o escriba

     — Filho, quero que vás dizer ao Vicente que tenho uma coisa para lhe dizer antes que me vá desta para melhor. Ele que venha cá ainda hoje. Não sei se passo desta noite.
    O filho olha-o sério. Queria-lhe dizer que tivesse esperança, mas isso adiantava? Queria-lhe dizer tantas coisas, tantas coisas. Mas limita-se a dizer:
    — E se ele não quiser vir? Há quantos anos vocês nem uma palavra trocam?
    — Mesmo assim vai. E se ele não quiser vir, convence-o. Diz-lhe que é importante, muito importante. — os olhos do Casimiro transmitem tal determinação que o filho nem se atreve a perguntar o que é que ele tem de tão importante para dizer ao Vicente.   
 
    — Casimiro, mandei-te chamar para te fazer uma proposta.
    — Sim, senhor doutor. Então diga lá.
    O presidente da câmara olha-o bem nos olhos.
    — É muito simples. Sei muito bem da tua situação difícil depois do acidente. Também sei que eras um aluno brilhante na escola. A tua habilidade para a escrita pode vir a ser o teu ganha pão. Pensa no teu filho.
    — Continuo a não entender, senhor doutor.
    — Sabes decerto que faleceu o senhor Aniceto?
    — Sei, sim. Aquele senhor que tinha a secretária lá no corredor da câmara e escrevia requerimentos e servia de testemunha para as escrituras a troco de uma gorjeta.
    Algo na mente do Casimiro se pôs imediatamente em alerta. É que o Aniceto tinha fama de ser bufo da PIDE.
    O Casimiro trabalhou na fábrica da cortiça até ao dia em que a máquina lhe arrancou a mão acima do pulso. O tribunal sentenciou que o acidente se deveu a descuido do trabalhador. Foi despedido de mãos a abanar, salvo seja. Foi a mão direita que perdeu, o que no caso do Casimiro até é uma vantagem porque é canhoto.   
    — A minha proposta é que tu ocupes o lugar dele. Sempre que tiveres alguma dúvida podes contar comigo para te ensinar alguma coisa. Sei que tu te vais desenrascar bem. Olha que o Aniceto conseguia equilibrar bem a vida. — promete o presidente Morais.
    Tanta simpatia e interesse põem o Casimiro cada vez mais de pé atrás.
    A mulher morreu no parto do único filho que tem agora oito anos. Casimiro não é homem de desesperar, mas a situação não lhe deixa muita margem para esperanças. Conta durante algum tempo com a solidariedade dos camaradas de trabalho, e de outros camaradas inconfessáveis. Mas os tempos são difíceis para todos. E Casimiro tem o seu brio e dignidade aguçados, herança do pai. Atira-se à vida a fazer uns biscates de caiador. Aprende depressa a tirar partido do coto do braço incompleto. Mas o trabalho escasseia. Os mais pobres caiam eles próprios, uma boa parte dos mais ricos afastam-se dele pela fama de comunista.   
    — Senhor doutor. Vamos ser claros, e o que é que eu tenho que dar em troca?
    — Ó, homem de Deus, não tens que dar nada. Isso até me ofende! Basta que sejas um bom cidadão. Patriota, respeitador das instituições. Zeloso contra todos os inimigos do nosso Estado Novo.   
    — Senhor doutor. É verdade que a vida me tem sido difícil. E agradeço muito o seu interesse e ter-se lembrado de mim. A sério que agradeço. Mas se bem entendo o que me está a pedir, não posso aceitar. Não é sequer por mim, é pelo meu filho. Eu sou um homem simples, não me meto em nada. Mas o senhor doutor disse-me para pensar no meu filho. Agradeço-lhe muito, e é mesmo nele que estou pensando agora mesmo. Quero que ele nunca se envergonhe de mim, da mesma maneira que eu nunca me envergonharei do meu pai.
    Pareceu ao Casimiro que estas últimas palavras comoveram o presidente. Seria verdade que ele esteve na origem da prisão do seu pai, como muita gente dizia? Seria o peso da consciência a trabalhar? O Casimiro estava alerta.
    A última vez que o Casimiro viu o pai tinha quinze anos. Primeiro para o Aljube, depois para o Tarrafal, onde o seu corpo não resistiu.   
    — Casimiro, vamos esquecer esta última parte da conversa. — os lábios do presidente tremiam. — Quero que aceites o trabalho que te proponho, peço-te que o aceites. Não te imponho condições, não quero nada em troca. Conta comigo para alguma ajuda que precisares. Pensa no teu filho. E tenho a certeza que ele nunca se envergonhará de ti. — e estendeu-lhe a mão.
    — Sem condições?
    — Sim, sem condições. É a minha palavra de honra.
    Pareceu a Casimiro vislumbrar-lhe uma pequena lágrima no canto do olho. A grande dúvida aumentava. Seria a consciência?
    — Não posso aceitar.
    Para desconcerto do Casimiro o presidente foi à porta do gabinete, trancou-a e começou a chorar. Quando se conseguiu acalmar:
    — Não é o que tu pensas, Casimiro. Eu sei que tu podes pensar que fui eu que meti o teu pai na prisão. Muita gente pensa isso. Mas não fui. Nem podia ser, porque... porque eu devo um grande favor ao teu pai. É por isso que me interessei por ti. Tu acabas de me revelar que és digno do carácter dele. Estamos em campos opostos mas eu tenho uma grande admiração pelo carácter dele.
    Casimiro estava sem palavras.   
    — Eu vou-te contar. Quando éramos moços andávamos ambos atrás da mesma rapariga, aquela que veio a ser a tua mãe. Uma vez, depois dum baile, eu esperei-o à falsa fé mesmo à saída da ponte do Matias. Era uma noite de invernia, a ribeira ia cheia. Andámos à pancadaria a sério. A dada altura escorreguei e caí na ribeira. Sabes o que o teu pai fez? Atirou-se à água barrenta, lutou, lutou e conseguiu tirar-me com vida. Eu estava muito bêbado, e além disso nadava muito pouco.
 
