Sem calor e sem tecto, sem amor, sem amigo,
vagueando sem rumo, sem destino ou abrigo,
e o frio chega aos ossos, é serão de Natal,
tentando encontrar uma tasca com gente.
Bate à porta onde ao fundo umas vozes soavam
Bom Natal para todos os que ali se encontravam,
um homem assoma para lá do quintal,
onde posso encontrar uma sopinha quente?
Recua aos berros saindo dos trilhos,
vá comer à sua casa e com os seus filhos!
ruge o bruto sentado à sua mesa farta.
Sabe o senhor desde quando eu labuto?
e já agora um respeito para com o meu luto,
um natal feliz e vá prò raio que o parta!
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
o espírito de natal
o petricor
Palavrão desconhecido,
mas que a toda a gente
vai de certeza agradar.
de repente,
do céu começa a pingar
o suco da vida.
que se alevanta do chão
e nos preenche o sentido.
tens que me dar a razão,
que sentir o petricor.
o bufo
Tinhas tudo pra trás e um ror por diante
Na preguiça ficou todo o viço e a fé
E assim se foi uma carreira brilhante
N'água turva e no lodo já perdeste o pé.
Dos outros esperas apreço e respeito
Aos outros não dás mais do que traição
Queres o brilho a vir de qualquer jeito
Inda que para tê-lo caias na delação.
O teu fulgor é baço, nada que se veja
E o rancor afogas num mar de cerveja
Já és um farrapo e já nem tens tomates.
Nunca dos nuncas mais que bufo serás
Já não é possível, não se volta atrás
Melhor que te atires ao mar e te... cates.
o jipe
— Ó Manel, aquele jipe não tem vindo sempre atrás da gente da ponte de S. Cristóvão para cá?
— Sei lá! Venho aqui com atenção à condução, não venho reparando nessas coisas.
A minha mulher tem razão. Tem vindo sempre atrás da gente e não é da ponte para cá, quando saímos da vila já ele lá vinha. Lá atrás ainda pensei que era o jipe da guarda, mas quando passámos ali da curva do Caçapo, e o vi de lado, reparei que tem uma capota de lona, muito velha, já muito ruça do sol. O jipe da guarda não tem aquela capota.
Eu também já tinha reparado no jipe. Notei que o meu genro de vez em quando olha para o espelho. Da primeira vez que olhei para trás não vi nada de estranho. Mas cá mais à frente olhei outra vez e lá vem o mesmo jipe. E agora diz ele que vem com atenção à condução e não repara nessas coisas! Devem ser alguns estrangeiros, agora ali para a serra há muitos estrangeiros com aqueles jipes muito velhos. Alguns até trazem camiões que parecem da tropa. Não sei onde eles vão buscar aquilo.
Ele não tira os olhos do retrovisor. E depois responde-me que vem com atenção à condução. Com tanta gandulagem que anda por aí, uma pessoa às vezes até tem medo. Diz a Celestina da Alcaria que o genro aqui há dias foi para os lados do serro das Cabras por modos das abelhas e andavam uns estrangeiros a lavrar com um burro, e todos d'em pelão. Eram eles, alguns dois, era ela, e mais dois gaiatos. Tudo d'em pelão. Diz ele que se não visse não acreditava. Como é que uma pessoa pode andar por aí à vontade!
— Ó Manel, a Clementina tem razão. O jipe tem vindo sempre atrás da gente. Tu voltas à esquerda, ele volta à esquerda, tu voltas à direita, ele volta à direita.
— E o que é que você quer que eu faça? As pessoas vão lá na vida deles. Devem ser alguns estrangeiros que vão aí para a serra. Agora há por aí tantos.
— Isso é verdade. Têm comprado por aí casas velhas e terras. E pagam bem. Ainda vocês haviam de ver se eles querem comprar a casa lá do Corgo Fundo.
— A casa do Corgo Fundo?! Tenha juízo, mãe. Aquilo tem lá alguma casa? Um monte de pedras.
É sempre assim, aquilo que eu digo nunca conta para nada. A minha Clementina não era assim antes de casar com este homem. Eu sempre disse que não sei onde é que ela estava com a cabeça. Não sei o que viu nele. Só porque era dos comandos lá em Angola, nunca entendi o que isso queria dizer. Comandos! Maldito o dia em que o carteiro lhe trouxe aquele aerograma para ser madrinha de guerra.
