que ir dar a volta à ponte de S. Cristóvão, não vejo outra maneira de ela lá chegar.
    — O que terá acontecido? Eles não dizem nada.
    — Também não lhes pergunto. Eles podem pensar que não gostamos que a cadela vá com eles. — eles, eram os donos da minha avó, donde a minha mãe tinha vindo em cachorrinha.
    Apareceu um domingo à tarde, tinha saído na quinta-feira da outra semana. Vinha magra e tremia. Trazia alguns arranhões, talvez de silvas.
    Depois, eles contaram que não a tinham conseguido encontrar e tiveram que se vir embora sem ela. Isto além para os lados de Salir.
    Na quinta-feira a seguir lá foi ela outra vez. Não sei o que é isso da caça, mas acho que ela também não quer que eu seja caçadora, nunca me falou em tal coisa. Estou convencida de que é um vício a que ela não consegue fugir, assim como o Joaquim com os cigarros.

    Aquela canita tinha-me o Joaquim do Vale dado.
    — Eu não sei se a canita é boa para a caça, Manel, mas dizem que filho de peixe sabe nadar, e a mãe não podia ter mais vício. Lá em casa não há caçadores. — disse-me ele, um domingo à tarde, quando estávamos a jogar aos três-setes à da Marília. — E para que quero eu duas cadelas?
    Juntei-a aos meus. Estava a pensar em dar uma volta com ela aqui por perto do monte, a ver o jeito do bicho, mas o tempo meteu-se de chuva e não deu. Levei-a um dia que fomos para Mértola. Nessa altura já ela estava acostumada aos outros, mas nunca tinham saído juntos.
    Chegados lá, soltei-os ali junto a um regato, com um mato rasteiro e umas clareiras cheias de veredas de coelhos. E começámos a andar devagar para a banda de norte, pela chapada suave. Era eu, o meu compadre Inácio, o Chico da Vargem, o Valentim do Montinho e o Pedro Chacota. O bicho saiu toda contente, a abanar o rabo e a empinar-se a todos, a pedir festas. Era uma canita muito meiguinha. O pior foi assim que saiu um coelhito ela correu para ele aos saltinhos, a abanar o rabinho. Não apanhou chumbo do tiro do Valentim porque ele foi muito rápido e quando disparou ela ainda estava afastada. O coelhito ficou, mas ela parte a fugir pela chapada acima a ganir, como se tivesse levado o tiro.
    O que eu calcorreei à procura dela! Chamei, chamei. Assobiei, assobiei. Quatro-olhos!, Quatro-Olhos!, foi o Carlos do Joaquim do Vale quem lhe pôs o nome, por ela ter umas pintinhas brancas a contrastar com o pelo acastanhado, mesmo por cima dos olhos.
    Pois nunca mais lhe pusemos a vista em cima. Eu nunca deixei um cão abandonado, mas que podia eu fazer? Aquilo havia por ali uns montes, a minha esperança era que ela se acolhesse a algum deles. Vim-me embora mal disposto.
    Nesse ano já não fomos caçar para aqueles lados. Mas na época a seguir fomos. Nunca me esquece, foi logo numa abertura. Nunca me esquece, calhou no dia da feira de Castro, à volta passámos por lá.
    Vocês querem crer que a cadela apareceu ao pé da gente? Era a mesma equipa e fomos começar no mesmo sítio. Pois a cadela foi fazer festas a todos, como a cumprimentar. A mim, olhou-me de longe com uns olhos que só queria que vocês vissem. Depois foi-se embora.
    Tenho vivido com isto atravessado. Os olhos do bicho não me saem da cabeça. às vezes acordo a meio da noite, em sobressalto.
    — Outra vez a canita, Manel? — pergunta às vezes a minha Albertina, quando calha estar acordada — Tu devias ir a um doutor dos nervos.
    Mas o que é que um doutor pode fazer para acabar com o remorso que eu sinto por ter deixado a canita lá abandonada? Nunca me esquece que ela veio mesmo de propósito atirar-me isso à cara.

    Quando o Manel me foi buscar lá a casa, eu tive pena de deixar a minha mãe. Mas depressa me habituei. Na casa do Manel estava presa num cercado, mas tinha companhia, éramos alguns quatro, e gostava deles. A minha mãe deixava-me sozinha e eu ficava triste e aborrecida, sem ter com quem brincar. Nesse tempo eu gostava era de brincar. Tinha até descoberto uns coelhinhos lá por cima da estrada e, quando a minha mãe ficava fora, ia às vezes para lá brincar com eles. Ao princípio eles tinham medo de mim, mas depois habituaram-se e já não fugiam. Eu gostava do Joaquim e da família toda e também da minha mãe e dos amigos coelhinhos, mas depressa me habituei aos novos amigos.
    Lá, estávamos sempre todos, não ficava dias inteiros sozinha.
    Quando o Manel me trouxe na carrinha, não gostei muito da viagem. Vinha um bocado tonta, mas depois de sair gostei dos amigos do Manel e dos cães deles. E assim que nos pusemos a andar senti cheiro a coelhos. Pensei que tínhamos ido para um sítio onde havia muitos coelhos para brincar. Fiquei toda contente.
    Quando ouvi aquele estrondo, que me ia estoirando os tímpanos, e vi o coelhinho torcer-se com dores, a minha primeira reacção foi fugir, fugir.
    Na minha fuga sem destino, avistei outros grupos de caçadores, comecei a pensar e entendi que era aquilo a caça. Afinal era daquilo que a minha mãe gostava. Era para aquilo que vivia. Era o que todos esperavam de mim. E eu não era capaz. Tive vergonha de mim mesma.
    Encontrei um monte onde me acolheram, e onde, felizmente, não eram caçadores, tal como o Joaquim. Esse monte até era perto do sítio de onde tinha fugido. Tinha andado muito sem destino, mas tinha andado à roda e vindo parar quase ao mesmo lugar.
   Tinha uma mágoa comigo, uma vergonha de não ter conseguido ser aquilo que de mim esperavam. Contra isso não podia fazer nada, mas sentia vergonha.
   Quando ouvi chegar os carros, reconheci logo, pelo barulho, a carrinha do Manel. Fui lá para os cumprimentar, e para saberem que estava bem. Vou ficar com esta mágoa, mas não tive coragem de o cumprimentar a ele. Tive vergonha, muita vergonha, de não conseguir ser como a minha mãe.

   

tia anica

Ainda é bem de noite e já está na hora
de deixar comidinha pra pai e pra filho
de levar o jerico pra andar na nora
pô-lo a tirar água prà rega do milho.

Apanhar os griséus, encher o avental
trazer um balde de água pràs galinhas
ainda outro balde pra derregar a cal
e sempre com as costas bem curvadinhas.

Lá vai sem parar, pela vereda estreita
leva a roupa suja a lavar à ribeira
sustendo à cabeça a alcofa de empreita.

De saia rodada, que tão bem lhe fica
subindo, descendo e subindo a ladeira
sempre à lufa-lufa vai a Tia Anica.