    — Camaradas, eu até entendo as dificuldades do Casimiro. Mas daqui para a frente temos que ter muito cuidado com ele. Há homens que cedem, nunca sabemos se cedemos até passarmos por elas. Muito cuidado!
    Os camaradas da célula, uns com mais, outros com menos convicção, aceitaram a advertência do camarada Vicente, afinal era a segurança do partido que estava em causa.
 
    — Ó, pai, o que é um bufo?
    — Um bufo é um homem que denuncia os outros. Que diz à PIDE o que os outros fazem.
    — Um moço na escola disse que tu és bufo.
    — Não me digas quem é o moço, nem acredites nisso.
    — Amanhã dou-lhe uns sopapos.
    — Olha-me bem nos olhos e acredita que eu não sou bufo, nem nunca serei. Quando alguém disser isso não te zangues, não batas em ninguém. Basta que tenhas a certeza que o pai não é bufo. Quero que tenhas orgulho no teu pai, como eu tenho no meu.
 
    E foi assim que o Casimiro se tornou no escriba conhecido por todo o concelho. Ao fim de duas décadas raro seria o habitante do concelho, mesmo os mais letrados, que não teria alguma vez recorrido aos serviços do Casimiro. Alguns mesmo para testemunhas de casamento ou padrinhos de registo civil. Note-se que os serviços do estado estavam todos concentrados no mesmo edifício. Até era comum as confusões das pessoas que iam ao registo civil ou às finanças e pensavam que tinham ido à câmara.
 
    Quando a viúva do presidente faleceu, doze anos depois da morte deste, estava o Casimiro acamado com a pneumonia que o viria a derrubar para sempre. E foi nessa altura que pediu ao filho para chamar o Vicente.
    — Diz ao teu pai que passo lá a casa logo depois do trabalho.
    — Até logo, senhor Vicente, eu não sei o que ele lhe quer dizer, mas de certeza que é coisa importante.
    — Veremos. De qualquer maneira vai descansado, não sou homem de faltar à cabeceira de um moribundo por muito mal que tenha feito.
 
