— Ó Manel! Ó Manel! — o brado da Piedade ecoa nas encostas e aparenta ser variadas vozes, chegando assíncronas de distintas direcções, e se vão diluindo num efeito a roçar o mágico. Quem já presenciou, numa cidade, um cachorro confundido com os ecos nas paredes, entenderá a desorientação do Manuel do Corgo Fundo, que não distingue de que lado a voz vem.
Conjecturando que ela tenha ido pela cumeada em direcção ao Serro da Guerrilha, e tenha novidades, mete-se a descer pelos restos de uma antiga vereda, que segue quase a meia encosta, até encontrar onde possa atravessar o barranco.
Diz-se que noutros tempos esta vereda foi trilho de arrieiros, que levavam para a serra o sal e o peixe, e traziam o mel e a aguardente. De tarde em tarde também algum ou outro mercador se fazia ao caminho com a sua besta carregada de utilidades de toda a sorte, desde agulhas de costura a alguidares de barro. Também os ferreiros e os cesteiros do Mioto usariam a vereda para levar às feiras da Vila Ruiva, de Odemano, de Almadrava, e mais umas quantas, as enxadas, as pás de ferro, os alferces, os ancinhos, as picaretas, as cestas e os cestos de vime. Agora está de tal maneira assenhoreada pelo mato que é preciso ter muito boa vontade para se lhe chamar vereda.
— Ó Manel! Ó Manel! — agora já a direcção da voz é mais definida, parece vir mesmo do Serro da Guerrilha. Para esses lados nunca o Manuel foi. Responde ao brado, mas depressa percebe que o vento não ajuda a sua voz a chegar até ela. Porque não conhece as veredas deste lado do barranco, mete-se a escalar a encosta para alcançar a cumeada. Numa cumeada é mais doce o caminhar: nunca o mato é tão basto e o declive é mais suave.
Assomaram, pai e filho, ao portão da quinta do lavrador Serafim Calado por volta das três da tarde dum domingo de Dezembro gélido e chuvoso. Vinham montados na burra preta, a coberto dum guarda-chuva imenso, de ganga azul, e acompanhados dum taleigo de retalhos com os pertences do Manuel: uma faquinha de bolso que o padrinho lhe ofereceu quando, no passado 4 de Outubro, ele fez sete anos, para cortares uns bocados de presunto; um pião feito pelo mano António e o respectivo cordel, agora não o percas; uma costa de rolão que a mana Felismina fez junto à cozedura do pão, de propósito para ti.
— Não fiquem preocupados que lá em casa do que a gente comer ele também come. Frio também não passa. — tinha o lavrador dito, mas a mana Felismina é que não se conformava com ver o seu menino partir assim de mãos a abanar.
— Manel, já viste o mar?
— Com tanto bradares cuidei que tinhas encontrado a porca.
— Nem rastos dela. Cá para mim a porca nem veio para estas bandas. E nem me respondeste se já viste o mar.
— Então temos que ir para baixo à procura dela. Se calhar foi para os lados da ribeira.
— Se tiver ido para o lado da ribeira a esta hora já o meu pai a apanhou... estava bradando porque torci o artelho ali naquela pedra e não dou andado.
— Deixa cá ver o artelho. Vá, que eu levo-te ao colo ali para a sombra daquela azinheira, que o sol escalda.
— Não tenhas pressa, Manel. Senta-te aqui um pedacinho a ver o mar.
— Estás mangando comigo, Piedade?
— Não! Olha além em baixo, assim para o lado esquerdo do serro do Cuco.
— Aquilo é o mar?!
— É sim, Manel. — e ria do ar embasbacado dele. — Eu só tinha estado aqui uma vez, quando era pequena. O meu pai trouxe-me no burro uma vez que veio apanhar tojos para chamuscar o porco. Sabes porque chamam aqui o serro da Guerrilha? Dizem que os guerrilhas vinham para aqui para espiar as manobras dos inimigos. Dizem que estas pedras são dos restos duma casa que eles fizeram para ficarem aqui de noite e no tempo de chuva.
A pouco tempo de ter ficado só no leito de ferro que o lavrador tinha armado numa casinha ao lado da malhada do gado, onde ele próprio dormia muitas vezes quando alguma vaca estava para parir, rompeu num choro sincopado, mudo e demorado. Só a muito pouco a pouco foi serenando. Mas não adormecia, não estava afeito a dormir numa cama, entre lençóis. E tinha frio.