Diabo, agora já não podem ir para a serra. Este caminho já só vai para a nossa casa e para a Alcaria, mas se fossem para a Alcaria tinham voltado lá atrás, não vinham para aqui fazer nada. Não estou gostando nada disto. Dá-me vontade é fintá-los e voltar ali à frente para a Alcaria. Mas com que cara fico eu! Até a minha sogra se vai rir e chamar-me cagarola.
— Manel, já viste que eles ainda vêm atrás da gente? Não estou gostando nada disto. Lembra-me logo daqueles que o ano passado foram assaltar aquela gente lá do monte da Silveira. Deram uma carga de porrada no velhote, abusaram da velhota. Levaram algum dinheirinho que os pobres tinham, poupanças duma vida.
— Ó mãe! Não diga essas coisas. Eles eram velhotes e foram apanhados sem estar à espera.
— E a gente? Se eles quiserem fazer mal à gente o que é que a gente faz? Ai, se o meu João fosse vivo!
— Não me diga que está com medo que eles abusem de si. Era preciso ter muito mau gosto!
— Ó Manel! Tu não tens vergonha de falar assim com a minha mãe?
Eu não devia ter dito aquilo, mas ela fez-me afinar, ai, se o meu João fosse vivo, como se eu não fosse homem para defender a minha família.
— Manuel! Pois fica tu sabendo que também há bandidagem que abusam de homens. Se tu não sabes, fica sabendo. Olha, aquele bandido que casou com a filha do Nicolau do Mioto. Abusava da filha, foi preso, olha o que os outros presos lhe fizeram. Esteve no hospital mais de três meses.
Aqui é que ela me fez mesmo passar dos carretos.
— Manel, também não estou gostando nada disto. Não é só a minha mãe. Devias era voltar já aqui para a Alcaria...
Elas pensam que eu não sou homem para defender a minha família? Já sei o que vou fazer: vou daqui, dou a volta à casa, passo no eirado lá atrás e vou parar o carro mesmo ao pé do cão. Quero ver se algum tem coragem de se aproximar. Tão certo como eu me chamar Manuel José. Aquilo será verdade, aquilo do genro do Nicolau? Nunca tinha ouvido dizer tal coisa, mas eu não sou de cá.
— Tu estás ouvindo a tua mulher? Lá que sejas malcriado com a tua sogra, não quer dizer que não respeites a tua mulher, alma do diabo!
Nem lhe respondo. Ela já vai ver.
E eles lá vêm. Agora já bem perto da 4L. São dois, um deles, o que conduz, de barba preta e comprida. Óculos escuros. Parece um latagão daqueles dos filmes da televisão. O outro, um pouco mais franzino, mas mesmo assim parece um bocado dum homem.
— Manel!!! E agora?
— Manel! Nunca te vou perdoar!
— Calem-se, mulheres do diabo!
Elas já vêem quem é homem aqui. Quero ver se eles têm coragem de se aproximar do cão.
— Manel! Mas o que é que tu estás fazendo? Passando com o carro por cima dos meus figuinhos, que tanto trabalho me deram a apanhar para secar prò inverno!
— Não vê que é para parar ao pé do cão, mulher do diabo?
— Bom dia! — é o maior, o de barba e óculos escuros. — Sabe-me dizer onde é a partilha das suas casas aqui com estas do seu vizinho Albino? Nós somos do cadastro e viemos medir as casas dele.
Cagarola! Cagarola e malcriado! Não sei onde é que a minha Clementina estava com a cabeça, desta vez é que nunca mais lhe falo.
— Olhe lá, senhor das barbas. Quando acabar o seu trabalho não me pode dar uma boleia para me ir embora desta casa? É só dez minutos para arrumar os meus poucos trastes...
a passadeira
Sim! Eu sei que a senhora não me fez favor nenhum por parar na passadeira para me dar passagem, é a sua obrigação. Eu também tirei carta de condução; foi há muitos anos e nunca mais peguei num volante, mas aprendi isso tudo. Andava sempre de carro com o meu marido, que Deus o tenha, e ia sempre observando como ele fazia. Ele às vezes dizia, porque não pegas no carro e o levas um bocadinho; mas eu fui-me pondo a pouco, pondo a pouco e já nem me dava jeito nenhum, nem sei se ainda saberia arrancar nem meter as mudanças. Olhe, depois que enviuvei vendi o carro. Um carro bom, a gasóleo, tinha vinte e sete anos, mas muito bem estimado. O meu genro diz que o vendi muito barato, mas para que queria eu o carro?
