a passadeira

    Sim! Eu sei que a senhora não me fez favor nenhum por parar na passadeira para me dar passagem, é a sua obrigação. Eu também tirei carta de condução; foi há muitos anos e nunca mais peguei num volante, mas aprendi isso tudo. Andava sempre de carro com o meu marido, que Deus o tenha, e ia sempre observando como ele fazia. Ele às vezes dizia, porque não pegas no carro e o levas um bocadinho; mas eu fui-me pondo a pouco, pondo a pouco e já nem me dava jeito nenhum, nem sei se ainda saberia arrancar nem meter as mudanças. Olhe, depois que enviuvei vendi o carro. Um carro bom, a gasóleo, tinha vinte e sete anos, mas muito bem estimado. O meu genro diz que o vendi muito barato, mas para que queria eu o carro?
    Eu gosto sempre de agradecer quando vejo que as pessoas são simpáticas, acho que é uma maneira de ficarmos todos bem dispostos. Mas com o que aconteceu esta manhã eu queria agradecer não era por isso, queria agradecer é pela sua paciência e o seu tempo perdido. Que o nosso tempo é precioso, a senhora também deve ter os seus afazeres como toda a gente; eu gosto muito de respeitar o tempo dos outros. Agora as pessoas andam todas impacientes, todas com os nervos à flor da pele. Quando encontro uma pessoa com paciência apetece-me agradecer-lhe por me ter dado alguma esperança na humanidade. A senhora não viu aquele que parou atrás de si e levou o tempo todo a buzinar e a praguejar? Que malcriado! E o que ele fez depois, energúmeno! Há pessoas que não têm civilização nenhuma. E não viu também aquela rapariga que já depois de a senhora ter parado ainda passou pela faixa de cá em alta velocidade fingido que não via que eu queria passar. Agora parece-me que as raparigas ainda são piores que os rapazes a conduzir. Andam com muita velocidade. Não respeitam as prioridades. Não respeitam os peões. Parece que andam drogadas.
    Depois vi vir aquele do carro vermelho de janelas abertas e o som no máximo, bum, bum bum bum, bum bum, bum, bum bum bum, bum bum, e tive medo de me meter à passadeira. Ele vinha devagar, é verdade, mas aquilo são pessoas que vêm da noite, ainda vêm com o barulho na cabeça, quem me garantia que ele me via? Ainda por cima ao lusco-fusco; o meu marido, que Deus o tenha, dizia sempre que era a hora que tinha mais medo de conduzir. Enquanto ele passou e não passou devem ter aberto o semáforo lá em baixo, porque vieram tantos carros de seguida do outro lado. E a senhora viu que nenhum se dignou parar? Eles metem o nariz atrás uns dos outros e se um passa os outros têm que passar todos. É aqui que eu perco a esperança no ser humano.
    Eu sei que para quem vem daquele lado a passadeira está muito escondida e é nova aqui. Muita gente ainda nem percebeu que está aqui uma passadeira. Mas, caramba, os condutores não têm que ir com atenção? Não sei porque enquanto estes nem sei o nome que lhes chamar não se dignavam parar a senhora não aproveitou para avançar, porque estava lá tão longe e nem me ia parecer mal que a senhora passasse. Nota-se que a senhora é uma pessoa educada. Deve ser muito boa pessoa. Aquele malcriado do carro atrás do seu é que ainda não se calou nem um minuto.
    Bem, parece que é agora, deve ter voltado a acender o sinal vermelho e vou aproveitar. Vem só um e longe, vou aproveitar. Parece que vem muito depressa. Eu tenho mais medo porque com a minha roupa escura eles têm mais dificuldade em ver-me. Já o meu marido, que Deus o tenha, dizia sempre que as pessoas de roupa escura na estrada não se vêem. Bem, este viu-me, vou atravessar. Mas espera lá, Quitéria, que vem outro e parece que vem louco, não atravesso enquanto os não vir os dois parados.
    A senhora sabe que já vi por três vezes um carro parar na passadeira e depois vir de lá outro e bater-lhe, empurrá-lo para cima da passadeira. Por sorte, até hoje ainda não houve feridos. A última que vi foi uma senhora que mal teve tempo de dar um salto para trás, e porque era uma senhora nova, ainda conseguia saltar. Foi ali naquela passadeira ao pé do Restaurante “Aconchego”, não sei se a senhora conhece. Por sinal um restaurante onde se come muito bem, são umas pessoas que estiveram no Luxemburgo. Já passaram, vem aqui um devagarinho, que já me viu. Cuidado! Mas o que é que o homem vai fazer?! Então aquele malcriado que ainda não se tinha calado não teve a grandessíssima pouca-vergonha de arrancar em alta velocidade mesmo fora de mão, fez o outro senhor que vinha da minha esquerda se desviar e quase me atropelava, coitado sem ter culpa nenhuma.
    Estou toda a tremer. Olhe, minha senhora, já não atravesso, vou voltar para casa. Amanhã logo vou à farmácia, ainda tenho comprimidos para dois dias. Agradeço à senhora do fundo do coração.