— Uma vez, quando era pequeno, fui com o meu mano António apanhar medronhos para a serra. Não apanhámos nada, choveu duma tal maneira, dum tal jeito, que o ribeiro encheu e ficámos presos da banda de lá. Não dávamos atravessado. O meu mano fez uma cama de tojos à abrigada duma azinheira.
— Uma cama de tojos?!
— Não estou mangando. Havia água por todo o lado, ele juntou os tojos, e eu também ajudei, acalcou muito bem, e por cima pôs urzes para a gente não se picar nos tojos. A água escorria por baixo dos tojos e a gente dormiu lá abrigados com o guarda-chuva de pastor e as sacas que se tinha levado para trazer os medronhos. Uma bela cama, até parece que tem molas.
— Gostava de experimentar...
Calaram-se ambos por um bom bocado.
Já se ouviam as cigarras.
— Já o pé está melhor?
— Está. Tu és um artista, davas para endireita. — e ria. — Mas não me atrevo a meter-me por aí abaixo com este calor. Sabes o que tu devias fazer?
— Levo-te ao colo.
— É muito longe, Manel... tu devias era fazer uma cama de tojos e descansávamos aqui à sombra até passar esta calma. — e olhou-o de soslaio, muito corada, arqueando as sobrancelhas.
Quando o lavrador veio ver se ele estava bem, não o encontrou na cama. Foi encontrá-lo enrolado na manta, deitado na palha ao pé do burro, com o “Pombinho” a lamber-lhe as lágrimas. Dormia um sono profundo e sereno.
Custou, mas foi-se habituando à cama. O lavrador pôs-lhe mais uma manta de lã. Nalgumas noites em que a saudade de casa batia com mais força ia deitar-se na palha ao pé do burro, mas cada vez mais de tarde em tarde.
— Serafim! onde está a Piedade?
— O que é que tu queres, Carlota? Foram para a serra à procura da porca que fugiu esta noite.
— Mas tu és maluco? Tu não vês que eles já são crescidos e daqui a pouco as pessoas começam a falar. Já não é o mesmo de quando eram gaiatos e brincavam juntos. Hoje que era para ela ir comigo. Se não for eu a resolver as coisas...
Ela foi descompondo e descompondo, é um domingo sem pôr os pés na igreja, e o outro também não. Qualquer dia a comadre Senhorinha diz que uma nora assim não lhe convém.
E ele escapulindo-se e assobiando baixinho, eu bem sei o que tu queres, queres é casar a Piedade com gente grande. Grande?! Minhas belas terras entregues a um estroina daqueles. Isso é que era bom!
— Manel, lembras-te quando eu te queria ensinar a ler e tu não querias. E depois quando começaste a conseguir juntar as letras e ficavas tão contente.
Ele sorriu:
— É verdade. E tu já nessa altura tinhas tanto jeito para ensinar.
— Tu é que aprendias sempre bem. — e fitou-o bem nos olhos. — Sabes uma coisa? Nunca pensei que os tojos fizessem uma cama tão boa, apetecia-me ficar aqui para sempre. Manel, estende-te aqui, a cama dá para os dois.
Ele fez-se desentendido, será que ela não vê que já não somos crianças?
A pouco e pouco foi aprendendo a fazer de tudo. O lavrador Serafim era um bom lavrador, as suas terras andavam sempre um brinco. Mas faltava-lhe alguma habilidade de mãos, que sobrava ao Manuel. Ele era capaz de consertar um arado, ele era capaz até de consertar umas botas. Era capaz de fazer uma parede. Nada lhe metia medo. Ninguém sabia onde teria aprendido, nem ele próprio.
Se o lavrador Serafim tivesse alguém com quem desabafar já lhe teria dito que o Manuel era o filho que a sua Carlota nunca pudera ter, porque ficou irremediavelmente inutilizada no parto da única filha.
Naquele domingo em que o Manuel percebeu porque é que a Dona Carlota convidava a Dona Senhorinha para ir tantas vezes lá a casa, saiu ainda antes do sol-posto, foi para a venda da Marília, e voltou de madrugada com uma bebedeira que não se segurava de pé. Nunca ele se tinha embebedado. Nem entendeu bem o porquê.