Eu gosto sempre de agradecer quando vejo que as pessoas são simpáticas, acho que é uma maneira de ficarmos todos bem dispostos. Mas com o que aconteceu esta manhã eu queria agradecer não era por isso, queria agradecer é pela sua paciência e o seu tempo perdido. Que o nosso tempo é precioso, a senhora também deve ter os seus afazeres como toda a gente; eu gosto muito de respeitar o tempo dos outros. Agora as pessoas andam todas impacientes, todas com os nervos à flor da pele. Quando encontro uma pessoa com paciência apetece-me agradecer-lhe por me ter dado alguma esperança na humanidade. A senhora não viu aquele que parou atrás de si e levou o tempo todo a buzinar e a praguejar? Que malcriado! E o que ele fez depois, energúmeno! Há pessoas que não têm civilização nenhuma. E não viu também aquela rapariga que já depois de a senhora ter parado ainda passou pela faixa de cá em alta velocidade fingido que não via que eu queria passar. Agora parece-me que as raparigas ainda são piores que os rapazes a conduzir. Andam com muita velocidade. Não respeitam as prioridades. Não respeitam os peões. Parece que andam drogadas.
Depois vi vir aquele do carro vermelho de janelas abertas e o som no máximo, bum, bum bum bum, bum bum, bum, bum bum bum, bum bum, e tive medo de me meter à passadeira. Ele vinha devagar, é verdade, mas aquilo são pessoas que vêm da noite, ainda vêm com o barulho na cabeça, quem me garantia que ele me via? Ainda por cima ao lusco-fusco; o meu marido, que Deus o tenha, dizia sempre que era a hora que tinha mais medo de conduzir. Enquanto ele passou e não passou devem ter aberto o semáforo lá em baixo, porque vieram tantos carros de seguida do outro lado. E a senhora viu que nenhum se dignou parar? Eles metem o nariz atrás uns dos outros e se um passa os outros têm que passar todos. É aqui que eu perco a esperança no ser humano.
Eu sei que para quem vem daquele lado a passadeira está muito escondida e é nova aqui. Muita gente ainda nem percebeu que está aqui uma passadeira. Mas, caramba, os condutores não têm que ir com atenção? Não sei porque enquanto estes nem sei o nome que lhes chamar não se dignavam parar a senhora não aproveitou para avançar, porque estava lá tão longe e nem me ia parecer mal que a senhora passasse. Nota-se que a senhora é uma pessoa educada. Deve ser muito boa pessoa. Aquele malcriado do carro atrás do seu é que ainda não se calou nem um minuto.
Bem, parece que é agora, deve ter voltado a acender o sinal vermelho e vou aproveitar. Vem só um e longe, vou aproveitar. Parece que vem muito depressa. Eu tenho mais medo porque com a minha roupa escura eles têm mais dificuldade em ver-me. Já o meu marido, que Deus o tenha, dizia sempre que as pessoas de roupa escura na estrada não se vêem. Bem, este viu-me, vou atravessar. Mas espera lá, Quitéria, que vem outro e parece que vem louco, não atravesso enquanto os não vir os dois parados.
A senhora sabe que já vi por três vezes um carro parar na passadeira e depois vir de lá outro e bater-lhe, empurrá-lo para cima da passadeira. Por sorte, até hoje ainda não houve feridos. A última que vi foi uma senhora que mal teve tempo de dar um salto para trás, e porque era uma senhora nova, ainda conseguia saltar. Foi ali naquela passadeira ao pé do Restaurante “Aconchego”, não sei se a senhora conhece. Por sinal um restaurante onde se come muito bem, são umas pessoas que estiveram no Luxemburgo. Já passaram, vem aqui um devagarinho, que já me viu. Cuidado! Mas o que é que o homem vai fazer?! Então aquele malcriado que ainda não se tinha calado não teve a grandessíssima pouca-vergonha de arrancar em alta velocidade mesmo fora de mão, fez o outro senhor que vinha da minha esquerda se desviar e quase me atropelava, coitado sem ter culpa nenhuma.
Estou toda a tremer. Olhe, minha senhora, já não atravesso, vou voltar para casa. Amanhã logo vou à farmácia, ainda tenho comprimidos para dois dias. Agradeço à senhora do fundo do coração.
a regadeira
Quando andamos brincando na eira e a aragem vem dos lados da vila ouve-se bem os sons da estrada ao longe: os carros, as camionetas, as motas, tudo. Vamos correndo e ficamos à espera à roda da estrada. Um aposta que é um Peugeot 404, o outro, que é um Opel Kadett. Uma boa parte das vezes até apostamos quem é; se for motas ou camionetas, é quase sempre. Quando se ouve o taca-taca, taca-taca cavernoso do comboio lá bem ao longe a minha avó diz que vai chover, e nunca se engana.
