a regadeira

     Quando andamos brincando na eira e a aragem vem dos lados da vila ouve-se bem os sons da estrada ao longe: os carros, as camionetas, as motas, tudo. Vamos correndo e ficamos à espera à roda da estrada. Um aposta que é um Peugeot 404, o outro, que é um Opel Kadett. Uma boa parte das vezes até apostamos quem é; se for motas ou camionetas, é quase sempre. Quando se ouve o taca-taca, taca-taca cavernoso do comboio lá bem ao longe a minha avó diz que vai chover, e nunca se engana.
    Ainda a ambulância não tinha saído da vila e já o Jaime ouvia a sereia.
    — Carlos, estás ouvindo?
    À medida que se aproxima, os uivos da sereia soam cada vez mais fortes. Ficámos estacados, num silêncio solene, as penugens dos braços eriçadas. Quando vimos que, a seguir à ponte de São Cristóvão, voltou para o lado do Vale, corremos a avisar a minha avó.

    Eu estava sentada no alpendre, assim naquele meio a dormir meio acordada. Fazendo empreita para uma alcofa, com a palma caindo das mãos, sonhava com um homem que tinha deixado rebolar o carro de besta. Nunca fiquei a saber quem era o homem. Sei que era ali a seguir ao Porto da Rocha, da banda de lá da ribeira, e havia um ror de gente e uma grande algazarra. Depois chegou a ambulância com a sereia uivando, uivando, uivando. Foi aí que os garotos me acordaram:
    — Avó! Avó! A ambulância! A ambulância!
    Acordei assarapantada:
    — Já tiraram o homem?
    — Qual homem, avó?
    — Não ligues, Carlinhos. A avó estava sonhando.
    — Já vem ali para cá da casa do Ratinho. Já passou a ponte do canal.
    Quem será o coitado ou a coitada?
    — Se não soubesse que o teu pai e a tua mãe foram apanhar figos para a Chã do Bicoito não ficava descansada.

    — Joaquim, vamos embora. Não fico sossegada com os gaiatos brincando à roda da estrada. Parece que o barulho da sereia vem mesmo do lado da nossa casa.
    O Joaquim do Vale, de semblante denso, vai albardar o burro, que está preso à sombra da alfarrobeira.

    — Eu não me chame Ermelinda ou aquilo é outra vez aquela histérica da Lurdes Carola. O barulho da sereia soa mesmo para os lados da casa dela. A mulher é maluca.
    — Tem-me tento nessa língua!
    — Sim! Agora sou eu que não tenho tento na língua. Vizinha Carminda, mecê já a viu alguma vez com os ataques? Pois eu já vi. É uma vergonha. Atira-se a tudo o que vista calças.
    — Coitado quem é desgraçado, Ermelinda! A gente não pode cuspir para o ar. Ninguém sabe o dia de amanhã.
    — Diga-me dessas, diga.
    Hoje têm o lavadoiro por conta das duas.

    — Cá para mim aquilo é o Sebastião, que bateu outra vez na mulher. Nunca mais toma juízo, um mariola daqueles. Um bom artista. Lembro-me bem de ouvir o mestre Caiado, no tempo da barragem, dizer que carpinteiros como ele havia poucos. Entregou-se à bebida. Ela é uma santa, sempre trabalhando com este e com aquele; na alfarroba, no figo, na amêndoa, na azeitona, na ceifa, na monda.
    — E ainda foi algumas vezes à monda do arroz para Alcácer, Manel. Naquele ano em que eu fui lá foi ela também, no rancho do António Calhau do Mioto.
    — E eu não sei, mulher? É um estroina. Ela é que alimenta os três filhos e a ele. E mesmo assim ainda as encoira de vez em quando. Algumas mulheres se não for assim não há quem as dobre, mas esta coitada?

    Eu estava lá para trás a despenar uma galinha, senhor doutor juiz, quando oiço bater ao postigo; quando eu vou lá para trás fecho sempre a porta da venda, porque nunca se sabe quem anda por aí, filhos de muita mãe, e uma pessoa não sabe. Pela maneira de bater vi logo que era alguém com aflição; vim a correr, era a Matilde da Alcaria, a mulher vinha branca como a cal dessa parede, juro que vinha. Era com a aflição e por causa de ter vindo a fugir; até deitava os bofes pela boca, tive que lhe dar um púcaro de água para ela se acalmar e conseguir falar.
    Que era para eu chamar a ambulância.
    — Cuido que o Manuel da Horta deu cabo da vida dele. Cuido que o homem está morto. — lá ela conseguiu dizer.
    — Qual homem?
    — O João Ratinho.
    Não esperei mais e fui ao telefone chamar a ambulância. Depois é que ela lá se foi acalmando e foi contando o que tinha acontecido.

    Se eu conheço o Manuel da Horta, senhor doutor juiz? Somos moços das mesmas sortes. Aquilo é pão sem joio. Amigo do amigo. Um paz-de-alma. Estivemos na tropa juntos em Lagos. Nunca lhe conheci um inimigo. Eu era mais vivaço. Mais de uma vez ele fez os meus serviços. Está aí o Joaquim do Vale, que também lá esteve mais a gente e não me deixa mentir. Mais de uma vez eu disse:
    — Manuel, preciso de ir à terra. — não era preciso dizer mais nada. Eu nessa altura já era casado e já tinha a gaiata e ele era solteiro e sem compromisso. Era logo:
    — Ó Aldemiro, então isso tem conversa?
    Para o senhor doutor juiz ver o que ali está. Esse Ratinho conheço-o mal. Esse diabo não era daí, veio para aí no tempo da barragem; mas uma coisa é certa, pode perguntar a toda a gente, que não encontra um que goste dele.
    — Limite-se a testemunha a falar sobre a pessoa do réu.