— Manuel, anda lá. Estende-te aqui um pedacinho. Está-se aqui tão bem. — Ele olhou-a bem nos olhos com um ar quase suplicante, será que ela não entende?
Como ela parecia não desistir, resolveu falar:
— Piedade, não vês que já não somos crianças?
— Pois não, e o que é que isso tem a ver?
O Manuel fez um esforço para vencer a atrapalhação:
— Tem a ver que tu te vais casar e nós... nós...
— Nós?
— Nós não somos irmãos, pronto.
Os olhos da Piedade ganharam novo brilho. Estendeu a mão ao Manuel, puxou-o energicamente, olhou-o nos olhos:
— És a terceira pessoa que me faz lembrar disso nos últimos dias. Agora estende-te aqui ao comprido que vou ser eu a quarta. Sim, não somos irmãos; não somos irmãos e também já não somos crianças. A minha mãe diz que não somos irmãos mas é porque anda com sonhos de grandeza naquela cabeça e tem medo de nos ver juntos. Mas eu não tenho nada a ver com isso.
Ficaram ambos calados um bocado. Foi a Piedade quem interrompeu por fim o silêncio:
— Manel, tu pensas que eu não sei porque te embebedaste naquele dia?
— Eu?!
— Não, que fui eu. No outro dia andavas atrás do arado além na Chã e de vez em quando vomitavas. Ou pensas que não vi? — sentia-se como a pairar. Nem sabia como tinha tido coragem para chegar até aqui, mas também sabia que agora já não voltaria atrás.
— Piedade, eu sou só um criado. Não posso trair a confiança do teu pai.
— Tontinho! Sabes o que me disse o meu pai hoje de manhã? Ele que é de tão poucas falas, a não ser nas raras vezes em que está com um copinho. Sabes o que ele me disse assim sem mais nem menos, antes de virmos à procura da porca? Disse-me: “Piedade, minha linda, filha do meu coração, faz o que te manda o peito, terás a minha bênção, o que fizeres está feito, e te digo mais ainda, ele não é teu irmão.” E olha que nem sabia que tinha um pai poeta.
Olharam-se nos olhos por um bocado, sentiram vertigens, sentiram, sentiram calores, sentiram, sentiram...
O passarinhos chilreavam nos ramos. Um casal de lebres brincava na clareira a poucos passos, num prolongado jogo de corre, escapa, persegue, apanha, corre, persegue, agarra, escapa, agarra, agarra...
O Natalino do Vale puxa com toda a genica pelo acordeão, se a minha vida é te adorar, porque me fazes assim penar, viver sem ti, oh, que aflição, Avé Maria do coração. O lavrador Serafim é um exímio bailador. Rodopia com a prima Eugénia, que também não lhe fica atrás. Os mais novos não lhes chegam aos calcanhares no que toca a bailar a valsa.
— Carlota, dá mais uma rodada de aguardente a este pessoal. No baptizo do meu neto não quero que falte nada. Vai sair ao avô. Grande filho duma porca!
— Serafim, não gosto nada que chames filho duma porca ao teu neto, olha que a tua filha é muito asseada. Isso fica-te muito mal.
— Oh mulher do diabo, e quem disse que a nossa filha não é asseada? Bem, para dizer a verdade ficava melhor dizer que ele é afilhado duma porca. — e ria, ria. Quando bebia um copinho, ao lavrador Serafim soltava-se-lhe a língua. Mas todos o conheciam bem.
— Bom! Eu não quero que haja confusões. Escutem todos! Piedade, lembras-te da porca que se soltou e vocês foram à procura dela, tu e o Manel?
— Então não me havia de lembrar, meu pai!
— Pois fiquem sabendo que a porca não se soltou. Eu é que a fui pôr logo de manhã cedo naquele cercado ao pé da ribeira. Depois foi só mandá-los aos dois para a serra, que vocês só tinham olhos um para o outro, mas não se descosiam. E ainda por cima a tua mãe andava maluquinha para arranjar-te o casamento com aquele afilhado do padre que anda daqui a pouco há quinze anos a estudar para doutor. As minhas terras entregues a um estroina daqueles, isso é que se houvera de ver. — E tiveram de o segurar para não cair. Mas ria, ria, ria... Quem não achou graça nenhuma foi a Carlota, que ficou amuada por mais de três meses.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
a porca
Subscrever:
Comentários (Atom)