    Com a respiração entrecortada e fala difícil o Casimiro fala.
    — Vicente, antes de bater a bota quero-te dizer que nunca fui bufo como vocês pensaram. — e contou o que se tinha passado.
    — Casimiro, devias ter falado comigo e evitávamos todo este mal-entendido de uma vida, homem. O orgulho mata...
    — Não, Vicente! Eu prometi ao doutor Morais, a pedido dele, que nunca falaria nisto a ninguém até à morte de ambos, ele e a esposa. Não me perguntes porquê. Ele pediu, eu cumpri, ele também cumpriu a parte dele.

a turista

    Se eu contar a vocês aposto que todos vão entender porque estou danada. Estão ali há mais de quatro horas. Quatro horas! Sentados à mesa a beberricar e no paleio. Daqui a pouco são horas de jantar e eles ainda não se levantaram do almoço. Já não os posso ouvir.
    Eu sempre gostei de passear. Sei lá, gosto de ver paisagens novas, monumentos, jardins...
    Lembro-me como se fosse hoje quando íamos à serra de Monchique e nos parecia que estávamos num outro mundo. Tudo verde; fontes de água fresca por todo o lado; sombras frescas. Aqui em Santana da Charneca era tudo seco. Na maior parte dos anos quando se chegava a fins de Maio já não se via nada verde. Só as folhas das alfarrobeiras. Mesmo as oliveiras era um verde que nem parecia verde, mais para o cinzento. E os carrascos ficavam castanhos.
    Quando fui lá para cima, ali para os lados do Vale já se via muito verde, por causa da ribeira e muito mais ainda depois de fazerem a barragem do Gralho. Os canaviais, as laranjeiras, que nesse tempo já lá havia muitas, as sementeiras de tomateiras, de pepinos, de pimentos, de melancias e melões, de feijão. De milho havia muitas. Mas nada comparado com a frescura de Monchique.
    Nessa altura a gente ia em excursões, era a única maneira de se sair da nossa terra a conhecer o que de outra maneira nunca se conheceria. Uma camioneta da carreira cheia de gente. Levavam comida que dava para um regimento. O que eu mais gostava era dos bocados de lombo de porco frito e conservado na banha e dos pastéis de bacalhau.
    A Sagres, a Vila Real, a Monchique. À Fonte Santa de Quarteira também havia um homem que fazia todos os anos uma excursão, tinha um dia certo para esse banho, mas não me lembro qual era. Depois a fonte quase secou, dizem que foi quando fizeram a fábrica da cerveja, que o furo da fábrica cortou a veia de água. Não sei se é verdade, mas, se for verdade sempre quer dizer que aquela cerveja era feita com água santa. Também faziam excursões à praia; não eram bem excursões, a camioneta punha-nos lá de manhã e ia buscar-nos à tarde. Não ficava por nossa conta.
    Desses tempos de excursões quando era moça, das lembranças que mais tenho marcadas na memória por me serem estranhas, são os pinhais e os camaleões de Vila Real, mas sobretudo, aquelas figueiras rasteirinhas e as árvores inclinadas pela persistência do vento nas proximidades de Sagres.
    Tem piada que nessa altura quando íamos para os lados de Monchique parecia que estávamos no paraíso; mas, mais tarde, nos anos que vivi no Barreiro, aquilo de que sentia mais saudades eram aqueles cheiros da charneca seca, e da cantoria das cigarras. Quem havia de dizer?! Isto aqui hoje parece um jardim, desde que se começaram a fazer os furos, mas vocês querem crer que eu ainda hoje tenho saudades dos cheiros da charneca? Não é saudades da miséria desse tempo. Nada de confusões.