    O meu Manuel é um paz-de-alma, toda a gente sabe. Ele é assim e eles abusam. O pior é este Ratinho.
    Não vale a pena o meu Manuel fazer queixa ao cantoneiro, que esse, dêem-lhe copos. O homem vai regar e não há um dia em que não se irrite. Regamos de três regadeiras, pois em todas ficamos na ponta. Aqui deste lado da ribeira é um tudo-nada melhor, porque o cantoneiro é outro; este anda mais em cima do serviço, mas eles também o espreitam e ele não os consegue apanhar, assim que ele vem lá longe já eles abrem a água como se nada fosse com eles.
    Naquele dia de manhã eu notei que o meu Manuel saiu diferente, ele não disse nada, mas eu acho que ia diferente. Se calhar sou eu agora imaginando coisas, mas ninguém me tira isso da ideia. O certo é que ele encaminhou a água para um sítio onde não fizesse mal e assim que ela faltou foi à procura do ladrão. E o resto foi o que se sabe, desgraçadamente.

    Dizem que o meu João não era boa peça, tomara a muitos serem homens como ele. Com ele não brincavam, não é como alguns que não dão conta do recado. Seria por ele ser de fora? Se calhar era, nunca o aceitaram cá na terra. Eu tive muitos pretendentes em moça, mas gostei daquele, que me importava a mim que fosse de fora.
    Dizem que ele roubava a água ao Manuel da Horta e aos outros que ficam à parte de baixo; falta de conversa, meia dúzia de alhos, meia dúzia de cebolas, dois regos de feijão, outros dois de milho; que mal lhes fazia a eles um bocadinho regando com menos água? As pessoas só pensam neles.
    Mas ele agora vai pagar pelo que fez, cão! O meu advogado já disse que vai pedir a pena máxima. Ele premeditou, não ouviram o que ela disse? Que ele saiu de casa já com ela fisgada? Coitada, é tão inocente que ainda vem dizer isso cá para fora. Agora vai pagar bem caro!

    Ora o que tinha acontecido. O que tinha acontecido é que esse Ratinho, como toda a gente sabe, nunca pede água ao cantoneiro.  Cuida que a água que é dele; apetece-lhe a regar um feijão, vai ali ao poço, mete metade da adufa ao fundo, corta metade da água. E o Manuel da Horta, que fica lá na ponta da regadeira e anda lá no meio do milho, falta-lhe a água, mas não pode vir à procura dela porque senão aquela regueira, mesmo fraquinha, rebenta-lhe com os portos todos, e depois o trabalho que dão a amanhar! O Ratinho nunca corta a água toda, mesmo por isso, para que o outro não possa vir à procura dela.
    Eu andava cortando a bandeira dum milho temporão que tenho ali ao lado. Trabalho dum cabrão, cai aquele pozinho em cima da gente que apetecia era uma pessoa ir dali e meter-se debaixo de água. Mas ainda não perdi a esperança de ter um chuveiro. Como eu ia dizendo, andava ali no meio do milho e oiço o rebuliço; vim a fugir e só tive tempo de ver o Ratinho deitado no chão cheio de sangue e o Manuel parado, sem acção. De olhos muito abertos, só dizia:
   — O que é que eu fui fazer? O que é que eu fui fazer?
    Nem perdi mais tempo e vim a fugir à venda para mandar chamar a ambulância.

    O meritíssimo juiz continua indiferente ao silêncio, que cresce em incomodidade. José Barradas, escrivão experiente, com muitas centenas de julgamentos no currículo, boa parte deles com o juiz Braz, percebe que está perante algo estranho. Sucessivas mudanças se vão operando na expressão do juiz, indo da ira à calma, do medo à satisfação pura; cambiantes tão ténues que só o escrivão os pode aperceber.
    — Senhor doutor juiz, sente-se bem?
    O juiz está lá na longe ilha, quarenta e sete anos atrás. Não encontra o pai na horta, onde lhe vem trazer o almoço. Pelo fiozinho de água entende que lhe voltaram a desviá-la. Segue a levada, o que primeiro vê são laivos de vermelho vindos na débil corrente. Coração aos saltos, corre. A sachola ensanguentada, o Júlio Capador sentado na pedra só sabe dizer:
    — Foi em legítima defesa, ele atirou-se a mim, eu tive que me defender.
    Como se alguém pudesse acreditar que um lingrinhas como o Alfredo Braz pudesse meter medo ao latagão do Júlio Capador.
    O juiz acreditou.
    — Sente-se bem, senhor doutor...?
    — Absolvido. O réu agiu a quente depois de prolongada e repetidamente ter sido abusado pela vítima.
    E continuou em voz baixa, como falando para si próprio:
    — Um homem não é de ferro... Finalmente foi feita justiça.
    E ao olhar interrogativo do Barradas:
    — As últimas frases não são para assentar.