Ainda a ambulância não tinha saído da vila e já o Jaime ouvia a sereia.
— Carlos, estás ouvindo?
À medida que se aproxima, os uivos da sereia soam cada vez mais fortes. Ficámos estacados, num silêncio solene, as penugens dos braços eriçadas. Quando vimos que, a seguir à ponte de São Cristóvão, voltou para o lado do Vale, corremos a avisar a minha avó.
Eu estava sentada no alpendre, assim naquele meio a dormir meio acordada. Fazendo empreita para uma alcofa, com a palma caindo das mãos, sonhava com um homem que tinha deixado rebolar o carro de besta. Nunca fiquei a saber quem era o homem. Sei que era ali a seguir ao Porto da Rocha, da banda de lá da ribeira, e havia um ror de gente e uma grande algazarra. Depois chegou a ambulância com a sereia uivando, uivando, uivando. Foi aí que os garotos me acordaram:
— Avó! Avó! A ambulância! A ambulância!
Acordei assarapantada:
— Já tiraram o homem?
— Qual homem, avó?
— Não ligues, Carlinhos. A avó estava sonhando.
— Já vem ali para cá da casa do Ratinho. Já passou a ponte do canal.
Quem será o coitado ou a coitada?
— Se não soubesse que o teu pai e a tua mãe foram apanhar figos para a Chã do Bicoito não ficava descansada.
— Joaquim, vamos embora. Não fico sossegada com os gaiatos brincando à roda da estrada. Parece que o barulho da sereia vem mesmo do lado da nossa casa.
O Joaquim do Vale, de semblante denso, vai albardar o burro, que está preso à sombra da alfarrobeira.
— Eu não me chame Ermelinda ou aquilo é outra vez aquela histérica da Lurdes Carola. O barulho da sereia soa mesmo para os lados da casa dela. A mulher é maluca.
— Tem-me tento nessa língua!
— Sim! Agora sou eu que não tenho tento na língua. Vizinha Carminda, mecê já a viu alguma vez com os ataques? Pois eu já vi. É uma vergonha. Atira-se a tudo o que vista calças.
— Coitado quem é desgraçado, Ermelinda! A gente não pode cuspir para o ar. Ninguém sabe o dia de amanhã.
— Diga-me dessas, diga.
Hoje têm o lavadoiro por conta das duas.
— Cá para mim aquilo é o Sebastião, que bateu outra vez na mulher. Nunca mais toma juízo, um mariola daqueles. Um bom artista. Lembro-me bem de ouvir o mestre Caiado, no tempo da barragem, dizer que carpinteiros como ele havia poucos. Entregou-se à bebida. Ela é uma santa, sempre trabalhando com este e com aquele; na alfarroba, no figo, na amêndoa, na azeitona, na ceifa, na monda.
— E ainda foi algumas vezes à monda do arroz para Alcácer, Manel. Naquele ano em que eu fui lá foi ela também, no rancho do António Calhau do Mioto.
— E eu não sei, mulher? É um estroina. Ela é que alimenta os três filhos e a ele. E mesmo assim ainda as encoira de vez em quando. Algumas mulheres se não for assim não há quem as dobre, mas esta coitada?
Eu estava lá para trás a despenar uma galinha, senhor doutor juiz, quando oiço bater ao postigo; quando eu vou lá para trás fecho sempre a porta da venda, porque nunca se sabe quem anda por aí, filhos de muita mãe, e uma pessoa não sabe. Pela maneira de bater vi logo que era alguém com aflição; vim a correr, era a Matilde da Alcaria, a mulher vinha branca como a cal dessa parede, juro que vinha. Era com a aflição e por causa de ter vindo a fugir; até deitava os bofes pela boca, tive que lhe dar um púcaro de água para ela se acalmar e conseguir falar.
Que era para eu chamar a ambulância.
— Cuido que o Manuel da Horta deu cabo da vida dele. Cuido que o homem está morto. — lá ela conseguiu dizer.
— Qual homem?
— O João Ratinho.
Não esperei mais e fui ao telefone chamar a ambulância. Depois é que ela lá se foi acalmando e foi contando o que tinha acontecido.
Se eu conheço o Manuel da Horta, senhor doutor juiz? Somos moços das mesmas sortes. Aquilo é pão sem joio. Amigo do amigo. Um paz-de-alma. Estivemos na tropa juntos em Lagos. Nunca lhe conheci um inimigo. Eu era mais vivaço. Mais de uma vez ele fez os meus serviços. Está aí o Joaquim do Vale, que também lá esteve mais a gente e não me deixa mentir. Mais de uma vez eu disse:
— Manuel, preciso de ir à terra. — não era preciso dizer mais nada. Eu nessa altura já era casado e já tinha a gaiata e ele era solteiro e sem compromisso. Era logo:
— Ó Aldemiro, então isso tem conversa?