    Enquanto vivemos lá em cima nunca tínhamos tempo de passear, era aquela rotina sempre igual. Vocês acreditem que passava meses, anos, sem sair daquele vaivém de casa para o trabalho. Os fins de semana mal davam para as compras e as limpezas. As férias eram sempre uns dias cá, na casa da minha sogra que tinha mais condições que a dos meus pais. O meu marido trabalhava muito por fora, a fazer montagens de maquinaria um pouco por todo o país. Até chegou a ir fazer trabalhos a Marrocos. Mas eu era trabalho casa, casa trabalho.
    Depois viemos para baixo, abrimos o restaurante e entrámos numa rotina quase igual. Foram quinze anos com o restaurante aberto. Só fechávamos à quarta-feira. Estava farta, farta. Até que pus os pés à parede:
    — António, está na hora de passar isto ao moços. Ela é a única herdeira, isto é tudo para eles. Eles que tomem conta. Não digo que não andemos por aqui de vez em quando a dar a nossa ajuda. Mas sempre aqui presos não!
    Ele também não foi fora do jeito. Falámos com eles e aceitaram.
    É verdade que desde que lhe entregámos o restaurante é raro o dia que não damos aqui uma ajuda, mas já não é por obrigação. Já não é uma prisão.
    De vez em quando vou numa excursão. Tenho tanta pena que o meu António não goste de ir também. Há uma senhora na vila que nunca se esquece de nos vir convidar para ir.
    Já fui ao Norte. Já fui a Sevilha. Já fui à Serra Nevada. Já fui à Galiza. Já fui a muitas terras. Terras muito bonitas. Tenho uma colecção de “selfies” que dá para ficar a ver na televisão horas e horas. Gosto sempre de tirar uma “selfie” com as paisagens por trás, os monumentos. Tento ver se ele se entusiasma com aquelas belezas e vai também. Na última vez que lhe tentei mostrar as "selfies" com os monumentos de Córdova, passados uns dez minutos ressonava que nem um porco. Tenho tanta pena.
    A única vez que o convenci a ir foi ao Minho. Braga é tão bonita, tem tanta coisa para ver. Tantos monumentos, tantos jardins. Sabem o que ele fez. Meteu-se numa taberna ao lado do hotel e disse:
    — Vão lá vocês, que eu vou conversar por aqui com este pessoal.
    Fui tão triste! Quando voltámos estava ele numa roda a cantar a despique com uns minhotos.
    Sabem o que ele me disse à noite:
    — Isaura, com quantas pessoas é que vocês conversam nos locais que visitam? Quero lá saber dos monumentos e dos jardins, para mim são todos iguais. Eu quero é conversar com gente!
    E as pessoas não são todas iguais?!
    Vocês nunca viram na televisão aquele senhor que fala de viagens? Acho que ele já correu quase o mundo inteiro. Um senhor de barbas, já meio grisalho mas ainda muito apresentável. O nome dele é Luís Faísca. Vocês querem acreditar que apareceu aqui no restaurante hoje para almoçar?
    Reconheci-o assim que ele entrou. Muito simpático, uma pessoa simples. Pensei logo, vou aproveitar para meter conversa. Disse-lhe que era uma grande apreciadora do seu programa. Convidei-o para a nossa mesa. Eu sou ratona, pensei logo que uma pessoa como ele poderia ter influência no meu António.
    Ele disse-me o que anda por aqui a fazer, mas, como devem entender, não vou aqui divulgar.
    Agora estou muito desiludida. Estão de conversa há mais de quatro horas, como já disse, e não se cansam de dizer que se entendem às mil maravilhas e têm a mesma maneira de pensar.
    Não acham que é razão mais que suficiente para estar pior que marafada?



