o bufo

Tinhas tudo pra trás e um ror por diante
Na preguiça ficou todo o viço e a fé
E assim se foi uma carreira brilhante
N'água turva e no lodo já perdeste o pé.

Dos outros esperas apreço e respeito
Aos outros não dás mais do que traição
Queres o brilho a vir de qualquer jeito
Inda que para tê-lo caias na delação.

O teu fulgor é baço, nada que se veja
E o rancor afogas num mar de cerveja
Já és um farrapo e já nem tens tomates.

Nunca dos nuncas mais que bufo serás
Já não é possível, não se volta atrás
Melhor que te atires ao mar e te... cates.


o jipe

    — Ó Manel, aquele jipe não tem vindo sempre atrás da gente da ponte de S. Cristóvão para cá?
    — Sei lá! Venho aqui com atenção à condução, não venho reparando nessas coisas.
    A minha mulher tem razão. Tem vindo sempre atrás da gente e não é da ponte para cá, quando saímos da vila já ele lá vinha. Lá atrás ainda pensei que era o jipe da guarda, mas quando passámos ali da curva do Caçapo, e o vi de lado, reparei que tem uma capota de lona, muito velha, já muito ruça do sol. O jipe da guarda não tem aquela capota.

    Eu também já tinha reparado no jipe. Notei que o meu genro de vez em quando olha para o espelho. Da primeira vez que olhei para trás não vi nada de estranho. Mas cá mais à frente olhei outra vez e lá vem o mesmo jipe. E agora diz ele que vem com atenção à condução e não repara nessas coisas! Devem ser alguns estrangeiros, agora ali para a serra há muitos estrangeiros com aqueles jipes muito velhos. Alguns até trazem camiões que parecem da tropa. Não sei onde eles vão buscar aquilo.

    Ele não tira os olhos do retrovisor. E depois responde-me que vem com atenção à condução. Com tanta gandulagem que anda por aí, uma pessoa às vezes até tem medo. Diz a Celestina da Alcaria que o genro aqui há dias foi para os lados do serro das Cabras por modos das abelhas e andavam uns estrangeiros a lavrar com um burro, e todos d'em pelão. Eram eles, alguns dois, era ela, e mais dois gaiatos. Tudo d'em pelão. Diz ele que se não visse não acreditava. Como é que uma pessoa pode andar por aí à vontade!

    — Ó Manel, a Clementina tem razão. O jipe tem vindo sempre atrás da gente. Tu voltas à esquerda, ele volta à esquerda, tu voltas à direita, ele volta à direita.
    — E o que é que você quer que eu faça? As pessoas vão lá na vida deles. Devem ser alguns estrangeiros que vão aí para a serra. Agora há por aí tantos.
    — Isso é verdade. Têm comprado por aí casas velhas e terras. E pagam bem. Ainda vocês haviam de ver se eles querem comprar a casa lá do Corgo Fundo.
    — A casa do Corgo Fundo?! Tenha juízo, mãe. Aquilo tem lá alguma casa? Um monte de pedras.
    É sempre assim, aquilo que eu digo nunca conta para nada. A minha Clementina não era assim antes de casar com este homem. Eu sempre disse que não sei onde é que ela estava com a cabeça. Não sei o que viu nele. Só porque era dos comandos lá em Angola, nunca entendi o que isso queria dizer. Comandos! Maldito o dia em que o carteiro lhe trouxe aquele aerograma para ser madrinha de guerra.

    Diabo, agora já não podem ir para a serra. Este caminho já só vai para a nossa casa e para a Alcaria, mas se fossem para a Alcaria tinham voltado lá atrás, não vinham para aqui fazer nada. Não estou gostando nada disto. Dá-me vontade é fintá-los e voltar ali à frente para a Alcaria. Mas com que cara fico eu! Até a minha sogra se vai rir e chamar-me cagarola.
    — Manel, já viste que eles ainda vêm atrás da gente? Não estou gostando nada disto. Lembra-me logo daqueles que o ano passado foram assaltar aquela gente lá do monte da Silveira. Deram uma carga de porrada no velhote, abusaram da velhota. Levaram algum dinheirinho que os pobres tinham, poupanças duma vida.
    — Ó mãe! Não diga essas coisas. Eles eram velhotes e foram apanhados sem estar à espera.
    — E a gente? Se eles quiserem fazer mal à gente o que é que a gente faz? Ai, se o meu João fosse vivo!
    — Não me diga que está com medo que eles abusem de si. Era preciso ter muito mau gosto!
    — Ó Manel! Tu não tens vergonha de falar assim com a minha mãe?
    Eu não devia ter dito aquilo, mas ela fez-me afinar, ai, se o meu João fosse vivo, como se eu não fosse homem para defender a minha família.
    — Manuel! Pois fica tu sabendo que também há bandidagem que abusam de homens. Se tu não sabes, fica sabendo. Olha, aquele bandido que casou com a filha do Nicolau do Mioto. Abusava da filha, foi preso, olha o que os outros presos lhe fizeram. Esteve no hospital mais de três meses.
    Aqui é que ela me fez mesmo passar dos carretos.
    — Manel, também não estou gostando nada disto. Não é só a minha mãe. Devias era voltar já aqui para a Alcaria...
    Elas pensam que eu não sou homem para defender a minha família? Já sei o que vou fazer: vou daqui, dou a volta à casa, passo no eirado lá atrás e vou parar o carro mesmo ao pé do cão. Quero ver se algum tem coragem de se aproximar. Tão certo como eu me chamar Manuel José. Aquilo será verdade, aquilo do genro do Nicolau? Nunca tinha ouvido dizer tal coisa, mas eu não sou de cá.
    — Tu estás ouvindo a tua mulher? Lá que sejas malcriado com a tua sogra, não quer dizer que não respeites a tua mulher, alma do diabo!
    Nem lhe respondo. Ela já vai ver.
    E eles lá vêm. Agora já bem perto da 4L. São dois, um deles, o que conduz, de barba preta e comprida. Óculos escuros. Parece um latagão daqueles dos filmes da televisão. O outro, um pouco mais franzino, mas mesmo assim parece um bocado dum homem.
    — Manel!!! E agora?
    — Manel! Nunca te vou perdoar!
    — Calem-se, mulheres do diabo!
    Elas já vêem quem é homem aqui. Quero ver se eles têm coragem de se aproximar do cão.
    — Manel! Mas o que é que tu estás fazendo? Passando com o carro por cima dos meus figuinhos, que tanto trabalho me deram a apanhar para secar prò inverno!
    — Não vê que é para parar ao pé do cão, mulher do diabo?
    — Bom dia! — é o maior, o de barba e óculos escuros. — Sabe-me dizer onde é a partilha das suas casas aqui com estas do seu vizinho Albino? Nós somos do cadastro e viemos medir as casas dele.
    
    Cagarola! Cagarola e malcriado! Não sei onde é que a minha Clementina estava com a cabeça, desta vez é que nunca mais lhe falo.
    — Olhe lá, senhor das barbas. Quando acabar o seu trabalho não me pode dar uma boleia para me ir embora desta casa? É só dez minutos para arrumar os meus poucos trastes...