Para o senhor doutor juiz ver o que ali está. Esse Ratinho conheço-o mal. Esse diabo não era daí, veio para aí no tempo da barragem; mas uma coisa é certa, pode perguntar a toda a gente, que não encontra um que goste dele.
— Limite-se a testemunha a falar sobre a pessoa do réu.
O meu Manuel é um paz-de-alma, toda a gente sabe. Ele é assim e eles abusam. O pior é este Ratinho.
Não vale a pena o meu Manuel fazer queixa ao cantoneiro, que esse, dêem-lhe copos. O homem vai regar e não há um dia em que não se irrite. Regamos de três regadeiras, pois em todas ficamos na ponta. Aqui deste lado da ribeira é um tudo-nada melhor, porque o cantoneiro é outro; este anda mais em cima do serviço, mas eles também o espreitam e ele não os consegue apanhar, assim que ele vem lá longe já eles abrem a água como se nada fosse com eles.
Naquele dia de manhã eu notei que o meu Manuel saiu diferente, ele não disse nada, mas eu acho que ia diferente. Se calhar sou eu agora imaginando coisas, mas ninguém me tira isso da ideia. O certo é que ele encaminhou a água para um sítio onde não fizesse mal e assim que ela faltou foi à procura do ladrão. E o resto foi o que se sabe, desgraçadamente.
Dizem que o meu João não era boa peça, tomara a muitos serem homens como ele. Com ele não brincavam, não é como alguns que não dão conta do recado. Seria por ele ser de fora? Se calhar era, nunca o aceitaram cá na terra. Eu tive muitos pretendentes em moça, mas gostei daquele, que me importava a mim que fosse de fora.
Dizem que ele roubava a água ao Manuel da Horta e aos outros que ficam à parte de baixo; falta de conversa, meia dúzia de alhos, meia dúzia de cebolas, dois regos de feijão, outros dois de milho; que mal lhes fazia a eles um bocadinho regando com menos água? As pessoas só pensam neles.
Mas ele agora vai pagar pelo que fez, cão! O meu advogado já disse que vai pedir a pena máxima. Ele premeditou, não ouviram o que ela disse? Que ele saiu de casa já com ela fisgada? Coitada, é tão inocente que ainda vem dizer isso cá para fora. Agora vai pagar bem caro!
Ora o que tinha acontecido. O que tinha acontecido é que esse Ratinho, como toda a gente sabe, nunca pede água ao cantoneiro. Cuida que a água que é dele; apetece-lhe a regar um feijão, vai ali ao poço, mete metade da adufa ao fundo, corta metade da água. E o Manuel da Horta, que fica lá na ponta da regadeira e anda lá no meio do milho, falta-lhe a água, mas não pode vir à procura dela porque senão aquela regueira, mesmo fraquinha, rebenta-lhe com os portos todos, e depois o trabalho que dão a amanhar! O Ratinho nunca corta a água toda, mesmo por isso, para que o outro não possa vir à procura dela.
Eu andava cortando a bandeira dum milho temporão que tenho ali ao lado. Trabalho dum cabrão, cai aquele pozinho em cima da gente que apetecia era uma pessoa ir dali e meter-se debaixo de água. Mas ainda não perdi a esperança de ter um chuveiro. Como eu ia dizendo, andava ali no meio do milho e oiço o rebuliço; vim a fugir e só tive tempo de ver o Ratinho deitado no chão cheio de sangue e o Manuel parado, sem acção. De olhos muito abertos, só dizia:
— O que é que eu fui fazer? O que é que eu fui fazer?
Nem perdi mais tempo e vim a fugir à venda para mandar chamar a ambulância.
O meritíssimo juiz continua indiferente ao silêncio, que cresce em incomodidade. José Barradas, escrivão experiente, com muitas centenas de julgamentos no currículo, boa parte deles com o juiz Braz, percebe que está perante algo estranho. Sucessivas mudanças se vão operando na expressão do juiz, indo da ira à calma, do medo à satisfação pura; cambiantes tão ténues que só o escrivão os pode aperceber.
— Senhor doutor juiz, sente-se bem?