cuidado com a valeta

     Tinha logo de me calhar a mim! A mim, que nunca tive ambições desmedidas. Nunca fui como aquelas pessoas que vivem dependuradas da esperança de que lhes saia o euromilhões. De vez em quando jogo, mas sempre com um intuito na ideia; vocês podem não acreditar, mas se um dia me sair ajudo muita gente. Já pensei em matar uma ou duas vacas, mais uns quantos porcos, leitões, perus, comprar muito peixe fresco, para quem preferir, e fazer um churrasco gigantesco na minha aldeia. Convido toda a gente, os que gostam de mim e os que não gostam, e no fim dou um envelope bem recheado a cada um, todos por igual, assim sem avisar. Dizem que quem dá de mão beijada não ajuda, mas quem sou eu para fazer o julgamento antecipado de como irá cada um gastar o dinheiro?
    Confesso que já algumas vezes me passou pela cabeça comprar antes uma arma a cada um dos desempregados todos que puder e eles que façam o que quiserem com ela. Mas isso é quando estou zangado, passa-me depressa. Não acredito na força do ódio. O ódio é breve, o amor é eterno. Conheci alguns que se tornaram revolucionários por ódio, já não resta nenhum. Por outro lado, os que conheço e se tornaram revolucionários por amor restam todos; mesmo que alguns de vez em quando pareça que se vão abaixo, acabam sempre por ultrapassar a fase baixa. Algumas vezes digo que tenho medo de que me saia o euromilhões, porque não vou saber como gerir o dinheiro; e pior ainda, porque daí para a frente já não irei arranjar amigos, todos os que se aproximem pode ser por interesse. A minha família, os meus amigos, os camaradas da oficina são unânimes:
    — Tu és mas é parvo, Alberto. Ele que me saia a mim a ver se eu não o sei gastar. Ai não, que não sei! — é o que dizem.
    Acho que não deixava o trabalho. A minha vida sempre foi trabalhar, acho que não saberia como passar o tempo. Há dias em que dou o trabalho ao diabo e sou capaz de jurar que se um dia me saísse o prémio nunca mais punha os pés no trabalho. Mas no dia seguinte já me esqueci do que pensei.

