ribeira de arade

Ribeira de Arade, rolavas a gosto
lá da serra vinhas correndo prò mar
seguias o curso com rumo ao sol-posto
não havia nada para te parar

Às vezes fazias umas fitas feias
sempre que a chuva insistia em cair
não havia nada contra as tuas cheias
e as gentes de Silves tu vinhas ferir

Mas os tempos mudam e a vida também
muitas vezes prò mal, mas noutras prò bem
e lá conseguiram tirar-te embalagem

Com essa grande obra que é da minha idade
às gentes de Silves foi feita a vontade
e ficaste mais mansa, falo da barragem.




soneto totó

Tarará tarará tarará tará
Tereré tereré tereré teré
Tarará tarará tarará tatá
Tereré tereré tereré teté

Tiriri tiriri tiriri tiri
Tururu tururu tururu turu
Tiriri tiriri tiriri titi
Tururu tururu tururu tutu

Tereré tereré tereré teré
Tereré tereré tereré teté
Tororó tororó tororó toró

Tiriri tiriri tiriri tiri
Tiriri tiriri tiriri titi
Tororó tororó tororó Totó!


fragmentos

     Este homem que está aí em casa mexe em tudo como se a casa fosse dele. Fui procurar ao vizinho quem é o homem; diz-me que é o Rafael, sei lá quem é o Rafael. Mas é de confiança? Que sim, que é de confiança. Este vizinho também nunca sei o nome dele. Rogério, acho que é Rogério. Tem piada, tenho um sobrinho que também é Rogério. Há muitos anos que não o vejo, que será feito dele?
    Este Rafael mexe em tudo, mas se o vizinho Rogério diz que é pessoa de confiança... Agora está de volta do fogão. Cheira bem. Acho que ele está fazendo uma caldeirada de peixe, pelo cheiro. Há muito tempo que não vou à minha casa. A minha mãe também faz umas caldeiradas de peixe que é de lamber os dedos.

    Ó vizinho! Ó senhor Rogério! Venha depressa chamar os bombeiros que a nossa seara está ardendo. Não vê além o fumo? O fumo é da chaminé da fábrica, tia.

    Agora temos alhos que nunca mais se conseguem vender em toda a nossa vida, João. O que é que tu queres, mulher? Pensei que seria uma boa sementeira. O pior é que a vizinhança já se queixa do cheiro. Ó, mãe, vá lá que cheguei a horas. Não mexa nos botões da luz. Venha ali para a rua até a casa arejar. Tem que ter mais cuidado com o gás. Mas eu não mexi no gás. Não vês que são os alhos que o teu pai não consegue vender. Ó mãe, isso já foi há quarenta anos.

    Filha, estás vendo aquela casa além ao lado daquela mais alta? Além mora a tia Maria do Rosário, irmã da tua avó.
    Ó mãe, estamos no Funchal, na ilha da Madeira. A tia Maria do Rosário já morreu há muitos anos.
    Não sejas teimosa, Conceição! Tu ainda és pior que o teu irmão Rafael. Não sei a quem vocês saíram assim teimosos. Então eu não sei quem mora ali? E atrás daquela casa mais alta é a venda do Manuel António, e tem um salão de baile ao lado. Tantas vezes que fui além ao baile. Vínhamos a pé aí por essas serras, pelas veredas, que caminhos não havia.  Havia ali um moço, o Raul, que gostava muito de mim. Eu gostava de balhar com ele, ele balhava bem. Mas nessa altura eu já andava com o sentido no teu pai. Ele não se descosia, mas eu gostava dele e achava que ele também gostava de mim.
    Ó mãe, mas estamos no Funchal, na ilha da Madeira. Aquilo que você está a falar é no Funcho, lá no continente, lá no meio da serra, nunca eu lá fui.
    Não sejas teimosa.

    Dói-me as goelas, mãe. Dá-me pão com manteiga. Quero pão com manteiga que me dói as goelas.  Quero pão com manteiga. Dói-me as goelas. Mãe! A minha mãe não acredita, pensa que é manha minha. E é. Eu gosto muito de pão com manteiga de porco. Deixa estar que eu já lhe dou o arroz. Quando ela for lá para fora despenar a galinha eu vou ali à panela e tiro um bocado de manteiga, aproveito e meto a faca e tiro umas falripas de lombo. Que bom! Ela tem o lombo guardado para o verão, para quando vamos nas excursões, mas eu vou tirando umas falripas de vez em quando. Quando ela descobre zanga-se muito, mas não me bate. Aqui há dias escutei ela a contar à vizinha Esperança e as duas a rirem. Parece que o Bento da vizinha Esperança faz o mesmo. Mas eu não sabia.

    Vocês não vão para cima da ameixeira. Moços do diabo. Rogério, tu que és mais velhinho, vê lá se não deixas o teu primo Rafael ir para cima da ameixeira, pode ele cair

    Ó mãe, o que é que tu fizeste à impressora? Partiste-me isto tudo, uma impressora nova. Tu estás maluca, mãe? Impressora?! A minha Conceição às vezes tem umas saídas, estive desmanchando o coelho, ela agora veio e diz que lhe dei cabo da impressora. Já não entendo este mundo, agora diz-me que um coelho é uma impressora e diz que eu estou maluca. Maluca está ela!

    Agora que ela não está em casa vou lá a baixo matar saudades daquele monte. A tantos bailes que eu lá fui e nunca me perdi, também não me ia perder agora. Eu acho que ela guarda uma chave aqui nesta gaveta, cá está ela. Não sei porque é que ela me deixa aqui fechada. Acho que deve ser por aqui por esta rua. Não é ainda aqui, deixa-me lá ir por ali. Acho que já andei demais. Isto está muito diferente, com o que eu já andei já devia ver a venda, mesmo que aquilo esteja diferente não me ia enganar, eu conhecia aquilo tão bem. Deixa lá ver o que diz aqui neste papel, isto parece uma fotografia da minha avó. É muito parecida mesmo, deixa lá ver o que diz, ainda bem que trouxe os óculos: "ESTA SENHORA SAIU DE CASA DA FILHA HÁ QUATRO DIAS - Ela sofre de demência e não conhece a Madeira. Quem a encontrar, por favor contacte com Conceição Barrosa, telemóvel 91n nnn nnn, ou com a PSP." Coitada da senhora, mas olhem que é mesmo muito parecida com a minha avó.

    Ó João, há tanto tempo que o nosso Rafael não escreve, nem um aerograma, nem nada. Custa tanto não saber nada do nosso filho. Sim, já sei que as más notícias chegam depressa, mas custa tanto, João. Custa tanto.