O juiz está lá na longe ilha, quarenta e sete anos atrás. Não encontra o pai na horta, onde lhe vem trazer o almoço. Pelo fiozinho de água entende que lhe voltaram a desviá-la. Segue a levada, o que primeiro vê são laivos de vermelho vindos na débil corrente. Coração aos saltos, corre. A sachola ensanguentada, o Júlio Capador sentado na pedra só sabe dizer:
— Foi em legítima defesa, ele atirou-se a mim, eu tive que me defender.
Como se alguém pudesse acreditar que um lingrinhas como o Alfredo Braz pudesse meter medo ao latagão do Júlio Capador.
O juiz acreditou.
— Sente-se bem, senhor doutor...?
— Absolvido. O réu agiu a quente depois de prolongada e repetidamente ter sido abusado pela vítima.
E continuou em voz baixa, como falando para si próprio:
— Um homem não é de ferro... Finalmente foi feita justiça.
E ao olhar interrogativo do Barradas:
— As últimas frases não são para assentar.
a porca
— Ó Manel! Ó Manel! — o brado da Piedade ecoa nas encostas e aparenta ser variadas vozes, chegando assíncronas de distintas direcções, e se vão diluindo num efeito a roçar o mágico. Quem já presenciou, numa cidade, um cachorro confundido com os ecos nas paredes, entenderá a desorientação do Manuel do Corgo Fundo, que não distingue de que lado a voz vem.
Conjecturando que ela tenha ido pela cumeada em direcção ao Serro da Guerrilha, e tenha novidades, mete-se a descer pelos restos de uma antiga vereda, que segue quase a meia encosta, até encontrar onde possa atravessar o barranco.
Diz-se que noutros tempos esta vereda foi trilho de arrieiros, que levavam para a serra o sal e o peixe, e traziam o mel e a aguardente. De tarde em tarde também algum ou outro mercador se fazia ao caminho com a sua besta carregada de utilidades de toda a sorte, desde agulhas de costura a alguidares de barro. Também os ferreiros e os cesteiros do Mioto usariam a vereda para levar às feiras da Vila Ruiva, de Odemano, de Almadrava, e mais umas quantas, as enxadas, as pás de ferro, os alferces, os ancinhos, as picaretas, as cestas e os cestos de vime. Agora está de tal maneira assenhoreada pelo mato que é preciso ter muito boa vontade para se lhe chamar vereda.
— Ó Manel! Ó Manel! — agora já a direcção da voz é mais definida, parece vir mesmo do Serro da Guerrilha. Para esses lados nunca o Manuel foi. Responde ao brado, mas depressa percebe que o vento não ajuda a sua voz a chegar até ela. Porque não conhece as veredas deste lado do barranco, mete-se a escalar a encosta para alcançar a cumeada. Numa cumeada é mais doce o caminhar: nunca o mato é tão basto e o declive é mais suave.
Assomaram, pai e filho, ao portão da quinta do lavrador Serafim Calado por volta das três da tarde dum domingo de Dezembro gélido e chuvoso. Vinham montados na burra preta, a coberto dum guarda-chuva imenso, de ganga azul, e acompanhados dum taleigo de retalhos com os pertences do Manuel: uma faquinha de bolso que o padrinho lhe ofereceu quando, no passado 4 de Outubro, ele fez sete anos, para cortares uns bocados de presunto; um pião feito pelo mano António e o respectivo cordel, agora não o percas; uma costa de rolão que a mana Felismina fez junto à cozedura do pão, de propósito para ti.
— Não fiquem preocupados que lá em casa do que a gente comer ele também come. Frio também não passa. — tinha o lavrador dito, mas a mana Felismina é que não se conformava com ver o seu menino partir assim de mãos a abanar.
— Manel, já viste o mar?
— Com tanto bradares cuidei que tinhas encontrado a porca.
— Nem rastos dela. Cá para mim a porca nem veio para estas bandas. E nem me respondeste se já viste o mar.
— Então temos que ir para baixo à procura dela. Se calhar foi para os lados da ribeira.
— Se tiver ido para o lado da ribeira a esta hora já o meu pai a apanhou... estava bradando porque torci o artelho ali naquela pedra e não dou andado.
— Deixa cá ver o artelho. Vá, que eu levo-te ao colo ali para a sombra daquela azinheira, que o sol escalda.
— Não tenhas pressa, Manel. Senta-te aqui um pedacinho a ver o mar.
— Estás mangando comigo, Piedade?
— Não! Olha além em baixo, assim para o lado esquerdo do serro do Cuco.
— Aquilo é o mar?!