    A minha Idalina tinha ido passar uns dias à da mãe, que estava adoentada, coisas da idade avançada, já são setenta e dois. Quando vi a chave na televisão conferi três vezes. Não queria acreditar. Ainda fui confirmar os números à internet. Não fiquei aos gritos nem aos saltos como se poderia esperar. Sentia-me a pairar nas nuvens. Confesso que tive medo de que me desse alguma coisinha ruim com a emoção contida e eu ali sozinho. Eu pareço muito expansivo, mas quando a emoção é forte fecha-me. Também sou assim quando morre alguém querido, não consigo extravasar. Não costumo beber sozinho, mas fui abrir uma garrafa de uísque que tenho em casa há mais de vinte anos. Não foi tanto para festejar, foi mais para acalmar, tenho ouvido dizer que é muito bom para o coração. É verdade que caiu cá dentro e levantou-se um calor reconfortante como nunca tinha sentido.
    Tive o sangue frio suficiente para não correr a telefonar a toda a gente. Nem à Idalina, porque tive medo de que ela não se contivesse e começasse a espalhar a notícia, pelos pais, pelos filhos, pelas amigas. Tive medo até de que se a notícia se espalhasse alguém me pudesse vir assaltar. Tinha medo até de falar ao telefone no assunto, quem sabe se os telefones não têm escutas? Tinha de esperar até segunda-feira e rumar a Lisboa. Acho que há um número de telefone para nos aconselhar nestes casos, mas na altura nem me lembrei de tal possibilidade. Teria de arranjar uma desculpa para ir a Lisboa sem ninguém desconfiar.
    Não preguei olho toda a noite. A cogitar em como iria proteger o dinheiro, congeminei que o melhor seria distribuí-lo por muitas contas em vários bancos diferentes, com isto de nunca se saber qual vai falir a seguir. Valeria a pena trocar por outras moedas? Mas como? Teria de me informar sem dar nas vistas. Tinha ouvido dizer que a maneira mais rentável de investir nestes tempos era comprar dívida pública, porque era a que dava melhores juros e com mais garantias. Até há quem diga que é por isso que há dívida pública, porque é o negócio do momento. Teria de me informar como isso se faz. Às seis e trinta e sete, já a aurora tentava romper, decidi que não me podia fiar em ninguém que viesse com conselhos de como investir.
    Convenci a minha mulher de que tinha que ir a Lisboa fazer um acção de formação da oficina. Convenci o patrão de que tinha que ir a Lisboa com a minha sogra a uma consulta. Tinha consciência de que podia ser descoberto, mas não era muito provável, e não me ocorreram desculpas melhores. A cabeça já latejava de ter que tomar tantas decisões em tão pouco tempo.
    Decidi ir de comboio. Não estava habituado a conduzir em Lisboa, e achei que com as noites quase sem dormir era mais seguro. Procurei na internet a morada da Santa Casa e algum sítio ali perto que daria como endereço ao taxista para este não desconfiar quando lhe dissesse que queria ir para a Santa Casa. Todo o cuidado é pouco para defender o que é nosso.
    Uma vez lá na Santa Casa tudo se revelou mais fácil do que tinha cismado. Havia lá uma equipa de algumas cinco pessoas muito simpáticas e que se apresentaram como estando exclusivamente ao meu serviço para o que fosse necessário. Não entendi muito bem o que eram, acho que uma era psicóloga e um era economista. Todos me inspiraram confiança, reforçada por ter encontrado lá a trabalhar um rapaz que conhecia por ser filho de um casal que tem uma casa ali metida à serra a caminho do Mioto e vêm muitas vezes beber o café e conversar com o pessoal da terra à venda da minha cunhada Lurdes, quando vêm de férias no verão ou mesmo por outras alturas. É gente muito simpática e popular; não sabia que o filho trabalhava na Santa Casa, foi uma surpresa agradável. Tenho alguma convivência com eles e conheço bem o caminho e a casa porque fui algumas vezes por causa dos carros.
    Resolvi que iria distribuir o dinheiro entre as quatro famílias, nós e os três filhos. Que cada um resolva como tratar dele. Nunca mais pensei no churrasco nem nos envelopes, afinal dividido pela família toda não era assim tanto dinheiro: só vinte e sete milhões.
    Vinha já a atravessar a serra antes de começar a descer para o Mioto quando vi o carro parado e uma senhora a labutar às escuras com a roda e o macaco. Esqueci-me de dizer que tinha comprado um todo‑o‑terreno mesmo antes de a família saber da sorte que nos tinha tocado. Sempre desejei ter um todo‑o‑terreno, e entendi que merecia este prémio. Estava uma noite de chuva cerrada na serra e nem hesitei em parar para ajudar.
    Só me lembro de ter acordado com o todo‑o‑terreno a circular acelerado pelas curvas da serra. Eu ia no banco de trás, com os olhos vendados e as mãos amarradas uma à outra. Tentei mexer-me e fui agarrado por braços fortes de ambos os lados. Todos em silêncio. Andámos muito tempo a circular pela serra, mais de uma hora, muito mais. Pela estrada alcatroada e por caminhos de terra.
    Eu conheço a serra como as minhas mãos e a dada altura consegui localizar por onde íamos e notar que passámos várias vezes pelos mesmos sítios. Não disse nada, achei mais prudente. Quando íamos no caminho direito à casa do tal casal de que falei lá atrás fez-se-me luz. O motivo do rapto revelou-se-me claro. Como tinha podido ser tão ingénuo? Só me apetecia esbofetear-me. Mantive-me calado, achei mais seguro. Agora já sabia o motivo. O que iriam fazer? Iriam pedir resgate? Mas a quem, se a minha família nem ainda sabia de nada?
    Foi quando percebi que o carro ia demasiado depressa para passar a valeta que eu sabia existir a menos de vinte metros. O cuidado com a minha pélvis, que fracturei há uns anos num acidente de mota, soou mais alto que o medo, e gritei em desespero:
    — Cuidado com a valeta!
    — E agora o que fazemos? —  perguntou o do lugar do pendura com a voz a tremer, momentos depois de saltarmos com violência na valeta.
    Começaram a discutir o que fazer comigo como se eu ali não estivesse. Agora que eu sabia onde estava, porque aquele caminho não ia para mais parte nenhuma; e que eles sabiam que eu sabia; e que eles já falavam abertamente sem disfarçar as vozes: presumi que tinha fortes razões para ter medo, muito medo.
    Só vi o clarão, mesmo através da venda, seguido pelo enorme estrondo.
    — Quando é que vão acabar com isto? Malditos festejos bárbaros! — gritei eu todo a tremer quando percebi que o estrondo do morteiro a inaugurar a festa dos Santos me tinha acordado.
    Devo ter gritado bem alto porque a minha Idalina, que já estava na cozinha a fritar as fatias de ovos na enxúndia de galinha, e nem reparou no morteiro, veio ao quarto a correr ver o que se passava.