— É sim, Manel. — e ria do ar embasbacado dele. — Eu só tinha estado aqui uma vez, quando era pequena. O meu pai trouxe-me no burro uma vez que veio apanhar tojos para chamuscar o porco. Sabes porque chamam aqui o serro da Guerrilha? Dizem que os guerrilhas vinham para aqui para espiar as manobras dos inimigos. Dizem que estas pedras são dos restos duma casa que eles fizeram para ficarem aqui de noite e no tempo de chuva.
A pouco tempo de ter ficado só no leito de ferro que o lavrador tinha armado numa casinha ao lado da malhada do gado, onde ele próprio dormia muitas vezes quando alguma vaca estava para parir, rompeu num choro sincopado, mudo e demorado. Só a muito pouco a pouco foi serenando. Mas não adormecia, não estava afeito a dormir numa cama, entre lençóis. E tinha frio.
— Uma vez, quando era pequeno, fui com o meu mano António apanhar medronhos para a serra. Não apanhámos nada, choveu duma tal maneira, dum tal jeito, que o ribeiro encheu e ficámos presos da banda de lá. Não dávamos atravessado. O meu mano fez uma cama de tojos à abrigada duma azinheira.
— Uma cama de tojos?!
— Não estou mangando. Havia água por todo o lado, ele juntou os tojos, e eu também ajudei, acalcou muito bem, e por cima pôs urzes para a gente não se picar nos tojos. A água escorria por baixo dos tojos e a gente dormiu lá abrigados com o guarda-chuva de pastor e as sacas que se tinha levado para trazer os medronhos. Uma bela cama, até parece que tem molas.
— Gostava de experimentar...
Calaram-se ambos por um bom bocado.
Já se ouviam as cigarras.
— Já o pé está melhor?
— Está. Tu és um artista, davas para endireita. — e ria. — Mas não me atrevo a meter-me por aí abaixo com este calor. Sabes o que tu devias fazer?
— Levo-te ao colo.
— É muito longe, Manel... tu devias era fazer uma cama de tojos e descansávamos aqui à sombra até passar esta calma. — e olhou-o de soslaio, muito corada, arqueando as sobrancelhas.
Quando o lavrador veio ver se ele estava bem, não o encontrou na cama. Foi encontrá-lo enrolado na manta, deitado na palha ao pé do burro, com o “Pombinho” a lamber-lhe as lágrimas. Dormia um sono profundo e sereno.
Custou, mas foi-se habituando à cama. O lavrador pôs-lhe mais uma manta de lã. Nalgumas noites em que a saudade de casa batia com mais força ia deitar-se na palha ao pé do burro, mas cada vez mais de tarde em tarde.
— Serafim! onde está a Piedade?
— O que é que tu queres, Carlota? Foram para a serra à procura da porca que fugiu esta noite.
— Mas tu és maluco? Tu não vês que eles já são crescidos e daqui a pouco as pessoas começam a falar. Já não é o mesmo de quando eram gaiatos e brincavam juntos. Hoje que era para ela ir comigo. Se não for eu a resolver as coisas...
Ela foi descompondo e descompondo, é um domingo sem pôr os pés na igreja, e o outro também não. Qualquer dia a comadre Senhorinha diz que uma nora assim não lhe convém.
E ele escapulindo-se e assobiando baixinho, eu bem sei o que tu queres, queres é casar a Piedade com gente grande. Grande?! Minhas belas terras entregues a um estroina daqueles. Isso é que era bom!
— Manel, lembras-te quando eu te queria ensinar a ler e tu não querias. E depois quando começaste a conseguir juntar as letras e ficavas tão contente.
Ele sorriu:
— É verdade. E tu já nessa altura tinhas tanto jeito para ensinar.
— Tu é que aprendias sempre bem. — e fitou-o bem nos olhos. — Sabes uma coisa? Nunca pensei que os tojos fizessem uma cama tão boa, apetecia-me ficar aqui para sempre. Manel, estende-te aqui, a cama dá para os dois.
Ele fez-se desentendido, será que ela não vê que já não somos crianças?
A pouco e pouco foi aprendendo a fazer de tudo. O lavrador Serafim era um bom lavrador, as suas terras andavam sempre um brinco. Mas faltava-lhe alguma habilidade de mãos, que sobrava ao Manuel. Ele era capaz de consertar um arado, ele era capaz até de consertar umas botas. Era capaz de fazer uma parede. Nada lhe metia medo. Ninguém sabia onde teria aprendido, nem ele próprio.
Se o lavrador Serafim tivesse alguém com quem desabafar já lhe teria dito que o Manuel era o filho que a sua Carlota nunca pudera ter, porque ficou irremediavelmente inutilizada no parto da única filha.
Naquele domingo em que o Manuel percebeu porque é que a Dona Carlota convidava a Dona Senhorinha para ir tantas vezes lá a casa, saiu ainda antes do sol-posto, foi para a venda da Marília, e voltou de madrugada com uma bebedeira que não se segurava de pé. Nunca ele se tinha embebedado. Nem entendeu bem o porquê.
— Manuel, anda lá. Estende-te aqui um pedacinho. Está-se aqui tão bem. — Ele olhou-a bem nos olhos com um ar quase suplicante, será que ela não entende?
Como ela parecia não desistir, resolveu falar:
— Piedade, não vês que já não somos crianças?
— Pois não, e o que é que isso tem a ver?
O Manuel fez um esforço para vencer a atrapalhação:
— Tem a ver que tu te vais casar e nós... nós...
— Nós?
— Nós não somos irmãos, pronto.
Os olhos da Piedade ganharam novo brilho. Estendeu a mão ao Manuel, puxou-o energicamente, olhou-o nos olhos:
— És a terceira pessoa que me faz lembrar disso nos últimos dias. Agora estende-te aqui ao comprido que vou ser eu a quarta. Sim, não somos irmãos; não somos irmãos e também já não somos crianças. A minha mãe diz que não somos irmãos mas é porque anda com sonhos de grandeza naquela cabeça e tem medo de nos ver juntos. Mas eu não tenho nada a ver com isso.
Ficaram ambos calados um bocado. Foi a Piedade quem interrompeu por fim o silêncio:
— Manel, tu pensas que eu não sei porque te embebedaste naquele dia?
— Eu?!
— Não, que fui eu. No outro dia andavas atrás do arado além na Chã e de vez em quando vomitavas. Ou pensas que não vi? — sentia-se como a pairar. Nem sabia como tinha tido coragem para chegar até aqui, mas também sabia que agora já não voltaria atrás.
— Piedade, eu sou só um criado. Não posso trair a confiança do teu pai.
— Tontinho! Sabes o que me disse o meu pai hoje de manhã? Ele que é de tão poucas falas, a não ser nas raras vezes em que está com um copinho. Sabes o que ele me disse assim sem mais nem menos, antes de virmos à procura da porca? Disse-me: “Piedade, minha linda, filha do meu coração, faz o que te manda o peito, terás a minha bênção, o que fizeres está feito, e te digo mais ainda, ele não é teu irmão.” E olha que nem sabia que tinha um pai poeta.
Olharam-se nos olhos por um bocado, sentiram vertigens, sentiram, sentiram calores, sentiram, sentiram...
O passarinhos chilreavam nos ramos. Um casal de lebres brincava na clareira a poucos passos, num prolongado jogo de corre, escapa, persegue, apanha, corre, persegue, agarra, escapa, agarra, agarra...
O Natalino do Vale puxa com toda a genica pelo acordeão, se a minha vida é te adorar, porque me fazes assim penar, viver sem ti, oh, que aflição, Avé Maria do coração. O lavrador Serafim é um exímio bailador. Rodopia com a prima Eugénia, que também não lhe fica atrás. Os mais novos não lhes chegam aos calcanhares no que toca a bailar a valsa.
— Carlota, dá mais uma rodada de aguardente a este pessoal. No baptizo do meu neto não quero que falte nada. Vai sair ao avô. Grande filho duma porca!
— Serafim, não gosto nada que chames filho duma porca ao teu neto, olha que a tua filha é muito asseada. Isso fica-te muito mal.
— Oh mulher do diabo, e quem disse que a nossa filha não é asseada? Bem, para dizer a verdade ficava melhor dizer que ele é afilhado duma porca. — e ria, ria. Quando bebia um copinho, ao lavrador Serafim soltava-se-lhe a língua. Mas todos o conheciam bem.
— Bom! Eu não quero que haja confusões. Escutem todos! Piedade, lembras-te da porca que se soltou e vocês foram à procura dela, tu e o Manel?
— Então não me havia de lembrar, meu pai!
— Pois fiquem sabendo que a porca não se soltou. Eu é que a fui pôr logo de manhã cedo naquele cercado ao pé da ribeira. Depois foi só mandá-los aos dois para a serra, que vocês só tinham olhos um para o outro, mas não se descosiam. E ainda por cima a tua mãe andava maluquinha para arranjar-te o casamento com aquele afilhado do padre que anda daqui a pouco há quinze anos a estudar para doutor. As minhas terras entregues a um estroina daqueles, isso é que se houvera de ver. — E tiveram de o segurar para não cair. Mas ria, ria, ria... Quem não achou graça nenhuma foi a Carlota, que ficou amuada por mais de três meses.